Gabriela na malha da tradução
domesticadora dos anos 60

Adilson da Silva Corrêia (UNEB)

Oh, Sultan, what have you done
With my blithesome girl?

(AMADO, 1972)

Organizar trabalhos em torno de tradução é bastante complexo e requer consultas inevitáveis a outros ramos do conhecimento humano, o que nos cria, se considerarmos as variadas combinações e os focos de análise pretendidos, um espaço de inesgotabilidade em termo de estudos tradutórios.

É dentro dessa inesgotabilidade que construímos este espaço de compreensão, baseado na tradução domesticadora, inserida, inevitavelmente, em um contexto histórico caracterizado pelos movimentos sociais de vozeamento dos anos 60, "aterrorizadores" dos modelos sociais vigentes daquele momento. Foi nesse contexto que Gabriela chegou aos Estados Unidos, munida de histórias repadronizadas pelo mercado que muito prometia. Posteriormente, o termo mercado será retomado sob o nome de best seller.

O nosso estudo, portanto, constitui-se em um recorte daquilo que compreendemos por tradução domesticadora e abrange, principalmente, dois campos do conhecimento humano, aqui intimamente ligados, a saber, a Literatura Comparada e a Tradução. A concepção que temos é aquela elaborada por Faria (1996) de que a tradução, para o estudante de Literatura Comparada, funciona como um tubo de ensaio para a análise de uma influência em ação. (FARIA, 1996: 121) Ao considerarmos o texto como sendo a unidade da tradução (Vilela 1994), definimos o nosso objeto de estudo: os textos Gabriela cravo e canela, de Amado e Gabriela clove and cinnamon, de Taylor e Grossman.

Precisamos tratar, primeiramente, nos nossos estudos, das definições referentes aos termos tradução e domesticadora, bem como das implicações deles na obra amadiana. Começaremos pelo termo domesticadora, talvez, o mais virulento da combinação, pois entendemos a tradução como um processo de conhecimento lingüístico intercultural inevitável às sociedades.

Entremos com o substantivo masculino <domesticador>, definido por Aurélio (2001) como aquilo que serve para domesticar. Seguindo as definições do mesmo lexicógrafo, encontramos a do verbo domesticar, que é, dentre outras, tornar-se sociável; civilizar-se. Continuamos, ainda, com o mesmo problema de definição, até encontrarmos a do verbo civilizar-se no mesmo dicionário, cuja entrada possível para o nosso trabalho é dar cultura ou refinamento a; ou ainda, adaptar ou integrar à vida humana em sociedade, suas atividades, instituições, etc. (HOLLANDA FERREIRA, 2001: 482)

A partir desse civilizar-se, definido por Aurélio, é que compreenderemos o mergulho sofrido pela obra amadiana no modelo social do tradutor, na submissão dela aos "burilamentos" e "amansamentos", para se engajar no modelo social do leitor anglo-americano, desviando-se da linguagem supostamente estranha através de mecanismos de apagamentos, de inserções lingüísticas, conforme leitura que abrigue as idéias da década de 60.

Acreditamos, neste sentido, que se o texto original fosse submetido a uma nova tradução, implicando novo tradutor em outro momento, estaria representando outras leituras, atendendo, por sua vez, a outras regras vigentes, o que gera uma nova tensão no espaço tradutório, provocando o surgimento de outras formas.

Assim, conceituamos tradução como espaços de leitura em que pode haver a confirmação, negação ou até mesmo construções de crenças estereotipadas a respeito do outro, baseando-se na idéia de propagação de valor do texto literário, de G. Mayer (1983). Evidentemente, não podemos deixar de entender a tradução como um ato eminentemente lingüístico, posto relacionar-se com a interpretação textual, nos seus variados níveis. Sobre tradução, Pedreira (2001) escreve que ela é um poderoso instrumento para a construção de representações de culturas estrangeiras, [...] (PEDREIRA, 2001: 40).

Inferimos, a partir desses conceitos, que o tradutor é o responsável pela leitura da cultura do outro, no nosso exemplo, via literatura, e, consequentemente, pela interpretação dela de acordo com os valores sociais da cultura de chegada, realizando uma ordem de intervenção, tanto no que se refere ao âmbito das estruturas lingüísticas, quanto à produção das idéias convenientes à cultura da língua de chegada, sendo que essas últimas são reveladas através das primeiras.

Por isso, é necessário trazer para o espaço da tradução, procurando sempre entender, as imbricações entre o texto e os dados a respeito do tradutor, dos leitores da obra traduzida, do momento da tradução e do cenário social para onde a obra foi traduzida, atendendo às fortes solicitações de Mignolo (1996) de que a construção de categorias geoculturais está bastante ligada às línguas imperiais. (Tradução nossa) (MIGNOLO, 1996: 25)

Inferimos dessa leitura que a base discursiva sobre o outro, no processo de tradução, está sendo realizada sob os moldes sociais de quem está lendo, sobre o que é lido, na época em que se está lendo e que o resultado dessa interpretação nem sempre é encarada de forma passiva, historicamente, existem as forças contradiscursivas que passam a se realizar nas novas práticas.

Sobre as intervenções do tradutor , Pedreira (2001) comenta que sem dúvida os valores pessoais do tradutor desempenham um papel importante no trabalho tradutório, que sofre interferência da sua visão emocional e intelectual (PEDREIRA, 2001: 45). Podemos entender por visão emocional e intelectual o conjunto de forças que vai atuar na leitura e na interpretação da cultura do outro, por sua vez, mantendo, regulando ou produzindo um conjunto de crenças sobre o outro, situando a tradução como espaço de manutenção, produção e regulação de crenças.

Nas observações sobre os tradutores da obra, Pedreira (2001) relaciona a domesticação de Gabriela cravo e canela, às restrições sociais, quando se levam em consideração o pudor e a moral puritana. É em nome delas que os apagamentos, as inserções e as reduções são recorridas. Com isso, alguns temas são exclusos para darem lugar a outros pertinentes àquele padrão social, quando se consideram as concepções de mundo daquele espaço de valores sociais.

Pedreira (2001), ao intitular a sua pesquisa de Gabriela e os filhos de Calvino, constrói de imediato a imagem religiosa do ambiente doméstico da obra traduzida e, de uma certa forma, desenha as inevitáveis modificações decorridas do ato tradutório. Os apagamentos de algumas palavras que denotem sexo podem ser justificados pela presença das idéias calvinistas. Um exemplo captado pela autora é a substituição da palavra mulher da vida, da obra original, pelo substantivo generalista woman. Sob essa perspectiva, podemos entender a influência de um dos modelos sociais vigentes atuando sobre a tradução, fornecendo o código mais apropriado, é a seleção lingüística. A base discursiva do trabalho de Pedreira (2001) centra-se no leitor lowbrow, na maioria protestante, o que leva as idéias de pudor e moral puritana calvinista a serem incorporadas à obra.

Na verdade, Gabriela clove and cinnamon foi projeto para o mercado americano e que, ao mesmo tempo, estaria divulgando a cultura brasileira via literatura sobre os moldes da tradução. No Brasil, Gabriela cravo e canela foi sucesso, levando Jorge Amado, em 1959, exatamente um ano depois do lançamento da obra, à conquista de alguns prêmios nacionais (Andrade, 2003)

Gabriela clove and cinnamon, de Grossman e Taylor, chegou aos Estados Unidos no ano de 1962, tempo mais que suficiente para a percepção do mercado americano do sucesso de vendagem no Brasil. Para Pedreira (2001), esta época representou um momento da construção dos modelos latino-americanos pelos estadunidenses sob uma outra ótica colonial, marcadamente, sensual e exótico, significando de uma certa forma uma re-elaboração do outro modelo colonial que via os outros habitantes americanos (gentios) como preguiçosos e "desmazelados". Segundo a autora, a preocupação estadunidense de conhecimento do Brasil e de seus vizinhos, politicamente, centrava-se no estabelecimento da Revolução Cubana e de sua repercussão nos países latinos, caracterizando uma estratégia ideológica anglo-americana. O fato é que a Revolução Cubana estava se processando, no ano de lançamento de Gabriela clove and cinnamon, nos Estados Unidos, na qual a leitura, indiscutivelmente, estaria formando interpretações variadas a respeito da cultura do Outro americano.

Para entender essa leitura traduzida e a relação dela com a estratégia político-ideológica anglo-americana para a América Latina, vamos recorrer a F. Jameson (1991) que historicizou os anos 60, sob alguns aspectos, as mudanças, advindas com eles, no cenário americano e de uma certa forma internacional, bem como a S. Guimarães (2002).

Na política americana, observa-se uma forte tendência de vozeamento de negros e de mulheres, decorrentes da onda de libertação de alguns países africanos, com uma suposta e matizada desestabilização do capitalismo, oriunda dos construtos maoístas e estalinistas, advindos da Europa e da Ásia .

No ano anterior ao lançamento de Gabriela clove and cinnamon, Cuba, audazmente, alia-se à União Soviética, rompendo as relações diplomáticas com os Estados Unidos em 1961 (AQUINO, 1990: 407). Isto lhe custará fortes sanções, por parte do governo norte-americano, no cenário internacional, como a imposição do bloqueio econômico, reforçado pela OEA em julho de 1964 (AQUINO, Op. cit., p. 498), pela insubordinação e ameaça ao modelo vigente nas Américas. Não obstante isso, a ilha, com a economia tipicamente de base agrícola, consegue sobreviver integralmente, organizando-se em um modelo socialista persistente.

Entretanto, o que nos chama a atenção para essa ilha, nos anos 60, é o modelo de revolução cubana, tomado por Pedreira (2001) como um fator de "catalização", que gerava idéias que iam de encontro à base capitalista da sociedade norte-americana. Ao mesmo tempo em que essa idéias eram organizadas, Gabriela clove and cinnamon se concretizava. No plano das idéias, podemos confirmar que a Revolução Cubana conseguiu abalar as estruturas capitalistas da época, gerando inclusive perseguições aos comunistas, reorganizando novos espaços no campo do pensamento e estratégias por parte do Ancient model. Incontestavelmente, Gabriela cravo e canela foi lida já com esta carga do movimento cubano no cenário americano.

As idéias geradas neste momento, no plano político americano mais geral e que incomodavam o modelo vigente, eram orientadas para a organização do modelo cubano de revolução, que levaram a independência de Cuba do poder americano. Jameson (1999) comenta que a experiência cubana revelou-se original, como um novo modelo revolucionário a ser radicalmente diferenciado de formas mais tradicionais de prática revolucionária (JAMESON, 1991: 116). Muito distante, portanto, do que propunham as idéias maoístas e estalinistas, fugindo, portanto, da alçada dos estudos teóricos que propunham explicar o funcionamento desses modelos políticos. Para entender o modelo da Sierra Maestra, Jameson (1999) utiliza a teoria de Foco, construída na célebre obra Revolution dans la revolution?, de Debray. Nela, a construção do espaço revolucionário dá-se diferentemente por comportar:

...novos sujeitos revolucionários, forjados na luta de guerrilha, indiferentemente, a partir do material social de camponeses, trabalhadores urbanos ou intelectuais, mas que transcendem de muito essas categorias de classe. (JAMESON, 1991: 117)

Essa "aterrorização" socialista, que gerou uma onda de perseguição de pessoas, sob a insígnia de comunistas, por um bom período de tempo, nas Américas, promovendo prisões, torturas, banimentos, asilos políticos e, muitas vezes, mortes dos insubordinados, preparava, concomitantemente, uma estrutura capitalista capaz de restabelecer e manter a ordem, como afirma Guimarães (2001) [...] a revolução cubana e os movimentos insurrecionais que eclodiram em diversos países tornaram necessária uma política americana de cooperação com os esforços nativos de desenvolvimento, [...].(GUIMARÃES, 2001:.89) Para Jameson (1999), muito embora os anos 60 tenham representado um momento de vozeamento dos oprimidos, paralelamente a essas construções de direito civil, são montadas estruturas do poder capitalista capazes de organizar o que "matizadamente" estava se organizando.

O modelo revolucionário cubano diferente supostamente sucumbiu-se com a morte trágica de Che Guevara, na Bolívia, em 1967 (JAMESON,. Op. cit.). Novamente, tentou-se calar o que é inevitável ao mundo, pois o modelo político cubano, proposto pela Revolução, evidentemente, com as devidas mudanças temporais, mantém-se na imagem de Fidel Castro, companheiro de luta de Che Guevara, na Sierra Maestra.

Paralelamente à essas organizações no campo político americano, os estudos de tradução estavam passando por espaços construtivos de afirmação científica, liberando-se dos ideais puramente artísticos. Segundo Aguiar (2000), o estruturalismo lingüístico chomskiano ganha atenção maior de Nida em 1963 e as estruturas profundas e superficiais passam a explicar os mecanismos da tradução.

Conforme Aguiar (2000), nos anos 60, observa-se uma bipartição no campo dos estudos tradutórios. Nos Estados Unidos, criam-se as oficinas de tradução, bastante criticadas por Nida, o que gerou a inserção dos conhecimentos lingüísticos nas explicações do ato de traduzir, oportunizando a tradução ganhar uma característica científica, liberando-se das concepções subjetivistas das oficinas de tradução.

É nesse contexto americano revolucionário e de modificações das concepções do ato de traduzir, que Gabriela clove and cinnamon chega aos Estados Unidos. Preparada desde então para ser best seller, constituía-se na leitura da cultura baiana, evidentemente brasileira, empreendida pelo editor Alfred Knopf, e deveria cumprir o papel social relevante na elaboração das imagens culturais da Bahia, no leitor americano. Sobre esse ponto, Pedreira (2001) informa que:

...pode-se supor que o romance foi traduzido com a intenção clara de tornar-se um bestseller, conforme manifestou o editor Alfred Knopf em entrevista à imprensa, durante uma visita ao Brasil, um ano antes do lançamento da obra nos Estados Unidos. (PEDREIRA, Op. cit., p. 33)

Por outro lado, quais são os pré-requisitos para que uma obra alcance a ordem de best seller? Para Pedreira (2001), alguns pontos devem ser considerados, tais como: satisfação das exigências comerciais; preenchimento de expectativas diversas daquelas pretendidas pela cultura de origem e, especificamente, no caso de Gabriela cravo e canela, colaboração com uma agenda política do cenário doméstico de chegada.

Para entendermos esses pontos de fabricação, ou seja, a própria construção do best seller, vamos recorrer a Milton (2002), que remonta, inicial e historicamente, o atrelamento das traduções a uma alta cultura dominada por um grupo aristocrático que tem acesso às línguas estrangeiras e à literatura (MILTON, 2002: 81). Nessa visão, a tradução ficava reduzida a um pequeno grupo aristocrático e havia a intenção de fidelidade com as formas originais, pelo simples fato da manipulação de obras em outras línguas por uma reduzida camada de leitores.

Essa tradição será rompida, pelo fato das novas demandas mercadológicas concernentes às mudanças no conceito de leitor, principalmente, pelas expansões dos programas de alfabetização, o que irá iniciar uma nova era na relação leitor/consumo. Os livros traduzidos passam também ao alcance dessa grande massa leitora, mas com as conveniências do mercado, em outras palavras, de forma a não atrapalhar a ordem, e, evidentemente, a oferecer lucratividade. Nascia imperiosamente a idéia do clube do livro.

Nessa nova relação da tradução/leitor, pressupõe-se que a reação emocional do leitor ou do espectador é o que importa, e qualquer tipo de reflexão sobre as causas está ausente. (ECO,1993:.74-77 apud MILTON, 2002: 84) Neste movimento de fabricação e de domesticação, Milton (2002) salienta[...] a cultura de massa transforma os clássicos em produtos de consumo. (ECO: 1993: 41 apud MILTON, 2002, 84)

Sob esses aspectos, entendemos que a relação da tradução com o contexto político-sócio-econômico do leitor/tradutor leva aos apagamentos e aos deslocamentos temáticos que fazem parte de forças capazes de "matizar" a realidade que a obra estrangeira constrói, seria de certa forma uma desestrangeirização. Na década de 60, por exemplo, a idéia de qualquer imagem que lembrasse o comunismo deveria ser apagada ou modificada. Milton (1999) lembra o apagamento da cor de Red House de Squire Cass para casa amarela, na obra Silas Marner, de George Elliot. Como a cor, outras formas deveriam ser reduzidas, tais como nomes russos

Para que seja construído um universo adequado ao leitor de best seller, a tradução transparente se manifesta quando se preferirá situações mais diretas e figuras de contornos mais simples, levando o leitor a envolver-se nas vidas e nas preferências morais das personagens das obras de ficção. (MILTON,. Op. cit.)

Cria-se, nesses espaços, um leitor específico para o mercado, impossibilitado de interagir nas forças discursivas maiores, incapaz de transpor o limite da obra literária com a realidade, por isso mesmo, é-lhe vetado politicamente de entrar em contato com propostas vindas de outras partes do mundo, não sendo-lhe possível refletir sob a base de outras idéias.

Mencionando o pensamento de Ortega y Gasset, Milton (2002) constrói uma atmosfera perigosa para a tradução por ser

uma tarefa misteriosa e impossível, pela qual se pode tentar levar outras línguas e grandes autores a afetar o pensamento e a linguagem de alguém, e assim erguer-se acima do nivelamento cultural da sociedade moderna. (MILTON,. Op .cit., p. 3)

Por este viés, existe a construção de uma "tirania", tanto por parte do tradutor, quanto por parte do editor, quando se pensa no processo de apagamento e de mudanças das narrativas profundas da obra de partida, tendo em vista o tipo de leitor para quem a obra é direcionada. Esse leitor traído acredita ler a versão original ou, pelo menos, uma representação dela, contentando-se com essa espécie de encontro com a "cultura" (MILTON,. Op. cit., p. 6)

Em Gabriela clove and cinnamon, os estudos de Pedreira (2001) detectaram o deslocamento do tema. O romance original constrói, como narrativa profunda, a questão do progresso na região cacaueira, compreendida pelas cidades-pólos de Ilhéus e Itabuna, sob a liderança da primeira. A essa narrativa elementos norteadores são posicionados na obra, personagens compõem a construção do espaço ficcional amadiano. O deslocamento da narrativa é percebida, quando se observa a recepção crítica e dela retiram-se elementos essenciais que comprovam essa mudança, como mostram os seguintes depoimentos, coletados de um site na Internet, de leitores americanos:

I think that should be the title of this book (and all of the other Amado books I have read). While the story becomes interesting after a while, I get bored reading about how beautiful the women of Bahia are (although, it's true they are!). The beginning of the book is full of descriptions of old men and young beautiful women, which as women is not only boring in such quantities, but also unappealing. It may be a little difficult for some women to laugh off, the way the author does, the social inequities of women that occurred at that time.

That being said, the story does pick up after Gabriella comes into her own. After the first 1/3 of the book, I couldn't put it down - Gabriella is a great character! She'll make it worth reading Amado's sometimes-borish descriptors. http://www.american-webshop.com/book/0380012057 (grifo nosso)

Neste depoimento, podemos perceber o conhecimento, por parte do leitor, de outras obras amadianas, além de Gabriela clove and cinnamon. No entanto, a tessitura dele nos faz crer que a intenção profunda dessa obra baseia-se intensamente na personagem feminina de Gabriela e na beleza que ela representa, enquanto mulher baiana, o que não pode ser aceito na obra original. Esse aspecto é secundário, quando se pensa no tema da posse e do progresso na região cacaueira da Bahia.

O alto teor descritivo da beleza e da sensualidade da mulher baiana, em detrimento de outros elementos temáticos, tornou a leitura da obra traduzida entediante, segundo o depoimento. Este fato pode ser constatado, quando observamos os desvios de elementos temáticos da obra amadiana na obra traduzida.

Podemos tomar por exemplo o assassinato de dona Sinhazinha e do doutor Osmundo. O romance original constrói o espaço do assassinato dentro de costumes da região cacaueira dos anos 20. Nesse momento, imperava a ordem dos coronéis posseiros que detinham o poder político da região grapiúna e, por isso mesmo, achavam o direito de matar, como registra a obra original:

Assim era. Numa região recém-chegada de barulhos e lutas freqüentes, quando as estradas para as tropas de burro e mesmo para os caminhões abriam-se sobre picadas feitas por jagunços, marcadas por cruzes dos caídos nas tocaias, onde a vida humana possuía pouco valor, não se conhecia outra lei para a traição de esposa além da morte violenta. Lei antiga, vinha dos primeiros tempos do cacau, não estava no papel, não constava do código, era no entanto a mais válida das leis e o júri, reunido para decidir da sorte do matador, a confirmava unanimemente, cada vez, como impô-la sobre a lei escrita mandando condenar quem matava semelhante. (AMADO, [1975]: 96)

A intenção do romance é revelar mudanças de costumes sócio-políticos dessa região de fora-da-lei, instalando uma nova ordem, na qual o código escrito vai prevalecer, e o coronel assassino será julgado e condenado à prisão.

Contudo, a mesma passagem, no romance traduzido, é alterada, quando a causa do assassinato, provocado por costumes advindos de um código dos donos das fazendas do cacau, é apagada, como observamos na citação:

This is how it was. For the customs of the region were still strongly affected by the era of constant fighting and disorder, when a human life was considered of little value and when trails hacked out by trigger men and bordered by the graves of ambush victims were broadening into roads of donkey trains. The only treatment for a fairless wife was violent death. Whenever a man was tried for his observance of this unwritten law (and consequent violation of the written law against homicide), the jury brought in a unanimous verdict of not guilt (AMADO, 1972: 104)

O apagamento provoca um outro fenômeno na tradução, o acréscimo de um novo enunciado (entre parênteses) na tentativa de demonstrar o repúdio ao assassinato do próximo. Na verdade, uma saída encontrada pelo tradutor para dizer que matar da forma como aconteceu na ficção é ato condenável pelo código legal escrito. Não devemos nos esquecer de que essa passagem tem características própria e distinta, provocando reações diferentes daquelas trazidas pela obra original.

No entanto, a leitura é um local em que a variedade de interpretação é constante e amplamente mutável. Desta forma, outros elementos podem ser captados a partir de outros depoimentos, sem prejudicar a hipótese de que a desestrangeirização da obra no processo de tradução desloca muitos temas das obras originais.

This book delves into the culture and history of Bahia, 1one of the most celebrated parts of Brazil. It is one of Amado's best known works, if not the best one. The story depicts Gabriela, a sensous free spirited woman who migrates from famine to the city of Ilheus, where her story meshes with the city's story to form a great mixture. Gabriela works as a cook, and torments the hearts of men with her sensous and pure nature, while she delicately touches the revolving life of the city.

2 The book also depicts with great detail the culture of the region, with special focus on the food. If you have ever been to Bahia, 3you will know how unique the tastes there are. This book leaves such a taste in the mouth. 4If you are planning to go on tourism to the Brazilian Northeast, this book should help raise the anticipation level. (grifo nosso) http://www.american-webshop.com/book/0380012057

Nesta outra impressão da leitura do romance, percebemos que ele funciona como um espaço descritivo da culinária e da geografia baiana, por isso pode ser um guia turístico, como podemos inferir pela idéia do grifo 4 - se estiver planejando fazer turismo no nordeste brasileiro, este livro deverá lhe ajudar a levantar o nível de antecipação (tradução nossa). Novamente, o alto teor descritivo do romance traduzido é levado em consideração em detrimento de elementos essenciais para a compreensão da história dele. O que se poderia esperar, em ambas as interpretações, e se a tradução não fosse tão a favor da desestrangeirização e tão pelas forças do mercado, seria uma leitura orientada para um local da Bahia, especificamente, a zona cacaueira, construído a base de sangue e que mudou pela força das novas tecnologias.

Construções estereotipadas da Bahia são realizadas, quando o leitor a encara como sendo uma das partes do Brasil que mais festeja, evidente na idéia do grifo 1- uma das partes do Brasil mais festiva (tradução nossa). Não existem dados, no romance original, que indiquem comparação das festas ocorridas na região grapiúna com outras partes do Brasil, até por que são espaços particularizados, embora sob o mesmo território. O romance original traz os festejos característicos de uma dada localidade baiana vistos em uma dada época.

Podemos concluir, com essas duas leituras, que foi perdida a dimensão temporal na obra traduzida. Um leitor nativo e avisado jamais pensaria em encontrar uma Ilhéus no modelo da Intendência, em plena década de 90. Por outro lado, devemos concordar com o leitor da obra traduzida o primor que Jorge Amado dava à culinária baiana, mas no romance original ela se mistura com a história para compor a tessitura do texto, faz parte dele e não se acentua em relação aos demais fatos, como evidente no grifo 2 - o livro descreve também em grande detalhe a cultura da região, em especial a culinária. (tradução nossa).

Essa idéias corroboram com a hipótese do deslocamento de temas, dentro de um processo de banalização da obra. A narrativa profunda foi modificada para aspectos rotineiros, que possivelmente causariam menos estranhamento ao leitor doméstico. Mais, o que poderemos esperar de um best seller, senão uma violência contra a obra original, com o conseqüente silenciamento do autor e da cultura que pretende mostrar.

Retomando a idéia de Milton (2002), tradução e política se estreitam, no momento em que percebemos a desestrangeirização das obras, vinculada à fluência e à transparência gramatical da língua de chegada.

Essas constatações foram observadas também por Pedreira (2001) ao confirmar:

...graças ao trabalho tradutório de Grossman e Taylor, a versão de Gabriela cravo e canela em língua inglesa, trinta e nove anos após seu lançamento, ainda é vista como entretenimento, apenas um folhetim romanesco e sua leitura sob o ângulo do exotismo continua provocando freqüentes reações etnocêntricas, [...]

Sob essa visão da autora, somos obrigados a entender que a tradução de Gabriela cravo e canela influenciou e continua a influenciar a construção das imagens baianas, brasileiras, no leitor americano, não obstante a temporalidade ter construído e preparado historicamente novos cenários e como se o próprio Amado não tivesse adiantado os seus rumos na literatura brasileira.

Não podemos, dentro dessa formas, sermos ingênuos o suficiente em acreditar em traduções em que não existam perdas. A tradução, nessa concepção, significa uma autoria. No entanto, temos do outro lado o plano da expectativa do leitor de estar conhecendo uma cultura diferente via a sua língua. Devemos pensar no tradutor como leitor de culturas, constituindo obras a partir dessa leitura que atuará em construções imagísticas no espaço de leitura de vários leitores.

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