O Modernismo no Rio de Janeiro
Bandeira
e Mário

Matildes Demetrio dos Santos (UFF)

 

Bandeira e Mário nas cartas

Mas conversar assim como nós estamos fazendo agora é uma delícia.

Mário de Andrade (MORAIS, 2000: 212)

 

Mário de Andrade entregava-se prazerosamente ao “estilo epistolar” na convicção de que a carta, mais do que a memória autobiográfica, seria a oportunidade de documentar sua história pessoal, registrar ações e situações, surpreender reflexões sem correr o risco de ser considerado “um boca do inferno, danado, deformador, invejoso e mentiroso!” (Cf. DUARTE, 1985: 332) Para ele, o memorialista tinha tempo de selecionar, organizar subjetivamente os fragmentos de sua existência e esse processo seria uma maneira de deturpar a verdade. Ao passo que o missivista, ainda que afeito à seleção e ordenação dos fatos, retém o transitório e está sob o olhar vigilante do destinatário, leitor escolhido e testemunha. Para Mário, a carta era um método que lhe facultava a leitura do mundo à sua volta; um processo singular que abarcava acontecimentos em tempo e espaço determinados. Mas como o presente da escrita torna-se passado no ato de leitura, essa descontinuidade de tempo e espaço permitia-lhe o repensar do mesmo assunto, configurando novas significações.

Além disso, a carta é uma espécie de memória apoiada na amizade e na confiança, Mário falava de si mesmo com sofreguidão. Agia como alguém que sentia a necessidade de indagar do outro, de confessar-se, de proclamar impressões e sentimentos com franqueza e impaciência. Para Michel Foucault, Mário é o missivista que se deixa enxergar de dentro e o destinatário é elevado à categoria de um deus, com passagem livre pelos estados mais secretos da alma que tão generosamente se deixaolhar”.

A amizade de Mário por Bandeira, descobre-se na correspondência, nasceu de uma completa identidade afetiva: “Você afinal sou eu mesmo”. (Cf. MORAES, 2000: 290) Antes mesmo de conhecer o poeta pernambucano, ele o admirava e o “procurava” na leitura de seus textos. O primeiro encontro, em 1921, na casa de Ronald de Carvalho, foi fruto de uma vontade consciente: o poeta saiu de São Paulo, levando na mala um volume de Paulicéia desvairada, com o propósito de se fazer conhecer. Ao relembrar esse encontro na carta de 6 de junho de 1922, confessa: “Realizei meu desejo. Voltei contente”. O amigo é reconhecido como o ser único, aquele que corresponde divinamente ao seu conceito de amizade pura e desinteressada. Nos momentos de solidão, rendia-se incontinente à dependência do outro, dizendo ser o homem mais feliz do mundo por ter um amigo leal e tão bondoso.

Havia, de fato, uma articulação perfeita entre as duas personalidades. No entanto, Manuel Bandeira, mais concentrado, fazia questão de lembrar que se tratava de uma amizade que nascera e crescia em cartas. Era umface a face” à distância, sem as asperezas do dia-a-dia. E essa fecundação íntima, rodeada de silêncios fazia a sua diferença. Bandeira observava que o próprio Mário, nas cartas, era espontâneo, pedia explicações, esculhambava, escancarava o verbo sem nenhum pudor. Na vida, era discreto, reservado, nebulosamentepaulista”. Ele, por sua vez, reagia no calor da hora, admirava a natureza múltipla do amigo e se preocupava demais com ele. Na carta de 16 de dezembro de 1925, o remetente do Rio descreve as sutilezas que distinguiam uma e outra personalidade:

Há uma diferença grande entre o você da vida e o você das cartas. Parece que os dois estão trocados: o das cartas é que é o da vida e o da vida é que é o das cartas. [...] Você esteve na minha casa aqui e não cometeu a menor indiscrição: Não olhou pra nada. Eu quando fui à sua, escrafunchei tudo. Você tem uma natureza retalhada de mil direções afetivas e certas coisas que eu não saberia dizer agora quais são me aporrinham [...] Mas ainda isso eu poderia explicar do seguinte modo: eu carrego uma porção de coisas que eu não sei exprimir; você sente essas coisas como eu por exemplo a vida brasileira; quando eu vejo uma coisa dessas expressa por você sinto uma doçura indefinível tão doce que agora fiquei com os olhos cheios de água de aludir a isso!

No seio dessas diferenças, o leitor dessas cartas surpreende a trama desenhada por esses dois homens: Bandeira acreditava em Mário comocabeça e coração”. Admirava sua inteligência e sua firmeza de caráter. Aos seus olhos, o jovem modernista era um intelectual consciente das exigências de sua arte e fortemente empenhado na tarefa de construir uma nova mentalidade artística e cultural para o país. Era, de fato, um valor inestimável para o Brasil naquele momento em que as novas idéias sobre a brasilidade ganhavam peso e sentido histórico.

Ele, ao contrário, não postulava para si nenhuma missão revolucionária, considerava-se fisicamente um inválido, comlesões teoricamente incompatíveis com a vida”, repetindo as mesmas palavras do médico que o auscutara no sanatório de Clavadel, na Suíça, em 1914. Por isso, apesar de se sentir estimulado pelos modernistas, não fora a São Paulo por ocasião da Semana de Arte Moderna; porque não se sentia à vontade em um grupo heterogêneo que buscava um modernismo ostensivo, pautado no nihilismo das convenções estéticas tradicionais, repudiando o soneto, os versos metrificados e as rimas. [1] Procurava manter-se relativamente distante das polêmicas modernistas, preferindo o diálogo epistolar com um interlocutor que considerava a pessoa certa para desempenhar a missão de implantar e disseminar o credo modernista

A carta de 31 [de maio de 1923], é, sem dúvida, um documento, um depoimento que manifesta as razões que nortearam Bandeira na sua disposição de apoiar e contribuir para a formação de Mário de Andrade como o protótipo do novo intelectual que, através de suas obras, aliava originalidade e reflexão crítica. Por isso afirma:

Tens aquela profundidade de sentimento que faltou a todos os nossos poetas, salvo talvez Cruz e Sousa. É entre nós o único temperamento integralmente e harmoniosamente moderno. Todos nós outros somos mais ou menos adesistas; assimilamos o pensamento e a técnica moderna, e artistas que sobretudo somos, demos à nossa arte mais essa maneira de ser. Tu, não. O verso livre moderno é o teu único instrumento de expressão como poeta. Terias certamente falhado, se tivesses nascido na geração de Bilac. Creio firmemente que estás vivendo a época da tua alma. Eis porque deposito tanta em ti.[2]

Este fragmento, simples e direto, contém uma exposição de idéias, de sentimentos e de convicções estéticas que apontam, na perspectiva crítica de Bandeira, a figura de Mário de Andrade como o artista que personificava a modernidade: ninguém mais do que ele sofria e vivia sua obra e seu pensamento. Por essas razões, o poeta pernambucano adotava, muitas vezes, a postura espontânea de um mestre ocupado em fornecer conselhos e opiniões que facilitassem o trânsito de Mário entre os seus contemporâneos.

De fato, Mário recorria aos amigos com a mesma naturalidade com que se fazia íntimo. Costumava dizer que as amizades o ajudavam a vencer as lutas e vicissitudes da vida. A tal ponto seguia esse princípio que não vacilava em procurar os amigos até quando não tinha assunto nenhum a tratar, pela vontade de conversar e de ter alguém palpitando ao lado. Porém, essa natureza fraterna que sofria horrores quando encontrava resistências às suas determinações, não suportava as intrigas e os mal entendidos quando estes atingiam a sua individualidade. Nesses momentos, a atuação de Bandeira é exemplar ao ocupar-se de questões que têm uma ligação direta com os problemas pessoais do amigo que perdia um tempo precioso sofrendo com os aborrecimentos causados pelo embate entre os opositores da nova mentalidade artística. Na carta de 13 de outubro de [1924], pode-se ler:

Que direi dos teus aborrecimentos? Devo passar-te o meu natural pessimismo? Das outras vezes que me escreveste coisas análogas, hesitei muito e contive-me. É que sinto deveras teres necessidade do meio amical para criares. Mas o meio amical não existe! Tu devias aprender a passar sem amigos, amigos literatos. Com literatos e artistas há duas atitudes possíveis: 1.ª ser intratável, isto é, guardar isenção absoluta de ânimo; 2.ª ser irônico, não levar nada a sério, dançar de ombros. A 1.ª atitude é, sem dúvida alguma, a melhor, a mais nobre. Requer, porém, uma força de coração acima das nossas possibilidades de sentimentais. Ou então ser duro. Nem eu nem tu somos assim. Bem sei o que sucede: vivemos balotados ( que galicismo gostoso! É como maquilhada) entre as duas atitudes. Põe de lado essa desconfiança entre Rio e São Paulo. A coisa desagradável existiria mesmo que ambos formassem um São Paulo maior. O que há é a repugnante ambiência literária... como me sinto sempre desajeitado no meio dela!

Ao escrever, Manuel Bandeira pontua o “seu natural pessimismo”, no entanto, a longa correspondência registra um missivista irônico, inclinado ao gracejo e ao trocadilho. A eficácia do seu discurso se revela na superposição de dois discursos narrativos que podem ser decodificados pelo uso de palavras de duplo sentido, palavreado vulgar e alusões divertidas que fazem pensar, encobrindo o melancólico que se valia da imaginação como consolo para as dores e desilusões da experiência que eram a saúde precária, a falta de dinheiro, a dificuldade em arranjar editor para seus livros, o pouco interesse do mercado em promover a arte nacional. O humor era uma forma consciente de também quebrar a seriedade de Mário que vivia doente, endividado mas sempre trabalhando e pesquisando muito. Através do riso, Bandeira pretendia desarmá-lo de suas preocupações, oferecendo-lhe uma válvula de escape contra as tensões do cotidiano. O remetente procurava ser divertido até quando comentava episódios desagradáveis, como o que ocorreu com dois talentosos artistas brasileiros, o violinista Leônidas Autori e João de Souza Lima, pianista e compositor que foram ignorados pelo público do Rio. “Ouvi o Autori. Violinista extraordinário. Sala vazia! Desistiu dos dois outros concertos. Souza Lima desistiu do 1.º ! ORAMERDA! É preciso esperar cem ânus!”[3]

A força do grito em caixa alta negra e o trocadilho que o leva a empregarânus em vez de “anos” expressam a revolta do poeta contra um público que rejeita os talentos da terra. Por outro lado, o tom despachado do missivista, sua expressão livre e autônoma eram estratégias conscientes a fim de fazer com que o outro também se redefinisse numa isenção de ânimo. Mário estava sempre disposto a demonstrar sua afetividade e insistia na tese de que ambos estavam ligados por afinidades espirituais que tinham o poder de excluir do campo de suas relações as tensões e contrariedades. Preso a essa certeza, ele afirma na carta de 11 de julho de 1928: “Você está convencido que me compreende bem e classifica bem as minhas caraminholas e eu estou convencido de que entendo a sensibilidade que você bota dentro das poesias gênero doença”.

Diferente do amigo, Manuel Bandeira considerava a amizade um sentimento que podia ser agitado e transformado no entrecurso das relações. Ele sentia agudamente que nenhum indivíduo poderia viver uma existência bem resolvida em relação a outra pessoa. Aceitava a idéia de que havia uma ética profissional e uma interação de estímulos entre eles, no mais, eram independentes e de temperamentos distintos. Dizia que a insistência de Mário na crença das afinidades eletivas, desnudava sua própria fragilidade emocional. Ele explica em 28 de julho de 1928:

Não estou convencido absolutamente de compreender você. Nem você nem ninguém. Eu vivo perplexo diante de toda a gente. Se às vezes tomo atitudes de compreensão é a fim de simplificar e de fazer de conta para poder agir [...] Em carta quando tem sucedido isso, eu respondo segundo a minha reação pessoal, não com outro fim que não seja contagiar você com uma maneira de sentir que reputo uma coisa saudável ( uma das poucas coisas saudáveis) da minha natureza.

Sem forçar um entrosamento perfeito, Bandeira alertava o amigo sobre as profundas diferenças existentes entre ambos. O importante, no seu ponto de vista, eram os problemas relacionados com a obra literária sobretudo naquele momento em que se tentava romper com padrões estéticos mais rígidos. Sendo assim, a correspondência entre Bandeira e Mário tem uma dimensão humana e contribui para compor um painel múltiplo, de valor documental para a história do Modernismo brasileiro.

 

O modernismo nas cartas

Ninguém sabe definir essa merda que todo mundo quer ser.

Manuel Bandeira[4]

 

Dois intelectuais que marcam de forma diversa a literatura brasileira no início do século XX. Mário de Andrade é o inovador estilístico da poesia e da prosa, imprimindo a marca da brasilidade em seus projetos. Na configuração criadora de Manuel Bandeira, a tradição literária e o contexto histórico-social se misturam a elementos autobiográficos.

Na carta de 27 de julho de 1923, Bandeira afirma que o poeta de Cinza das horas, 1917, eramansamente e muito dolorosamente tísico”. Depois, com o passar do tempo, tornou-se, “ironicamente, sarcasticamente tísico”. a ironia permitia-lhe levar a vida e a arte de modo independente da comunidade social e literária. Não enxergava nas discórdias entre os modernistas uma estratégia de análise que procurasse discutir e ampliar a especificidade do novo produto artístico, por isso preferia fugir do centro das discussões, camuflando-se na interlocução silenciosa das cartas. Quando se torna leitor crítico, o tom é franco, às vezes com expressões impróprias e exageradas, carregado de ironia que, segundo seu ponto de vista, era a formamais despretensiosa de ensinar, mais delicada e mais heróica porque dá a gente a aparência de mau em vez de superior e pedante”.[5]

Nos primeiros anos do Modernismo, o tópico das viagens pelo Brasil desperta a atenção do leitor Os dois missivistas viajam pelo país, olhos voltados para a arquitetura antiga, atentos à presença do povo, à língua falada, buscando definir a identidade nacional. Em 1924, Mário de Andrade e seu grupo visitam Minas Gerais. A paisagem mineira surge como novidade e originalidade, fazendo nascer no seio daqueles modernistas o discurso da tradição, de valorização do nacional e do primitivo. A partir desse ano, Tarsila do Amaral viaja a Paris para aprender a restaurar pinturas antigas. Oswald de Andrade publica o Manifesto Pau Brasil e Mário escreve o “Noturno de Belo Horizonte”, sem a subversão dadaísta presente nos versos de Paulicéia desvairada.

A vez de Bandeiradescobrir” o Brasil acontece três anos depois, quando ele visita a Bahia. Seus olhos se encantam com os azulejos das casas fidalgas, admira as portas de pedra lavrada, os batentes de madeira de lei e se deixa impressionar pelos pequenos oratórios, com lamparina de azeite queimado, encontrados nos becos estreitos das ladeiras de Salvador. Com entusiasmo, escreve ao amigo em 18 de janeiro [de1927]:

Mário estou apaixonadíssimo pela Bahia! É uma terra estupenda A CIDADE BRASILEIRA. Centenas centenas centenas de baitas sobradões de 4 andares e sotéia. Se eu pudesse levava um pra mim e outro pra você. [...]

O Largo do Pelourinho é a vista urbana que um brasileiro pode mostrar a um francês sem ter nenhuma dor de corno pela perspectiva dos Campos Elíseos ou da Avenida da Ópera. Quanta casa bonita! Estes oitões imensos dos sobrados de duas águas. A gente não se farta de olhar. [...] Ah, Mário você não pode demorar mais a sua viagem ao Norte. Você precisa urgentemente ver a Bahia.

É visível a analogia com a excursão feita pelo grupo de 24. Até a suposta presença de um turista francês ( um outro Blaise Cendrars ?) seria muito bem-vinda. No final da carta, porém, Bandeira não retém a sua disposição sarcástica e maliciosamente esclarece: “Não é quadro modernista é a Bahia velha perto de nós”.

De relance, ele envolve a questão do novo e da tradição sob um outro prisma: não há “choque” na descoberta do antigo porque o passado é, e sempre será uma referência, que não se aniquila no presente. A Bandeira incomodava a presunção dos modernistas de se considerarem um marco zero em seus feitos. No ano seguinte, 1928, ele excursiona pelas cidades velhas: Sabará, Ouro Preto, Mariana, Congonhas, São João del Rei. Mário espera uma “carta comprida” contando o que viu e sentiu em Minas Gerais.

A resposta vem na carta de 5 de abril quando, seduzido pelas obras do mestre Aleijadinho, declara a necessidade da publicação urgente de Macunaíma para que se fechasse o ciclo do nacionalismo com uma obra de peso, enquanto “os bestalhões que andam fazendo brasilidades não acabam de desgastar a gente do Brasil, do modernismo, da literatura, de tudo!” Nesse momento preciso, Bandeira proclama seu apego à tradição e critica as discussões sobre o nacionalismo estreito, de exaltação pura e simples da pátria e do povo brasileiros. Macunaíma, que conhecia pelas cartas, seria a abertura para que se pudesse discutir, dentro da literatura, o novo conceito de nacionalismo, longe do otimismo ou do pessimismo em excesso.

Logo depois, com natural displicência, confessa que resolveu escrever um poema sobre Ouro Preto mas defende-se do vanguardismo nacionalista quando esclarece sobre a feitura de seu texto: “Soneto alexandrino, com enjambements e chave de ouro do Tripuí”.

Seguindo as indicações do próprio remetente no processo de construção de “Ouro Preto”, publicado em a Lira dos cinqüent’anos, percebe-se como Bandeira constrói seu pensamento em relação ao movimento em gestação: trata-se de um poeta que se afina com a forma parnasiana mas a inspiração se inventa em resposta a um impulso do ser e da cultura que o faz pensar na situação do Brasil inteiro, pátria desrespeitosa, que não prospera nem avança pelo descaso com que trata o povo e sua história. Não faz uma paródia, ridicularizando o passado, como faria um modernista mais ferrenho nem se perde na reverência, cego pelo otimismo mais superficial; ao contrário, no seu poema coexiste o velho transformado em novo: a Ouro Preto de antigamente existe como exemplo que autentica, no presente, uma descrença na linearidade evolutiva da história brasileira:

Que resta do esplendor de outrora? Quase nada:

Pedras... templos que são fantasmas ao sol-posto,

Esta agência postal era a Casa de Entrada...

Este escombro foi um solar... Cinza e desgosto!

 

O bandeirante decaiu _ é funcionário.

Último sabedor da crônica estupenda,

Chico Diogo escarnece o último visionário.

Este poema reflete a maturação do poeta em relação aos exageros nacionalistas. Bandeira persiste na perenidade dos valores da lírica tradicional, posicionando-se contra a crença de que o progresso e a vertiginosa conquista das máquinas promoveriam o bem-estar econômico de uma sociedade. Não há a euforia da descoberta nem o humor debochado da denúncia mas a constatação de uma realidade histórica persistente aos movimentos de vanguarda.

Atento aos impulsos de modernização fornecidos pela obra dos modernistas, Bandeira demonstrava um espírito armado às novidades que faziam tábula rasa dos valores conquistados através dos séculos. Na primeira carta, em 25 de maio de 1922, ele inicia o diálogo epistolar ao enviar de presente alguns exemplares do seu Carnaval (1919), ao mesmo tempo, em que cobra a publicação imediata de Paulicéia, porque sentia “saudades cruéis” do oratório profano “As Infibraturas do Ipiranga”, poema em que Mário revoluciona este tipo de composição dramática ao eleger um coro leigo, composto por burgueses endinheirados, operários, poetas parnasianos, modernistas e o próprio poeta, personificado comoMinha Loucura”. O texto é enfezado, intercalado pela música de ritmos diferenciados e acompanhado por instrumentos que desafinam. Vaias e palavras violentas interrompem os diálogos marcando as diferenças ideológicas e estéticas dos diferentes interlocutores

A esse desvio da forma original, Bandeira se revela excitado mas reticente. Eis o que diz no trecho da primeira carta de 25 de maio de 1922, escrita em plena vigência da luta modernista:

Mário de Andrade,

muito tempo estou para lhe escrever, exigindo a publicação imediata dos seus poemas: tinha saudades cruéis do “Oratório”. Mas ignorava o seu endereço. Um dia destes encontro o Sérgio Buarque de Holanda, com aquele ar metálico e laminado, aquele ar que faz compreender de chofre a pintura moderna ( pelo menos foi a cara do Sérgio e a de um motorneiro de Petrópolis que m’a fizeram compreender) e soube por ele notícias suas, recebi por ele saudades suas. Tratei logo de lhe escrever, Mas para ambientar-me comprei o [primeiro número] de KLAXON, onde li coisas suas que mataram e reavivaram, mais mordentes as lembranças das

Luzes do Cambuci!...

[da] batata assada ao forno” (faça o favor de cantar), etc.

Aspectos da estética nova causavam impressões ambíguas no emissor desse discurso: à violência subversiva do oratório profano reagia comsaudades cruéis”, a ironia ferina recepcionava as obras que considerava impermeáveis ao primeiro olhar, mas a sonora mímese das cantigas populares desperta-lhe suaves afetividades. Estimulado pelos paradoxos, rende-se à leitura “esclarecedora” de Klaxon e, ao escolher seu destinatário entre os mais aguerridos dos modernistas, inaugura o gesto que marcará a sua passagem do ecletismo do final do século XIX ao Modernismo.

No programa epistolar de Mário de Andrade, Bandeira era um dos “primeiros amigos do Rio”, a demonstrar alguma simpatia pela atuação intelectual do grupo que prometia renovar a atmosfera artística do país. Nesse sentido, a carta-resposta de 6 de [junho] de 1922 indicia as características de um articulador hábil que não se perde em evasivas quando se trata de atingir um objetivo. Assim Carnaval é recepcionado como umclarim de era nova”. Do livro, ele estrategicamente seleciona “Os Sapos”, a página que considera das “maiores de nossa poesia”, numa especial deferência ao poema audacioso e divertido, que inclui a paródia e a agressividade. A blague, a ironia, a paródia , o humor de laivos dadaístas seriam uma das vertentes mais exploradas por modernistas como Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e o próprio Mário.

O verso livre, ditado pelo subconsciente, que valoriza a rapidez, a síntese, o polifonismo em substituição à ordem intelectual que exigia a métrica quantitativa e as rimas ordenadas, será também um dos tópicos que ocupa a atenção de Mário, pois ele também se servia da rima indiferentemente, fazendo uso da simultaneidade e do sincronismo da música. Dessa forma, ele destaca os poemas em que Bandeira abandonava o verso medido, preferindo a melodia infinita da música à moda com o compositor francês Erik Satie:

Os teus trechos de verdadeiro verso livre são magníficos. Gosto menos do “Debussy”. Esplêndido como fatura, não dúvida. Mas a fatura pouco me interessa. Entendo Debussy duma outra maneira. Não tenho a sensação Debussy ao ler teus versos [...] Sabes que mais? Lendo ou evocando o teu pequeno poema, lembro-me imediatamente, imagina de quem? ... de Eric. O Satie do Minuete, da Aubade, dos Morceaux en forme de poire.

Naquele momento, importava realçar os princípios da nova poética, empalidecendo outros que se aproximavam da técnica do lirismo primoroso, de efeito intimista e preso ao prazer da composição de sons poeticamente cadenciados. Tal observação remete à crítica que o poeta paulista faz ao “Debussy”. Para Mário, a sensação Debussy estaria presa ao impressionismo e ele não considerava Bandeira um poeta impressionista. Tampouco a poesia moderna deveria ser um exercício musical, de inspiração fugaz e momentânea, obediente às leis do sentido. Na carta de [outubro de 1922], ele explica que cultivava a palavra, conservando suaclareza, sonoridade falada, sentido de dicionário”, sem confundir lirismo e poesia. “Lirismo é musicalidade. Poesia é uma peça de arte inteira, fechada, com princípio, meio e fim”.

As discussões teóricas vinham acompanhadas de poemas que eram oferecidos como presentes ou enviados para leitura e avaliação crítica. Bandeira criticava o emprego de estrangeirismos ou de palavras que conferiam um tom artificial ou grandiloqüente ao discurso. Também se confessava chocado com “as rimas e muitos ecos interiores” na poesia de Mário.

Na verdade, Bandeira estava muito preso à sua poética da concisão, do equilíbrio, da simplicidade de sentimentos para apreciar sem preconceitos uma obra como Paulicéia desvairada que rompia com o padrão da poesia estruturada. Mário se defende: “Hoje não pratico mais muitos desses exageros. Tenho outros. Mas que são conscientes, propositados. E que portanto aparentemente são exageros.”[6]

As relações entre remetente e destinatário assemelhavam-se a de um discípulo e seu mestre. Mário elegeu Manuel Bandeira seu guia e mentor. No entanto, essa distinção não é seguida à risca nem mesmo nas passagens em que a opinião do mestre era requisitada com ansiedade e veemência. Quando entrava em jogo a produção artística, predominava sempre o potencial e o julgamento do artista consciente de suas intenções, como uma entidade livre e autônoma. Na carta seguinte, o poeta pernambucano revelava assim a satisfação de reconhecer em Mário o artista militante, capaz de renovar a literatura de seu tempo. Tentando sempre orientar e corrigir as “falhas” do “aluno”, de acordo com os seus próprios padrões, sem abrir mão de sua maneira de ser nem das concepções poéticas adquiridas ao longo do tempo. Eis o que afirma:

A tua cartahorrível”, que acabo de receber, está deliciosa. Deliciosa no sentido de completamente inútil. Tem muita graça que você se defenda diante de mim. [...] Teu livro é uma bomba. Senti-o. Teu livro é um lago. Também. [...] Mas aquele alexandrino e aquelas rimas na Paulicéia e talvez no lugar onde estão me desagradam. “Mas a emoção pedia assim!” A tua emoção me irrita. E pronto: sentimento contra sentimento. Não nada a fazer.

Apesar da insatisfação pessoal com a obra, ele sublinhava sua perspectiva de criação: dinâmica, original, crítica, buscando adequar-se a seu tempo. Por isso conclui, cheio de sentimentalidades:

Mário, meu querido Mário: somos sinceros. Nunca me passou pela cabeça que tenhas querido fazer obra extravagante, que tenhas procurado criar alexandrinos, etc. Tudo o que fizeste, fizeste com espontaneidade. Acredita agora também que as minhas observações nasceram não de preconceitos modernistas, mas de idiossincrasias irremediáveis. Nem pretendo ter razão.[7]

A partir de então, matizes individuais e divergências ideológicas serão sempre tratados com sinceridade e igual isenção de ânimo. Logo depois da publicação de Paulicéia desvairada, Mário de Andrade desenvolve os conceitos de “literatura de circunstância que para ele é aquela que não está preocupada com a idéia de perenidade mas que se inscreve criticamente no presente de seu país. O fato de estar escrevendo uma “língua brasileira era uma maneira de chamar a atenção para o português falado pelo povo brasileiro. Da mesma forma, quando foi ao Norte o seu objetivo era descobrir e analisar os traços fundamentais da psicologia dos brasileiros para depois exercer as críticas sobre as realidades detectadas.

Manuel Bandeira respeitava o brasileirismo perseguido pelo amigo mas em relação a uma “língua do Brasil” declarava que ele estava construindo uma língua artificial, com fortes características individuais e criticava as inserções do amigo no reino da gramática. Entretanto, concordava com a idéia de que a ação do artista é intencional e tem um alcance social. Assim, a correspondência entre Bandeira e Mário mantém acesa a chama da discussão sobre o Modernismo brasileiro. A rigor, Manuel Bandeira não superou o intimismo melancólico de sua formação acadêmica, mas arriscou-se pelas veredas da modernidade, perdendo, desde Libertinagem, o pudor das interdições sagradas. Mário de Andrade, ao contrário, viveu com extrema lucidez os problemas de seu tempo, elaborando obras que são a marca da contemporaneidade modernista do século XX.

 

Bibliografia:

BANDEIRA, Manuel. Itinerário de Pasárgada. Rio de Janeiro: Edições Jornal de Letras, 1954.

DUARTE, Paulo. Mário de Andrade por ele mesmo. São Paulo: Hucitec, 1985.

MORAES, Antonio Marcos. Correspondência. Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo: Edusp/IEB, 2000.

FOUCAULT, Michel. “L’écriture de soi” . Corp écrit. Paris: PUF (5): 2-23, février/ 1983.

RODRIGUES, Leandro Garcia. Uma leitura do modernismo. Cartas de Mário de Andrade a Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: PUC, 2003. (Cópia mimeografada)

WEINTRAUB, Fábio. “Sereias da vida alheia”. Cult. Revista Brasileira de Literatura (33), São Paulo. Lemos Editora (33): 20-25, abril/ 2000.


 

[1] Em O itinerário de Pasárgada, Bandeira confessa que não se sentia à vontade em meio a um movimento que não considerava como seu porque ele nunca repudiou o soneto nem os versos metrificados, com rimas.

[2] Carta de Bandeira, 31[ de maio de 1923], p. 94.

[3] Carta de [ novembro de 1924], p. 152. A caixa alta e o negrito estão no texto original.

[4] Assim Bandeira refere-se ao Modernismo brasileiro que buscava uma construção estética do ponto de vista da modernidade mas cujas figuras de destaque, Mário, Oswald, Graça Aranha, entre outros, apontavam para uma multiplicidade de caminhos e opções. Nessa carta de 13 de novembro de 1926, há a confissão de que sua predileção pela poesia de Mário causava uma ciumeira tremenda entre os cariocas. Cf. p. 326-327.

[5] Carta de 28 de março de 1928 em que Bandeira explica o seu estilo “joco-sério”. Essa maneira de se expressar muitas vezes feria a sensibilidade moral do amigo.

[6] Trecho da carta de [outubro de 1922] em que Mário admite a sua liberdade excessiva e sua fraqueza em cair no domínio inteiramente musical. Cf. p. 72.

[7] Carta de Segunda-feira, [outubro de 1922]. Nessa carta, Bandeira confessa ser subjetivo e contraditório, além de irônico, trocista e mistificador.