Mulheres na ODISSÉIA e n`Os Lusíadas

Maria Paula Lamas (Univ. do Porto)

Neste trabalho apresentamos algumas reflexões sobre o papel desempenhado pela mulher na Odisséia, na adaptação de João de Barros, e n`Os Lusíadas, de Luís de Camões, por serem objeto de estudo na disciplina de Língua Portuguesa, lecionada em Portugal. De fato, estas duas obras prestam-se a um interessante paralelo, pois sendo a epopéia camoniana um poema renascentista, a figura feminina, aí presente, bebe a sua influência nos Antigos.

Comecemos por prestar atenção ao título, que é denunciador do teor das obras. A palavra lusíadas significa portugueses, descendentes de Luso, filho e companheiro de Baco. Foi criada pelo humanista André de Resende, tendo sido Camões que a utilizou, pela primeira vez, na língua lusa (Cf. VIEIRA, 1931: XI-XII). Quanto ao vocábulo Odisséia é de origem grega, Odýsseia, exprimindo o que diz respeito a Ulisses (Cf. MACHADO, 1984: 1086). Assim, logo à partida, nos apercebemos de uma relevante diferença entre as duas obras, pois a epopéia camoniana trata da história (coletiva) de um povo, o povo lusitano, e a epopéia de Homero refere à história (individual) de um herói, Ulisses.

O núcleo de ambas as obras é uma viagem, tendo Camões seguido o modelo das epopéias clássicas, pois as aventuras de uma primeira expedição marítima ao Oriente prestavam-se a muitas histórias com as respectivas peripécias e, ainda, à comparação entre os portugueses e os heróis da Antiguidade Clássica. Os Lusíadas baseiam-se em acontecimentos verídicos, como a viagem de Vasco da Gama à Índia, e a Odisséia refere o cerco a Tróia, de que não há a certeza histórica, sendo a esmagadora maioria das aventuras aí apresentadas, inequivocamente, produto da imaginação do seu autor. A mesma incerteza, quanto à veracidade histórica, surge relativamente ao protagonista, Ulisses, pois não se sabe ao certo se existiu, não sendo possível determinar a sua autenticidade, como rei de Ítaca.

Continuando no domínio das divergências entre as duas obras, verificamos que na Odisséia as dificuldades mostram o verdadeiro valor do herói, pois é devido ao seu esforço e à sua inteligência, que consegue ultrapassar os obstáculos que se lhe deparam na sua rota. Valoriza-se, assim, o comportamento audacioso de Ulisses, tal como acontece, por exemplo, no seu encontro com Polifemo (Cf. SARAIVA, 1966: 98), em que arquiteta um plano astucioso, embriagando e cegando o gigante e, no dia seguinte, escapa à sua fúria, agarrado à espessa lã da barriga dos bodes. Pelo contrário, na epopéia camoniana, Vasco da Gama não age pelos seus próprios meios, para ultrapassar as dificuldades, permanecendo passivo, como se verifica no seu encontro com o Adamastor, em que se limita a ouvir a sua história (Ibidem) e a implorar ajuda divina. O capitão português tem como missão, essencialmente, fazer discursos e relatar a História de Portugal ao rei de Melinde, «[n]ão é um navegador, mas sim um embaixador, respeitador escrupuloso do protocolo.» (Ibidem, p. 92-93) Ao confrontá-lo com a Odisséia, evidencia-se a sua falta de ação, principalmente, em paralelo com Ulisses que constrói, com as próprias mãos, a sua jangada (Ibidem, p. 95), para partir de Ogígia, com destino a Ítaca. Do mesmo modo, ao longo do poema, as dificuldades são principalmente ultrapassadas, por intermédio de Vênus, que protege os portugueses e os encaminha, rumo ao seu objetivo, a Índia.

Outra diferença a destacar é o fato de na Odisséia, Ulisses, seguindo as orientações de Circe, ir consultar o espírito do sábio Tirésias, que se encontrava no Inferno. Era necessário ouvi-lo e seguir os seus conselhos, de forma a poder regressar à sua pátria, em segurança. A descrição do Inferno é assustadora e os sacrifícios terríveis e infindáveis, como o de Tântalo, sufocado de sede e rodeado de muita água, sem conseguir beber uma única gota; e o de Sísifo, empurrando, interminavelmente, um pesado rochedo até ao cimo de um monte, o qual se despenhava continuamente na planície. O espetáculo do Inferno, com suas inúmeras sombras, torna-se insuportável para o corajoso Ulisses, que respira de alívio, quando se vê longe de tal local. Opondo-se a este cenário, os portugueses vão ser premiados com a Ilha dos Amores. É um verdadeiro paraíso, antecipadamente gozado na terra, antes do regresso dos lusitanos, como recompensa e imortalização dos seus feitos. Funciona em contraste com o Paraíso referido na Bíblia, em que Adão e Eva, depois de comerem o fruto proibido, tomaram conhecimento do Bem e do Mal e, envergonhados, esconderam a sua nudez, experimentando sentimentos de culpa. De fato, na Ilha dos Amores, passa-se o inverso, a nudez não se esconde, antes pelo contrário, exibe-se, e todos se deleitam com ela, numa atitude inocente, em que não existe a consciência do pecado, tal como se verificara, inicialmente, no Paraíso Bíblico (Ibidem).

Também é na Ilha dos Amores que Vasco da Gama toma conhecimento do Universo. Ao experimentarem os prazeres da ilha e ao adquirirem o saber, os portugueses ganham a imortalidade, opondo-se a Adão e a Eva que, por provarem o fruto proibido, dela ficaram privados, sendo expulsos do Paraíso. A Humanidade para conseguir alcançar, de novo, o Paraíso, neste caso, celeste, terá de abdicar dos prazeres e fazer sacrifícios. No respeitante aos lusitanos «(...) tornam-se merecedores do novo Paraíso por uma «virtude», «justa e dura», que nada tem que ver com abstenção, mas que é, pelo contrário, atividade, luta, caça, audácia.» (Ibidem).

É ainda de assinalar o fato de ser a primeira mulher, a Eva, que conduziu o homem à perdição, à morte. Opondo-se a esta ideologia, n`Os Lusíadas e na Odisséia, é uma figura feminina que salva os heróis, respectivamente, Vênus e Circe. Vênus prepara a recepção dos portugueses, na Ilha dos Amores, onde são acolhidos por ninfas que lhes proporcionam prazer, e simultaneamente os libertam da morte, na medida em que os seus feitos nunca mais serão esquecidos. Na Odisséia é Circe que dá conselhos a Ulisses e o adverte de que deverá descer aos Infernos, caso não queira morrer em alguma das muitas armadilhas, que o separam da sua pátria.

Por outro lado, pode estabelecer-se um paralelo entre a Ilha dos Amores e a ilha de Ogígia, habitada por Calipso, onde Ulisses vai parar, no regresso de Tróia, vítima de um naufrágio. Trata-se igualmente de um local paradisíaco, tendo Ulisses oportunidade de optar entre a imortalidade, oferecida pela deusa Calipso, ou a mortalidade, caso decida regressar à família, acabando por escolher a última hipótese. Este episódio serve de contraponto a Penélope, mulher de Ulisses, exemplo extremo de fidelidade conjugal, dignidade e coragem, que esperou pelo marido vinte anos. Penélope tinha prometido escolher um noivo entre os seus pretendentes, quando acabasse de tecer um grande lençol em linho, destinado a amortalhar Laertes, pai de Ulisses, mas como não estava interessada em casar com ninguém, ia fazendo-o de dia, e desfazendo-o de noite. Por seu turno, o marido foi tendo, ao longo da sua viagem, aventuras amorosas, como a de Calipso. No entanto, o fato de ter tido a possibilidade de ser imortal, permanecendo eternamente jovem, e ter recusado esta aliciante proposta de Calipso é, na nossa opinião, um fator bem elucidativo, sobre a sua tomada de posição, relativamente à família e à pátria.

Igualmente colocando a família acima de tudo, surge n`Os Lusíadas, D. Maria, filha de D. Afonso IV de Portugal, e mulher de Afonso XI de Castela. É uma personagem que funciona como símbolo de mulher-filha-esposa. Apesar de ser maltratada pelo marido, que a trocara pela amante, D. Leonor de Gusmão, não hesita em interceder a seu favor, junto do pai. Castela estava a ser invadida pelos mouros e era necessário os dois povos da Península Ibérica se aliarem, para derrotarem o inimigo comum, na Batalha do Salado.

Outro caso denunciador de extrema preocupação com a família é D. Inês de Castro, apaixonada do príncipe D. Pedro, que surge n`Os Lusíadas como símbolo de mulher-mãe-amante-mártir. Esta personagem vai ser executada, a mando de D. Afonso IV, por motivos de ordem política, devido ao fato de ser oriunda de uma influente família castelhana e de os seus filhos bastardos, netos do rei português, serem uma ameaça à coroa lusitana.

Na epopéia camoniana, tal como diz Oliveira Martins, há três mulheres: a deusa Vênus, a formosíssima Maria e a linda Inês: «Nestas três figuras está a mulher inteira, completamente feita de abnegação. Amante, esposa e mártir: nestas três palavras se resume a essência daquelas que, junto de nós, são até certo ponto o símbolo real da existência, porque são a poesia da espécie.»

Por outro lado, na Odisséia, surgem outros exemplos edificantes, como Arete, rainha dos Feácios, mulher de Alcino, símbolo de beleza, bondade e compreensão. Prontifica-se a ajudar Ulisses que, de joelhos, lhe solicitou auxílio, conforme orientação de Nausica, filha da rainha, e de acordo com as convenções dos Feácios. Esta última, para além das qualidades herdadas da mãe, funciona como retrato tipicamente feminino, em que a donzela era educada, com vista ao matrimônio, com o qual sonha, visto ser a sua principal preocupação. As suas brincadeiras e a maneira como se relaciona com Ulisses refletem a sua personalidade pura e generosa.

É através destes e de outros aspectos, que tomamos conhecimento da sociedade dos Feácios, em que os homens eram peritos no governo dos barcos e as mulheres hábeis na arte de bordar. Era também, um povo hospitaleiro, prontificando-se, logo, os reis Alcino e Arete a acolherem magnificamente Ulisses. Este vai contar-lhes as aventuras da sua viagem, tal como sucede com Vasco da Gama relativamente ao rei de Melinde, e Alcino e Arete vão também ajudar o herói a regressar finalmente à pátria, pondo à sua disposição, barco, tripulação e mantimentos.

Outro exemplo representativo de virtudes é Euricléia, antiga ama de Ulisses, que, ao fim de tantos anos, o reconhece, através de uma cicatriz, que ele tinha, desde novo, provocada pela agressão de um javali. Comovidamente, Euricléia abraça-o e beija-o, permanecendo juntos toda a noite, em confidências e prometendo guardá-las no mais profundo silêncio.

Pelo contrário, surgem também figuras femininas, aparentemente encantadoras, mas falsas, as sereias, que habitam uma ilha localizada entre a morada da feiticeira Circe e o rochedo de Sila. Através das suas melodias harmoniosas, seduzem os homens, atraindo-os à sua ilha de perdição, à morte. Circe avisara Ulisses deste perigo, prevenindo-o que tapasse com cera os ouvidos dos marinheiros, de forma a que não fossem atraídos pelos cânticos fascinantes. Quanto a Ulisses poderia deleitar-se com as melodias únicas, desde que estivesse bem amarrado ao mastro do navio, com cordas muito fortes. As sereias são personagens femininas, que se identificam com a mulher, através do seu poder sedutor, junto do homem.

A Odisséia, tal como Os Lusíadas, apesar de cantar as virtudes, nitidamente masculinas, exaltando o esforço épico do homem, não deixa de destacar a mulher, sem a qual as obras perderiam grande parte do seu fascínio. Em ambos os casos, as figuras femininas desempenham um papel importante, participando significativamente na ação e até desencadeando os principais acontecimentos. É o caso de Helena, que está na origem da guerra entre Gregos e Troianos, por ter sido raptada por estes últimos e os Gregos, não querendo abdicar da sua beleza, considerada por todos um tesouro, pretenderem reavê-la.

As mulheres n`Os Lusíadas e na Odisséia surgem evidenciando virtudes nobres, tais como, a lealdade, a fidelidade, a devoção, a justiça e o amor, assim como, associadas a vícios, traições, injustiças e infidelidades. No entanto, contrariamente ao que acontece na epopéia camoniana, na Odisséia surge-nos ainda outro tipo de mulher, a mulher-monstro, simbolizada nas personagens de Sila, possuindo seis compridos pescoços e respectivas cabeças, com goelas permanentemente insaciáveis, e Caribdes, com uma enorme boca, sorvendo e tragando, três vezes por dia, as ondas do mar.

Os episódios da Odisséia são bem representativos da sociedade da Grécia antiga, em que os homens desempenham o principal papel. Assim, os temas desta obra são essencialmente respeitantes ao elemento masculino, como a guerra, o espírito guerreiro e a caça. Os assuntos, no âmbito das mulheres, apenas surgem ocasionalmente, como é o caso de Nausica e das suas aias, quando vão lavar os trajes, ao rio. Assim, a poesia épica reflete as convenções da sociedade, ou seja, a supremacia do homem. No entanto, neste caso, é notável a relevância e a respeitabilidade atribuídas à mulher, no desencadear ou no desenvolvimento das ações. Deste modo, são veiculados e preconizados ideais familiares importantes como o amor, a fidelidade, a compreensão e a solidariedade. Por vezes, os sentimentos são revelados em pequenos pormenores, tais como, a rainha Arete mandar preparar uma merenda e o frasco de essência, para o banho da sua filha, a princesa Nausica.

Apesar do exposto, tanto na Odisséia como n`Os Lusíadas, a personagem feminina mais importante, não é terrestre, é uma deusa, respectivamente, Minerva e Vênus, assumindo um papel semelhante, de proteção aos heróis das obras. Minerva, tal como Vênus, relativamente aos portugueses, vai interceder junto do pai, Júpiter, para que este envie Mercúrio a Ogígia, para ordenar a Calipso a libertação de Ulisses, cuja estadia já se prolongava por vários anos. É igualmente esta deusa que detém a fúria dos ventos, evitando, assim, a morte de Ulisses, depois da partida de Ogígia, rumo à pátria, impelindo-o para uma terra hospitaleira, habitada pelos Feácios. Minerva está permanentemente atenta e, mais uma vez, é ela que, no regresso a Ítaca, transforma provisoriamente Ulisses, em velho mendigo, para que não seja reconhecido pelos seus inimigos. De seguida, parte em busca do filho, Telêmaco, que se encontrava em Esparta, à procura do pai, alertando-o de que deverá regressar rapidamente a casa. Idêntica função tem Vênus que protege continuamente o povo português do seu adversário, o deus Baco, e das respectivas ciladas e artimanhas, perpetradas com o intuito de os lusitanos não chegarem ao seu destino, a Índia. Tal acontece, por exemplo, em Quíloa, afastando a armada lusa do porto inimigo, através de ventos contrários e, em Mombaça, opondo o seu peito à nau de Vasco da Gama, e não permitindo a sua entrada neste porto igualmente hostil.

Vênus e Minerva são deusas maternais, que velam, respectivamente, pelos portugueses e por Ulisses, evitando que eles caiam em perigos e em armadilhas, durante o seu percurso. Em ambas as obras, o elemento feminino predominante é a água, que aparece com variadas designações, como ninfas, sereias e Tétis, que adquire a forma de onda, e ora se aproxima, ora se afasta, atormentando o Adamastor. Assim, as águas marítimas acompanham constantemente os heróis, tanto d`Os Lusíadas, como da Odisséia, envolvendo-os e protegendo-os das procelas e das adversidades, à semelhança de uma capa impermeável e invencível.

Deste modo, o poder feminino está indubitavelmente presente em ambas as obras, mas velado, com a máscara de Minerva e de Vênus, detentoras de influência, de beleza, de inteligência, de sensibilidade e de amor. São estas deusas que desempenham um papel cimeiro nas ações da Odisséia e d`Os Lusíadas, significando que nenhuma mulher, de carne e osso, poderia ocupar tal posição de destaque, sendo, no entanto, imprescindível na realização plena do homem.

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