O Movimento Tradutório na Escrita Naveana

Edina Regina Pugas Panichi (UEL)

Acompanhar os passos do memorialista Pedro Nava em seu processo criador permite ver que a precisão de sua escrita se formata no ato de criar. Percorrendo o caminho da criação da obra Beira-Mar/Memórias 4, percebe-se a relação entre as linguagens visual e verbal, ou seja, um constante diálogo entre palavras e imagens.

Toda a documentação arquivada por Nava - desenhos, fichas com anotações, recortes de jornal, fotografias, plantas de edifícios, mapas - revelam um contínuo movimento tradutório em conversões que ocorrem de um código para outro. A habilidade de efetuar registros e depois transmutá-los para outras formas está presente na construção de recursos de memória. Ao criar, passa-se a exercer a capacidade de compor. Construir de forma criativa significa combinar aquilo que se conhece com elementos originados de outras áreas de experiência. Dotado de uma memória visual aguçada, o autor desenvolve suas idéias, muitas vezes, a partir de alicerces visuais. Percebe-se, assim, que quanto maior o conjunto de registros produzidos, maior será o apoio na organização e na variedade de seleção de formas que serão levadas à composição do texto escrito, pois “é a movimentação de peças que faz novas formas surgirem”. (Salles, 1998: 109)

Antes de escrever, Pedro Nava escolhia e planejava os procedimentos que seriam empregados na composição de sua obra. Desenhos encontrados entre os materiais de pesquisa do autor parecem substituir, temporariamente, a palavra - informações buscadas são expressas, visualmente, em primeiro lugar. Pfützenreuter explicita essa relação de interdependência:

[Só] é possível experimentar uma idéia visual através do registro, que se materializa com o uso de algum suporte e instrumento. Idéias e registro não são dois fenômenos separados, estão de tal forma imbricados que é possível afirmar que o ato de registros é uma forma de pensamento visual. (2001:192)

Segundo Neiva Jr (1994: 10) “imagem e discurso têm em comum a união indissolúvel de expressão e conteúdo”. Isto significa que, ao valer-se do desenho como recurso descritivo Pedro Nava buscava, primeiro, sintetizar visualmente o elemento a ser descrito, enumerando os detalhes mais esquecíveis e, a partir dessa síntese, explorava esses detalhes até que a imagem surgisse, novamente, em sua totalidade, através da escrita. As imagens têm a vantagem da evidência. Já o relato verbal para produzir o mesmo efeito, necessita de uma enunciação exaustiva de detalhes para inscrever, no discurso, a marca da realidade.

Pedro Nava inicia o volume Beira-Mar posiconando, espacialmente, o Bar do Ponto. Ponto porque era o local da Estação dos Bondes. O nome corresponde ao café mais famoso de Belo Horizonte. Para alcançar seu intento, elabora uma mapa que retrata a Belo Horizonte dos anos 1920 e os locais onde viveu momentos marcantes de sua mocidade. Como o lugar era uma confluência de várias ruas, havia formas diversas de se alcançar o famoso estabelecimento. Nava descreve uma a uma estas formas. Tanto faz vir pela rua Bahia, pela avenida Afonso Pena ou descer a rua Tamoios - o destino é o mesmo - o Bar do Ponto.

Mapa indicativo da localização do Bar do Ponto

Com base no mapa, o autor então o descreve, alternando momentos de emoção e saudade:

Considerado como vazio formado pelo cruzamento e encontro de três logradouros e desenhado por retas de esquina a esquina, o Bar do Ponto é um vasto hexágono irregular que tive várias vezes a honra de atravessar, no tempo em que se fazia flanando, conversando, sem esperar o pare! e o siga! Da luz vermelha, da verde, das mangas brancas dos guardas e do trilo de seus apitos. (p. 4)

A importância do estabelecimento elevou-o à categoria de ponto de referência para os habitantes, tal o seu arraigamento na toponímia da cidade:

[...] a designação Bar do Ponto excedeu-se psicologicamente e passou a compreender todo um pequeno bairro não oficial mais oficioso: o que se pode colocar dentro do círculo cujo centro seria o da praça e cujo raio cortasse a esquina de Goiás, um pouco de Goitacases, o cruzamento de Tupis com Espírito Santo, que tornasse a Afonso Pena, descesse Tamoios, entrasse no Parque defronte ao início do Viaduto Santa Teresa e voltasse à origem depois de reincursionar na espinha dorsal de Afonso Pena. Dentro deste círculo, tudo é Bar do Ponto. Moro no Bar do Ponto - poderia dizer o Seu Artur Haas. Minha farmácia é praticamente no Bar do Ponto, informaria licitamente o Seu Ismael Libânio. Fora destes limites, logo fora, seria absurdo falar em Bar do Ponto porque as referências já seriam o Poni, o Colosso, o Estrela, São José e, no lodo oposto, o Palácio da Justiça. (p. 4)

As esquinas, os prédios e os estabelecimentos imortalizados por Pedro Nava guardavam uma história à espera de resgate. O mapa funcionou como um túnel do tempo permitindo ao autor um mergulho no passado para o novamente palmilhar as ruas, subir as ladeiras, conversar nas esquinas. Nava traduziu o desenho em discurso emotivo, refazendo suas caminhas por meio da imaginação criativa. A reconstituição desse cenário desperta no autor ainda outras lembranças. Os que passavam por aquele trecho ilustre de Belo Horizonte não escapavam dos comentários ferinos dos freqüentadores do Bar. Cada um recebia a sua cota, destilada como veneno:

Às vezes, vinha-se alvoroçado, de dentro, correndo até à porta, para assistir à passagem de uma das melhores das boas - menina e moça irresistível no seu grande chapéu de tagal enfeitado de largas fitas, no seu vestido de palha de seda, nas meias marrons moldando bem-aventuradas pernas e combinando com a cor dos sapatos rasos ainda sem salto alto.

Senhoras da alta. Catrais inexplicavelmente desgarradas àquela hora do dia em tal lugar. Desaforo! A famosa mulata Iracema dos olhos profundos, dos sorrisos promissores e das nádegas de turbilhão. As lingüinhas trabalhavam, sobretudo dentro do Bar do Ponto. Que pernas, que seios os desta garota. Pague cinqüentão e experimente. Esta é larga e úmida. Dizem que aquela madama está dando. Quem está comendo é o. Esta, agora, não. Cada uma recebia seu comentário e os meus contemporâneos de Belo Horizonte poderiam escrever um nome exato debaixo de casa esboço que estou fazendo. (p. 5)

A famosa tradição mineira, às vezes, precisava ser burlada naquela artéria mais famosa da cidade. A freguesia habitual, com quem o autor conviveu intensamente, é assim retratada no seu modo de agir e pensar:

A especial e mais demorada, das cervejadas ostensivas ou da cachacinha pudicamente tomada em xícaras, para não escandalizar a Família Mineira passando na rua. Os garçons já conheciam os fregueses envergonhados e traziam a talagada dentro da louça inocente - só que o pires vinha sem colher.( p. 5)

As imagens gravadas na memória são ativadas pelo desenho que passa a integrar a motivação do ato de transpor para o texto os dados arquivados. Nas mãos de Nava os acontecimentos, as paisagens, os costumes e os retratos são apresentados como ternas evocações de um passado vivido, plenamente, envolto de grande saudade.

A preocupação do autor em retratar os seus personagens é bastante conhecida. À maneira do médico ele esmiúça com precisão os seus traços, não perdendo nenhum detalhe, o que comprova o seu espírito observador. A aptidão para o desenho explica um de seus métodos de trabalho - o desenho como anotação - ponto de partida para a descrição com palavras. A condensação da visualidade, no entanto, quando traduzida verbalmente, sofre um processo de expansão dando ao leitor uma descrição vívida e colorida dos tipos e dos acontecimentos. Essa capacidade imagética dá conta de um narrador que descreve com grande talento as virtualidades estéticas de um ambiente ou que disseca os seus personagens por dentro e por fora.

O volume Beira-Mar registra a juventude de Pedro Nava quando o autor era estudante de medicina, em Belo Horizonte. Livro rico de dados, de fatos e experiências é, ao mesmo tempo, informação e visão pessoal da época e dos companheiros do autor. Com o objetivo de compor o perfil do professor de Clínica Cirúrgica, Borges da Costa, Nava esboça uma caricatura do mestre e, ao mesmo tempo, elenca as suas características mais marcantes. Assim, a percepção visual é captada para depois se transformar em palavras.

Caricatura de Borges da Costa
de onde são extraídos os elementos para a descrição do personagem.

Na descrição do personagem, o médico se faz presente denunciado pelo olho clínico. A especialidade escolhida pelo autor, a Reumatologia, em que se lida com a forma humana, é assim convocada pelo narrador no momento propício, como se pode perceber na passagem:

E como era? o jeito do Borges. Cabeça grande, herdada com certeza do ramo nortista. Pescoço curto e forte, um pouco metido para dentro dos ombros largos e um quanto levantados. Tórax possante. Corpulento, sem ser barrigudo. Os braços e as pernas condizentes com seu tipo de brevilíneo médio. Mãos de cirurgião - hábeis, expressivas, acompanhando como belo elemento mímico tudo o que dizia. Era pouco corado, pele muito clara. Nariz agudo e breve semelhante a um rosto de ave. Olhos enormes, arregalados, levemente estriados pequenas veiazinhas nas escleróticas, pupila penetrante castanho-escuro. Sua expressão alternava o pensativo com o alegre. Sua boca era bem-feita, dentes conservados, várias vezes à mostra no riso fácil. Usava bigode curto, o redondo do rosto terminando por queixo firme, recolhido e calcando o pescoço, fazendo aparecer seu esboçado double-menton. (p. 307)

O caráter pictórico de Pedro Nava está relacionado com a narratividade. Grande parte de seus textos era embasada em esboços preparados com o fim específico de dar suporte à escrita. Em sua trajetória de criação, há diagramas que servem ao propósito de expressar visualmente as idéias. A retomada dos lugares de sua mocidade é, muitas vezes, fornecida por sonhos que eram anotados para depois serem aproveitados. Um deles mostra dois caminhos imaginários expressos, primeiramente, em uma visualização do cenário onde transcorrerá a cena.

Desenho usado como recurso de memória

As observações que acompanharam o desenho estão a serviço da visualidade, ou seja, à objetividade documental que busca reconstituir os caminhos imaginários, soma-se a tentativa, por parte do narrador, de reconstruir o sonho preservado na memória.

O texto assim aparece publicado:

Às vezes um sonho é que me devolve ruas pretéritas. Um deles. Estou em Paris há mais de um mês, os dias passando e eu sem ir ver aquele pedaço de cidade onde se encontra tudo de que gosto - antiquários, sebos, mercadores de gravuras, livrarias, casas especializads em velhas fotografias e postais da belle-époque, bistrôs cheios de fruits-de-la-mer e vinho branco, de pieds-de-porc e cerveja alsaciana, de coq-au-vin e tintos chambrês, de queijos eloqüentes e dos álcoois do fim das refeições - kirsch de cereja, mirabelle de ameixa, marc de uvas. Estou para ir embora e preciso passar hora que seja no quarteirão bendito da rivegauche onde se encontram essas coisas que raramente se juntam nas outras cidades. Vou já. Estou num alto, talvez Chaillot, talvez Mont-martre, talvez Chaumont - sei que descendo rua à minha frente, dentro em pouco estarei no plano e andando a pé naquelas que quero. Mas tomo, compulsoriamente, a do outro oposto e vou entrando no desconhecido. Isso já não é mais Paris. Ou será? Vejo uma placa, corro e leio rua Ceará. Sigo por ela porque agora vejo que estou em Belo Horizonte e tenho vinte anos. Bato palmas no portão do 1.305. Pode entrar, Pedro. Acordo no Rio, com setenta e lá vai fumaça... (p. 256)

As representações do espaço são importantes na obra de Pedro Nava. Dotado de uma extraordinária memória visual, consegue mapear os lugares onde viveu, reconstituindo os ambientes de sua infância e juventude. Em suas visitas a Belo Horizonte gostava de acompanhar as mudanças que o progresso ia imprimindo à paisagem, assim como conferir a sobrevivência de velhos casarões que teimavam em resistir ao tempo. A linguagem visual serve, assim, de apoio ao desenvolvimento de suas reminiscências.

Esboço como suporte para a localização no espaço

O texto resultante é o que segue:

Bahia e Januária são a mesma rua cortada pelo Arrudas e pelos trilhos da Oeste. Entretanto parece que a segunda começa logo abaixo da Estação de Bondes pois a primeira, ali, perde o caráter de central e vira via de bairro, vira rua da Floresta. Pela última se sobe até minha prima Marianinha. Toda essa zona está em modificação e vai escapando da picareta não sei como, a casa velha daquele meu tio avô, em Jacuí - que visitei recentemente com Ângelo Osvaldo. Lá colhemos juntos as provas de que a mesma vem ainda dos tempos do Curral. Nos seus porões se encontraram, como nas escavações das velhas cidades, vários grilhões, correntes, troncos de ferro, viramundos e gargalheiras do tempo do cativeiro. Lá na sua chácara é que as enxurradas devem ter enterrado os teréns da cozinha de campo do velho Halfeld. Toda essa Floresta era dos meus itinerários de menino e depois o foi outra vez, dos de rapaz, quando ia visitar Carlos Drummond ou quando com ele, Emílio Moura e Martins de Almeida subimos os detrás do Colégio Santa Maria e fomos, dentro do mato grosso das Minas e sua noite preta adentro, descobrir o Brasil no Presépio do Pipiripau. (p. 258)

Os arquivos de Pedro Nava permitem uma visualização daquilo que o autor pretendia escrever, sem o burilamento que receberia na obra. Assim, esse processo de elaboração e desenvolvimento das idéias “abrange um processo dinâmico de transformação, em que a matéria, que orienta a ação criativa, é transformada pela mesma ação”. (Ostrower, 1999: 51). Pode-se perceber, entre as suas anotações, resíduos de diversas linguagens dialogando entre si. Caricaturas se convertem em descrições de seus personagens, diagramas resgatam sonhos, plantas mapeiam espaços que depois se convertem em palavras. Os registros são assim efetuados na linguagem mais acessível no momento, aguardando uma futura tradução ou uma transmutação de códigos. O pensamento de Nava necessita da visualidade para se desenvolver. A imagem tem uma função essencial na formulação de seu pensamento. Seja desenho de observação, de imaginação ou de memória, ele aponta um caminho para o autor, é sempre esboço de algo à espera de uma concretização, ou seja, a materialização do pensamento visual.

Referências Bibliográficas

NAVA, Pedro. Beira-mar: memórias 4. 4ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.

NEIVA JR, Eduardo. A imagem. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1994.

OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. 13ª ed. Petrópolis: Vozes, 1999.

PFÜTZENREUTER, Edson do Prado. “Desenho como documento de processo criativo”. Em Manuscrítica - Revista de Crítica Genética 10, 2001, p. 192.

SALLES, Cecília Almeida. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: FAPESP, Annablume, 1998.