MONTEIRO LOBATO E A LINGUAGEM DO JECA TATU

Shirley Cabarite da Silva (FATEA/ USP)

Ao final do primeiro quartel do século XIX, no Brasil, inicia-se a celeuma sobre a língua nacional. Em 1825 José Bonifácio denuncia o relacionamento entre língua e política, reivindicando para os brasileiros o direito de criar neologismos cultos, contrariando os puristas. Na geração seguinte, a questão dos neologismos constituirá o ponto central do conflito entre os que defendem e os que negam a existência de uma língua própria do Brasil. Nos meados do mesmo século, Varnhagem vem ressaltar a diversificação da língua falada, principalmente na prosódia e no léxico, o que atribui ao acastelhamento do português falado em Portugal, apresentando-se também diversificado no território nacional (Pimentel Pinto, s/d)

A partir daí esboçam-se as bases dos debates que se sucederão em torno da língua. “Condenar-se-ia tudo aquilo que não fosse rigorosamente cortado pelos figurinos da metrópole.” (Silva Neto, 1986b: 64)

No século seguinte, a celeuma continua influenciando a nova geração de intelectuais. Dentre eles encontra-se Monteiro Lobato, que vem participar da discussão acerca da língua nacional.

No ano de 1903, e isto dura quarenta anos, Monteiro Lobato inicia as trocas de correspondência com seu amigo de juventude Godofredo Rangel; estas cartas constituem o livro A Barca de Gleyre. Além das cartas ao amigo e a muitos outros companheiros, o escritor prefaciou muitas obras importantes. Certa noite, na casa de Cícero Marques, ele encontra Nhô Bento - poeta residente na cidade de Lagoinha - Vale do Paraíba. Num dado momento, Cícero pede a Nhô Bento que recite um dos seus poemas. O que causou surpresa em Lobato, pois não podia imaginar que aquele homem com jeito bonachão pudesse ser poeta. Então já se preparava para, como ele próprio afirma, “a séca.”. Esses recitativos de encomenda são, usando as mesmas palavras de Lobato, “em geral, uma estopa que a gente tem de engolir de cara amável”. Nhô Bento começa a declarar seus poemas. O escritor, encantado com a singeleza das poesias, diz ser estes os melhores poemas caipiras que já ouvira. E acrescenta: “é assim que na roça as meninas ou a mulher do jeca fazem os seus rosários, muito mais bem vistos no céu do que esses rosários de luxo das damas ricas das cidades” E, a pedido de várias pessoas e do próprio poeta, prefacia a obra (Prefácios e Entrevistas, 1956)

Leia-se aqui um trecho de As contas de capiá

É só a gente passá

Um fio de linha no meio,

pra mode enfia as continha,

Com jeito pra não erra...

Quando o fio tivé bem cheio,

Cô’as conta tudo juntinha,

Também ta prontinho e feito

Um rosarinho prefeito

De contas de capiá...

Mas como eu ia contando

As conta de capiá

Azurzinha, bonitinha,

Quando elas fica quietinha,

paradinha na varinha,

Tão vendo o córgo passá

Este trabalho visa resgatar, nesse documento (Prefácios e Entrevistas), a metalinguagem de Monteiro Lobato, no momento em que ele defende a norma popular. No prefácio de “As contas de Capiá ” de Nhô Bento, ao elogiar o trabalho do poeta vale paraibano, discute o uso da língua pelo povo, justificando a criação do jeca tatu. Com isso, acaba desmistificando a idéia corrente defendida por Lima Sobrinho (1958) e por Darcy Ribeiro (1998) de que fora elitista ao criar tal personagem. Se o fato de se estabelecer oposição entre povo e classe dominante implica posição elitista, então o foi. Acreditamos que, na verdade, ele sempre esteve imbuído de espírito nacionalista: denunciar a realidade brasileira. Observem-se o que diz Lobato:

Este país é um assombro. Nascemos aqui, vivemos e morremos aqui e não o conhecemos. Conhecemo-lo tão pouco, que quando apareceu o primeiro retrato ‘d’aprés nature’ do jeca foi um espanto geral, e uma celeuma que durou anos e ainda repercute.É que ninguém sabia como era o jeca - e sabem quantos jecas há neste país? Milhões. Talvez 15 milhões, isto é, a terça parte da nação! Mas esse milhões de nacionais vivem de tal modo segregados da civilização das cidades grandes e pequenas, tão alheios à cultura geral,que somos etnograficamente um balde com dois terços de água e um de azeite - coisas imisturáveis.

Temos duas civilizações, ou melhor, duas ‘culturas’ : a cultura importada, dos que vivem na cidade, sabem ler e escrever e até livros escrevem! E a ‘cultura local’, filha da terra, como cogumelo é filho de pau podre, desenvolvida pelos homens do mato - o caboclo, o caipira, o jeca, em suma. Como o jeca nunca leu nada nem escreve, a sua cultura se foi fazendo ao tipo primitivo, por lentas acessões e restritas experiências locais - e com a transmissão sempre oral. E (...) foi na língua do jeca que Nhô Bento nos encantou.

Adiante propõe o abandono do português clássico, defendendo novamente a norma popular. Percebe a necessidade de a língua falada ser melhor descrita.

(...) E acentuaria que o mesmo direito que tiveram os portugueses de corromper o latim e transformá-lo em língua portuguesa, temos nós, letrados, de corromper a língua portuguesa e transformá-la na língua brasileira; e tem o iletrado jeca de evoluí-la em outro rumo. Mais cientificamente, podemos dizer que a língua portuguesa no Brasil está sofrendo duas variações: uma lenta, da gente que sabe ler e escrever e outra rápida, da gente da roça segregada do urbanismo, do livro, do jornal e do rádio.

E acrescenta:

Quem condena como coisa ‘errada’ o modo de falar ou a língua do jeca, revela-se curto de miolos(...). Temos que estudar essas variações em vez de tontamente condená-las, pois condená-las equivale, por exemplo, a condenar os anéis de Saturno em nome dos planetas que não possuem anéis; ou, as caudas dos cometas em nome dos astros suras; ou as sementes da paineira por virem ao mundo envoltas num algodãozinho em nome das sementes de capiá que vêm nuas.(...). O latim bárbaro dizia, ou devia dizer,’Oculavit ad me’. Por uma série de corrupções que os filólogos de bom faro rastreiam, esse latim deu em Portugal a variação: ‘Olhou bem para mim.’ Houve melhoria de expressão; o bem está acentuando o modo de olhar.

O jeca ainda melhorou mais a frase e diz, como vemos na ‘Doce de Cidra’, um dos poemas de Nhô Bento: ‘Olhô bem n’eu.’

Acredita na importância do inglês para o progresso básico de Ogden, porque é uma língua sem flexões; mas segundo o escritor, a supressão das flexões nas línguas que as têm, como o português, não faz mal à compreensão como sem o querer Hanke demonstrou em sua conferência. Lobato compara a língua inglesa com a portuguesa para defender a língua usada pelo homem sem escolaridade que vive no campo. Isso pode ser observado no trecho a seguir, em que Lobato afirma:

Se a língua mais espalhada do mundo, como é a inglesa, dispensa flexões, isso demonstra que a flexão é uma inutilidade, um atraso, um retardamento de evolução. E no português da roça fala à moda inglesa. Diz, por exemplo: Eu vou; você vai; nós vai; vocês vai; em vez de dizer como no português gramatical ou “não evoluído”: Eu vou; tu vais; ele vai; nós vamos; vós ides; eles vão. Temos aqui seis flexões que o caboclo da roça, esse precursor de Hanke, reduz a duas apenas sem que de nenhum modo se faça menos compreendido que um membro da Academia de Letras.

(...) Há uma estranha aproximação do inglês com a língua do jeca, a ponto dum meu amigo, o visconde de sabugosa, achar que essa língua deriva do inglês e não do português, como o saudosa Álvaro Guerra supunha.(...)

O que o escritor defende não procede, se considerarmos o fato de que, no caso do Brasil, a omissão de flexões verbais constitui desvio da norma padrão praticada pelos escolarizados, o que não ocorre com a ausência de flexões na língua inglesa: esta ocorrência faz parte da linguagem dos escolarizados.(Melo, 1981: 102)

Neste outro trecho Lobato faz referência à redundância existente no português, criticando-o:

O jeca forma os seus plurais com a mesma inteligência e economia do inglês: diz, por exemplo: ‘ as casa’,’os home’, ‘as muié’, em vez de dizer, redundantemente como o português, ‘as casas’, ‘os homens’, ‘as mulheres’.

Propõe no prefácio do livro de Nhô Bento, que a linguagem usada pelo poeta nos poemas deveria ser ensinada na escola. Defende, portanto, o ensino de uma variante lingüística praticada em Minas Gerais e no Vale do Paraíba. Percebe a existência de um denominador-comum entre a linguagem usada pela população iletrada dessas regiões e a falada pela maioria dos brasileiros no resto do país.

Segundo Melo (1981: 95), a língua vulgar é praticada em Minas Gerais, representando “a feição brasileira mais antiga e que, por isso mesmo, na generalidade dos casos, nela temos o denominador-comum dos nossos falares plebeus.” Para justificar a afirmação, o autor cita Alceu Amoroso Lima, para quem Minas é um lugar por onde passam todos os caminhos de nossa terra, cruzando as mensagens de toda nossa gente. Logo, essa variante espalha-se, atingindo o Vale do Paraíba. Contudo, Lobato comete um equívoco, pois crê que só há duas variantes, esquecendo-se de outros fatores diferenciadores, como, por exemplo, o regionalismo. E Monteiro Lobato vai mais longe na sua proposta:

Devemos fazer a gramática da interessantíssima língua do jeca como os franceses fizeram a gramática da língua de ‘oc’; e devemos ensinar essa gramática nas escolas, lado a lado com a gramática portuguesa, em vez de torturar as pobres crianças com o terrível e inútil latim do Senhor Capanema. Ficaríamos assim educados em duas línguas, a geral ou portuguesa, e uma língua auxiliar, a do jeca. Que vantagem haveria nisso? Oh, grande: - podermos falar gramaticalmente com os 15 milhões de jecas que há no território brasileiro.

Prova de que Monteiro Lobato acredita nesse denominador-comum existente entre a linguagem dos iletrados do Vale do Paraíba e a praticada pelos iletrados das demais regiões do país é o trecho em que afirma que os poemas de Nhô Bento são bons exemplos de linguagem do jeca, ou de 15 milhões de brasileiros. Sabemos que o poeta retrata a linguagem usada por pessoas iletradas da zona rural vale paraibana.

Nhô Bento em seus poemas fixa muito bem a língua falada do jeca - e antes que me esqueça: por que os nossos filólogos não extraem a gramática dessa língua do jeca? Que interessante seria! ...Quanta variação da sintaxe, da prosódia, de tudo!...

Troca do ‘b’ pelo ‘v’: ‘cumbérsa’, ‘berso’, ‘cuvérta’... O ‘lhe’ substituído pelo’i’: ‘abêia’, ‘paia’, ‘maia’ (malha).... O ‘ou’reduzido a ‘ô’: ‘fumô’, ‘botô’, ‘juntô’... Quantos aspectos!

Neste outro trecho, ao reafirmar a importância da linguagem caipira, deixa entrever sua defesa da língua nacional, condenando interferência de outros países:

E vendo isso, e comparando o enlevo que seus poemas nos provocam, ficamos a imaginar que neste país de duas ‘culturas’ tão diversas, a letrada e a iletrada, talvez seja a iletrada a mais interessante, a mais original, a mais rica em poesia. Pelo menos a poesia que nela existe é local, inédita, nascida aqui mesmo como os musgos, as avencas, as orelhas de pau. A outra cultura é, e sempre foi, de importação. Importou no começo a arte e a poesia do ‘ reino’; depois importou-a da França; depois passou a recebê-la do mundo inteiro.(...)

Como se pode observar, na metalinguagem de Monteiro Lobato vislumbram-se equívocos impregnados de juízo de valor, resultantes do progresso até então alcançado pelos estudos de língua e do nacionalismo efervescente que permeia o comportamento dos intelectuais do final do século XIX e primeira metade do século XX no Brasil.

Quando se implanta o regime Republicano e com ele o desenvolvimento da Institucionalização da sociedade brasileira, a questão da língua nacional se firma; há a união entre Língua e Estado. Nesse momento, surge a necessidade de se pensar a língua, as instituições e seus cidadãos, buscando-se a escritura da língua próxima do falar do Brasil e não da forma como se escreve em Portugal. Portanto, a metalinguagem de Monteiro Lobato é resultado desse contexto social.

Ele defende, como podemos ver, as variantes lingüísticas de acordo com o uso. Acredita na existência de somente duas variantes: a língua geral, usada pelos homens de letras, isto é, a língua portuguesa escrita (a literária e a não literária) e a falada (a que possui gramática), e a somente falada (sem gramática), usada pelos iletrados que constituem a maioria dos brasileiros segregados do urbanismo e dos livros; esta língua requer uma descrição. Acredita que a língua portuguesa está passando, no Brasil, por um processo de grande transformação, que irá redundar numa nova língua, isto é, na língua brasileira. Seu grande equívoco é pensar que esta variante (a falada pelos não iletrados) se mantém padronizada em todo o território nacional.

Lobato propõe que a linguagem praticada pelos iletrados, seja ensinada na escola. E isso vem reforçar a idéia de que realmente acreditava na existência dessas duas variantes, esquecendo-se do fator regional que pluraliza a língua. Além disso, manifesta insatisfação por não ter colocado na boca de seu jeca tatu a linguagem dos poemas de Nhô Bento. Logo, embora Lobato tenha se negado a participar do movimento modernista de 1922 - nessa sua pretensão se mostra um precursor do movimento.

ReferênciaS bibliográficaS

MELO, Gladstone Chaves de. A Língua do Brasil. Rio de Janeiro: Padrão, 1981

PINTO, Edith Pimentel. O Português do Brasil. Textos Críticos e Teóricos. 1820/1920 [s/d.].

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. A formação e o sentido do Brasil. Cia. das Letras. São Paulo: Schwarcz, 1995. [2ª ed. 1998].

SILVA NETO, Serafim da. Introdução ao Estudo da Língua Portuguesa no Brasil. 5ª ed. Rio de Janeiro: Presença, 1986b.

LIMA SOBRINHO, Barbosa. A Língua Portuguesa e a unidade do Brasil. José Olympio, 1958. (2ª ed., Rio de Janeiro, Nov Fronteira, 2000].