Desvendando O capitão Nemo e eu
de Álvaro
Guerra

Maria Paula Lamas

 

O capitão Nemo e eu de Álvaro Guerra é um livro enigmático, em que o narrador pesquisa metaforicamente as profundezas do seu íntimo, identificando-se com o seu modelo, o capitão do submarino Nautilus, das Vinte Mil Léguas Submarinas de Júlio Verne, que desceu à fundura do oceano. (Cf. Teixeira, 1998: 244).

Tal como o autor Álvaro Guerra, o narrador de O capitão Nemo e eu apresenta sequelas, físicas e mentais, decorrentes da guerra, em que involuntariamente teve de participar. Depois de ter sido ferido e reconduzido à sua terra, continua a ter de confrontar-se com as constantes memórias bélicas que permanentemente o atormentam,[1] sendo, de início, internado num hospital e, posteriormente, numa instituição psiquiátrica.

Baseado em experiências marcantes, alojadas na sua memória, Álvaro Guerra cria um mundo imaginário,[2] distinto do mundo real, mas alicerçado neste, funcionando a escrita como libertadora de tensões acumuladas. À semelhança do que se verifica no mecanismo do sonho, em O capitão Nemo e eu, os desejos desempenham um papel fulcral e reparador perante a insatisfação do momento presente, proporcionando uma experimentação de situações e de sensações que transcendem a realidade. Ao sabor onírico, emergem recordações recentes e passadas, algumas lacunares e bem longínquas no tempo, mas que obstinadamente se recusam a abandonar a mente. Álvaro Guerra, neste seu livro, através de um caminho labiríntico, desorganizado e nebuloso, denuncia uma realidade desagradável, confirmando que a insatisfação conduz à fantasia, como meio de correcção e de compensação do quotidiano (Cf. FREUD, 1994: 52). Deste modo, surge a produção literária como uma via de comunicação do inconsciente, constatando-se que o autor não é o melhor intérprete para decifrar a sua mensagem, pois frequentemente revela aquilo que pretende esconder, embora seja a pessoa mais indicada para informar o leitor sobre os estímulos desencadeadores que conduziram à escrita e se espelham nesta, tais como a sua biografia e todo o seu contexto sociocultural. (Ibidem, p. 37)

Perante a contínua frustração, o protagonista de O capitão Nemo e eu vai-se metamorfoseando, na busca incessante de uma compensação sem, no entanto, descortinar uma alternativa, como denunciam as suas próprias palavras:

Entro na câmara dos desejos insatisfeitos, rastejando e, enquanto avanço, saio de uma pele para dentro da outra, sem modo de conhecer-me, tão constantemente diferente, mudando, passo a passo rastejante, no espaço das horas e dos dias, indo por dentro desta pele nunca igual como através de um túnel ajustado ao meu corpo.. (Guerra, 1973: 47).

É de salientar nesta frase o elucidativo emprego do verbo rastejar, utilizado no gerúndio, para transmitir continuidade, e combinado com o adjectivo rastejante, reforçando a ideia de humilhação prolongada.

À semelhança dos dois estados, sonho e vigília, completamente estanques e intransponíveis, mas que se relacionam entre si e se complementam, na medida em que estão em continuidade um com o outro, O capitão Nemo e eu encontra-se dividido em duas partes distintas, mas coesas: Sono, Sonhos, escrita em 1971, e Vig(í)lia, Vida, escrita em 1973. Assim como o sonho manifesta os pensamentos que permanecem na mente, no estado de vigília, também a 1ª parte do livro de Álvaro Guerra traduz o estado onírico, identificado com a morte, e a 2ª parte representa o despertar para a vida.

Ao basear-se predominantemente no passado, a 1ª parte é mais lenta e pesada, pois transporta, em si, toda a sobrecarga relativa à vida anterior, desperdiçada em vão, e que se traduz em insatisfação e lamentação constantes. O asfixiante ambiente envolvente é propício a reflexões individuais e sociais, traduzidas numa inconformidade, relativamente à sociedade onde o narrador se encontra inserido: “Viajei pela civilização, tive família, automóvel, casa, cão. E reconheci, finalmente, que também não era nesse mundo o meu lugar.” (Ibidem, p. 87). Decorrem variadas cenas obscuras e lacunares, localizadas num espaço e num tempo imprecisos, não aparentando qualquer elo com a acção central, tal como acontece num sonho que é distorcido e fragmentado. Pelo contrário, a 2ª parte está mais virada para o futuro, identificando-se com o estado de vigília, sendo, consequentemente, mais movimentada e denunciadora da esperança na liberdade que se aproxima, como o despertar para a verdadeira e nova vida.

Ambas as partes foram escritas antes do 25 de Abril de 1974, mas em momentos diferentes do mesmo regime político, circunstâncias estas que vão influenciar a escrita de Álvaro Guerra, também ela diferente nos dois momentos, mas sempre ambígua e propícia a múltiplas leituras, cabendo ao leitor a sua descodificação.[3] Este terá

(...) o prazer de utilizar estes textos como um caleidocópio capaz de lhe proporcionar o prazer de inúmeras “figuras”, de diferentes enigmas, de infindáveis questões, (...), na aventura de uma viagem pela mente humana e pela dinâmica das criações culturais mais longa e mais interessante do que inicialmente supusera. (Cf. FREUD, 1994: 39)

Através de uma linguagem criativa,[4] em que recorre frequentemente à metaforização e à simbologia, o autor veicula labirinticamente a sua mensagem, contestando, por um lado, o regime de então, por outro, dissimulando essa censura, pois as produções literárias estavam sujeitas ao Exame Prévio.[5] No entanto, por vezes, a censura torna-se evidente, como se constata, através da utilização de umeu que remete para um pensamento colectivo, denunciando a voz de um povo, como testemunham as expressões:

... vastos campos me mentiam a liberdade e o pão que vi negar, inúteis bandeiras de fome e sangue (...).”;(Guerra, op. cit., p. 22) “Poderiam heranças destas renegar-se, se as leis permitissem a desobriga, se elas, as leis, não zelassem pelo património e não decretassem, pelo punho dos que envelhecem, os massacres, os degredos e as guerras, e não calassem, poderosamente executivas, a fome, as torturas, a opressão.... (Ibidem, p. 72)

Ao longo de toda a 1ª parte, verifica-se um desgaste contínuo, como se o narrador, devido à sua vivência, fosse muito idoso, sem, no entanto, ter vivido, na verdadeira acepção do termo. Tal é manifestado pelo próprio: “Apocalipses geraram as minhas dores de hoje, que eu encontro, novas e sangrando, neste homem muito velho querendo acreditar na inconcebível juventude que ainda lhe não nasceu.”.(Ibidem, p. 37.). Por outro lado, transparece, ao longo do texto, uma culpa, sem ter culpa, uma desgastante autopunição, como comprovam as afirmações que se seguem:

Até ao último momento nunca me convenci que teria de puxar o gatilho, visando um homem, porque nunca o instinto foi tão ferozmente dominador como quando isso aconteceu, ao cair sobre mim uma chuva de balas. Se nenhuma delas me matou, alguma coisa ficou liquidada para sempre, e nunca mais umdever cumprido” trouxe “paz à minha consciência; (Ibidem, p. 94.) ... inatendida, a morte espalhou o seu cheiro de pólvora e medo, e mostrava-me em mãos exangues um sangue antigo e fatigado; tossia ainda na metralha, despedindo-se, ameaçadora e segura, calcando-nos contra a terra invadida pelos nossos crimes e pela nossa ingenuidade, nós, pequenos e vorazes como percevejos perseguidos com paciência sonolenta. (Ibidem, p. 33.)

Esta experiência traumatizante permanece, após muito tempo decorrido, intacta e devastadora:

E, muitos anos depois de termos escapado do pântano, quando tínhamos começado, há muito, a comer refeições quentes a horas certas, a fazer filhos legítimos, a pagar prestações, a passear de automóvel aos domingos, a ir ao jardim zoológico, ao cinema, a casa uns dos outros, muitos anos depois, dizia, a guerra ainda estava, feroz e persistente, perante o nosso absurdo esquecimento. (Ibidem, p. 115.)

Querendo manter as lembranças dolorosas fora da consciência, o ser humano recalca-as, sendo um dos sinais de recalcamento a amnésia, parcialmente manifestada pelo narrador de O capitão Nemo e eu. Ao pretender esquecer o seu passado bélico, este pensamento terá provocado uma associação de ideias entre si e a guerra, por ter participar nela, levando-o a esquecer a sua identidade e demonstrando, assim, a sua repulsa intrínseca a essa traumatizante experiência que lhe foi imposta, como se depreende pelas afirmações do próprio: “Não meio de decorar o meu nome mas seria capaz de recitar uma tirada inteira do Hamlet.” (Ibidem, p. 19.) Semelhante situação é explicada por Sigmund Freud:  “A aversão dirigiu-se, na lembrança, contra um dos conteúdos, a incapacidade de recordar surgiu noutro.” (FREUD, 1990, p. 10) No desenrolar de um contínuo sofrimento, o narrador lamenta ser “(...) um doente deste imenso, imenso hospital adormecido que é a decadente pátria cujo destino nos cumpriu, nos legou e abandonou (...)”, (GUERRA, op. cit., p. 57) considerando-se, assim, apenas mais uma vítima de todo o sistema. A destacar nesta expressão a metaforização, através da transposição de sentido da palavra hospital, para o país doente, decadente.

Ao longo de toda a 1ª parte, significativamente desordenada e ambígua, verifica-se, tal como acontece num sonho, mesmo penoso, a existência velada de um desejo, com poder curativo, (Cf. FREUD, 1988: 88) constatando-se

(...) que o sonho é deformado desta maneira, e que a realização do desejo está nele disfarçada de um modo tão irreconhecível, devido a uma repugnância e a uma intenção de recalcar o seu tema e o desejo que ele traduz.” (Ibidem, p. 161)

A confirmar esta teoria, as próprias palavras do narrador: “Na mais oculta zona do passado que eu não poderei perder, surge uma forma conhecida, amável. Um desejo.” (GUERRA, op. cit., p. 18) Deste modo à semelhança do capitão do submarino Nautilus, que foi capaz de descer às profundezas do oceano, assim o narrador de O capitão Nemo e eu, através do sonho, consegue alcançar o mais profundo do seu íntimo. Exclusivamente o sonho o poderia possibilitar, pois este é capaz de submergir até ao local onde o pensamento não adquire consciência, devido a múltiplas inibições e restrições.[6] O sonho debruça-se sobre recordações passadas, algumas quase extintas, conseguindo desenterrar cenas intactas, que permanecem inacessíveis ao estado de vigília, como se verifica através da vivência do narrador:

O passado confirma, de modo diferente, a sua invulnerabilidade, nos sucessivos moldes da minha transfiguração. Sei que ele nada perde irremediavelmente e que a minha luta é sem glória (...). O meu passado é vasto de milhares de anos ....( GUERRA, op. cit., p. 28)

A segunda parte é mais breve e clara relativamente à primeira, pois, por um lado, representa sobretudo a vida que ainda está por viver, por outro, denota uma censura mais visível em certos excertos, tais como: “(...) poder-te-ei dizer que quis outro país / sem horas aparentes / que mil coisas diferentes foi o que fiz / como escrever a vida mais do que vivê-la até alcançar a vertigem”. (Ibidem, p. 135.) Esta crítica sobressai através do uso da minusculização de deuspátriafamília,[7] apresentada num termo, não para minimizar a importância dos três elementos que a compõem, como para demonstrar que são coesos e inseparáveis. Trata-se do antigo modelo português cujo

(...) conservadorismo exaltava valores de tradição, ordem, estabilidade e paternalismo, expressos na fórmula mandada ensinar desde 1938 nas escolas, a divisaDeus, Pátria, Família”, expressão completa de um regime sem carisma nem modernismo, antes voltado para o ucronismo de uma ordem social e económica que tentava manter intacto o velho “Portugal português” dos campos, dos camponeses, da nossa mítica pax ruris ou aurea mediocritas anterior à própria Revolução Industrial. (Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, 1992: 370).

Para transmitir melhor a ânsia de liberdade, esta 2ª parte não apresenta pontuação, para dar a noção da celeridade. Por outro lado, o patente desrespeito pela norma e o recurso à ambiguidade e à simbologia denunciam uma crítica mais frontal ao regime dessa época, e simultaneamente revelam uma esperança em melhores dias: “(...) apenas o futuro poderá fazer justiça à nossa solidão”. (GUERRA, op. cit., p. 150) Também como uma chamada de atenção, o narrador utiliza, frequentemente, nesta 2ª parte, os jogos de sonoridade, não se confinando, assim, ao que diz, e ultrapassando a sua própria mensagem, pois confere à linguagem um carácter poético, repleto de sentidos: “(...) e as consoadas essas incongruências condenadas – seio e garupa e rabanadas (...)”. (Ibidem, p. 144) Através dos jogos de palavras, o autor vai brincando e ironizando, escondendo e revelando, transmitindo, assim, obscuramente as suas marcantes vivências que, devido a diversos traumas, se apresentam distorcidas pelo inconsciente: “(...) e aos governates e magnantes – os de agora e os de antes – aos minários e seus secristos e aos profodentes e presissores estamos gratos e enternecidos ante o porte eficiente dos generentos e sariais (...)”. (Ibidem, p. 145)

É através da simbologia que o livro termina, com o recurso à maiusculização, para realçar a importância da mudança e, mais uma vez, com referência ao mar, símbolo da tão ambicionada liberdade, muito sonhada e manifestada através das palavras do capitão Nemo: “O mar é tudo! (...) aqui é que independência! Eu, no mar, não tenho superiores! Sou livre!” (Cf. GUERRA op. cit., p. 92.) A salientar, ainda, neste desfecho, a referência ao subtítulo “Crónicas das horas aparentes”, designação em que transparece o desperdício da vida, dando a ideia de sobrevivência, através do acto da escrita, pois o protagonista considera imperioso “(...) inventar a vida que não temos mesmo que tenha de a fazer escrevendo” (Ibidem, p. 134)

Em suma, o narrador de O capitão Nemo e eu aspira pela libertação do seu povo, tal como o seu modelo, o príncipe índio, no entanto, “(...) seja por cansaço, ou por descrença, o protagonista põe de lado esse projecto, que se adivinha  de acção violenta, e opta pela escrita como o mais matizado modo de luta.” (Teixeira, op. cit., p. 118)

 

Bibliografia

Fonte

Guerra, Álvaro. O capitão Nemo e eu. Lisboa: Estampa, 1973.

 

Outros textos

Coelho, Nelly Novaes, “O capitão Nemo e eu” de Álvaro Guerra ou a aventura duma escrita, in Colóquio/Letras, nº 22, 1974.

Eco, Umberto, Leitura do texto literário. Lisboa: Presença, 1979.

Freud, Sigmund. A interpretação dos sonhos, trad. Lubélia Magalhães, vol. I, Lisboa: Pensamento, 1988.

––––––. Psicopatologia da vida quotidiana, trad. José Marinho, Lisboa: Relógio d`Água, 1990.

––––––. Textos essenciais sobre Literatura, Arte e Psicanálise, trad. Manuela Barreto, Mem Martins. Publicações Europa-América, 1994.

Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira Atlas Histórico, Lisboa: Editorial Enciclopédia, 1992.

Brito, Ana Maria et al (org.). Sentido que a vida faz. Porto: Campo das Letras, 1997.

Stern, William, Psicologia Geral, trad. Fritz Berkemeier. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1950.

Teixeira, Rui de Azevedo, A Guerra Colonial e o Romance Português. Lisboa: Editorial Notícias, 2ª ed., 1998.


 

[1] “A guerra colonial é de facto uma das situações em que o topos de partir/ficar, ir/regressar se torna explícito. Na sociedade portuguesa, entre 1961 e 1974, milhares de soldados embarcaram para as colónias em guerra; mais tarde, regressaram, mas o reencontro foi sempre complicado. E a literatura naturalmente testemunho disso.» Isabel Allegro de Magalhães, “Narrativas masculinas e femininas sobre a Guerra Colonial: dois exemplos de perspectivas marcadamente sexuadas», in Sentido que a vida faz, org. Ana Maria Brito et al., Porto, Campo das Letras-Editores, S. A., 1997, p. 286.

[2] “Amalgamando duras ou gratas experiências vividas concretamente (na carne e/ou no espírito) com situações sonhadas ou imaginadas, Álvaro Guerra cria uma literatura que responde directamente às novas exigências de nossa época: a fusão entre um novo enfoque do complexo Homem/História/Natureza/Mistério com uma nova maneira de encarar a Literatura e a Linguagem.» Nelly Novaes Coelho, “O capitão Nemo e eu» de Álvaro Guerra ou a aventura duma escrita», in Colóquio/Letras, nº 22, 1974, p. 52.

[3] “Uma única coisa tentará com fina estratégia: que, por muitas que sejam as interpretações possíveis, umas repercutam sobre as outras, de tal modo que não se excluam, mas que, pelo contrário, se reforcem mutuamente.» Umberto Eco, Leitura do texto literário, Lisboa, Editorial Presença, 1979, p. 61.

[4] “A nova atitude criativa de Álvaro Guerra centra-se, pois, na palavra libertada do jugo das convenções linguísticas e literárias, a fim de poder revelar novas e essenciais realidades, ocultas sob as fórmulas desgastadas do convencional vigente.» Nelly Novaes Coelho, op. cit., p. 53.

[5] “O escritor teme a censura, e é por isso que modera e deforma a expressão do seu pensamento. Segundo a força e a susceptibilidade dessa censura, deverá, ou evitar simplesmente certas formas de ataque, ou contentar-se com alusões, não dizendo claramente de que se trata, ou dissimular sob um disfarce inocente revelações subversivas (...). Quanto mais severa for a censura, mais completo será o disfarce, mais engenhosos serão os meios que utiliza para fazer compreender ao leitor o verdadeiro sentido.» (FREUD, 1988:146).

[6] “O sonho pode descer a camadas da personalidade ainda mais profundas, tratando-se de desejos e receios, de que não se dá conta na vida acordada ou porque estas tendências não têm consistência perante o pensamento (...) ou porque da esfera da vontade surgem proibições e inibições (...) que impedem a sua consciencialização.» (STERN, 1950: 453-454).

[7] “(...) nas peças que componha uma ode triunfal à paciência e glória de deuspátriafamília alcatifada e mobilada e condenada a prestações por toda a vida (...)». Ibidem, p. 149.