Três faces da mulher na literatura

Luciana Guedes (UFF)
Sebastião Votre
(UFF)

O trabalho relaciona textos que têm temática amorosa feminina. Obras em verso escritas por mulheres ou que têm vozes femininas (quando escritas por homens), pertencentes a épocas distintas.

Para tanto, são analisadas cantigas de amigo de cinco trovadores portugueses do século XIII, poemas de cinco poetisas brasileiras do século XIX e o Cântico de Salomão das Escrituras Hebraicas (século XI a.C.).

A sulamita diz: “Vem deveras, ó meu querido, saiamos ao campo, pousemos entre as plantas de hena (...) Ali te darei as minhas expressões de afeto" (CANTICOS, 1986). Também o trovador Dom Dinis usa a voz feminina: “Ai flores do verde ramo,/se sabedes novas do meu amado!” (VIEIRA, 1987: 127). E Ildefonsa Laura César, poetisa brasileira do século XIX, exclama: “Enquanto o sol ardente/deixa passar o calor,/cheirosas flores enrama/ para as dar ao meu amor.” (MUZART, 2000: 151) Esses são exemplos da relação entre os textos: os três têm a presença da mulher como eu- lírico, do seu amado e da natureza como protetora e amiga. Embora se situem em épocas distintas, mantém similaridades, por exemplo, o desejo da mulher, e não apenas ela como objeto desejado.

O trabalho trata dos seguintes tópicos - a biografia dos autores, o contexto histórico- social, os estilos de época, mulher falante vs. mulher objeto e eu- lírico vs. autor. Entre as cantigas de amigo e as poesia do século XIX é possível perceber ainda a evolução e a permanência de estruturas da língua portuguesa.

Ao pesquisar o Cântico de Salomão mostro uma mulher com atitude e vontade, descritas por Salomão, a quem ela rejeitou. Relacionar com as cantigas de amigo traça a diferença entre a atitude feminina bem retratada e a voz da mulher usada para o interesse masculino. E a poesia brasileira feminina do século XIX resgata a visão da mulher em um mundo essencialmente masculino, no qual era descrita pela visão do homem (e.g.: Diva de José de Alencar e Helena de Machado de Assis).

Pretendo chamar atenção para a produção literária feminina e dar uma contribuição aos estudos já existentes sobre o papel da mulher na sociedade e na literatura.

Já que a pesquisa sobre as mulheres na literatura é bastante comum, o estudo das mulheres como personagens e como escritoras, não só na literatura mas em vários campos, como sociologia, história, psicanálise etc.

Desenvolveu-se também a pesquisa de gênero, que mais do que apenas um estudo do papel da mulher é um estudo das relações homem/mulher e das diferenças que a sociedade delimita para estes; e neste campo há um sem número de trabalhos, feministas ou não. O objetivo desta pesquisa não é detectar se há ou não diferenças entre homens e mulheres, ou descobrir o porquê da diferença social entre estes e, muito menos, assumir uma postura radical feminista. O trabalho pretende apenas apresentar a mulher como escritora e chamar atenção para diferentes usos, por homens, da voz feminina na literatura, concordando em alguns momentos com Foucault quando diz que considera uma “indigna loucura” falar pelo outro (BRITO, 1998: 144). Portanto a proposta é fazer um trabalho de análise de textos masculinos e femininos, sempre com vozes femininas, e não uma pesquisa de gênero.

Seria mais fácil se pudesse fazer um análise atemporal dos textos escolhidos, mas para compreendermos as mulheres citadas é preciso enquadrá-las em seu tempo, sua sociedade e sua condição social. Ao selecionar para pesquisa o Cântico de Salomão, entramos no universo israelita do século XI a.C. e ,talvez, o leitor possa pensar que a sociedade israelita, por ser patriarcal, reprimia as mulheres, mas, como veremos no desenvolvimento, essa não era a realidade. No Pentateuco, parte dos textos fundadores judeus, encontramos passagens que determinam o respeito à mulher e seus direitos, por exemplo, em Gênesis 2: 20, Moisés, sob inspiração divina, escreveu que a mulher seria uma ajudadora para o homem, o texto não fala que deveria ser uma serva ou escrava. Também o livro de Deuteronômio 31: 12 relata a mulher participando de uma atividade da comunidade como igual ao homem, quando Moisés ordena que todo o povo esteja presente para a leitura da Lei, ‘homens, mulheres, pequeninos e residentes forasteiros’.

Agora demos um salto para o século XIII d.C., numa sociedade essencialmente católica portuguesa. Percebemos, ao analisar algumas cantigas trovadorescas de amigo, o uso da ironia para desvalorizar a mulher, muitas vezes fazendo um jogo de construção e desconstrução, valorizando a mulher e desvalorizando o homem que não consegue conquistar uma dama para depois debochar da mulher. A sociedade da época, da qual faziam parte os homens que escreveram as cantigas, estava inserida no contexto de uma religião que exclui as mulheres dos papéis importantes na adoração e proibi os que conduzem a adoração de manterem relações sexuais com elas, pela lei do celibato.

O outro campo de análise são poesias escritas por mulheres brasileiras no século XIX d.C., mulheres burguesas que desafiaram sua sociedade ao criticar os padrões que as excluíam da política e da literatura, e as colocavam no “seu lugar”, no âmbito doméstico, cuidando dos filhos e do marido. Algumas poesias tratam de amores proibidos pela sociedade, que aconteceram e foram reprimidos ou que nem tiveram a chance de acontecer.

No desenvolvimento, entraremos mais a fundo nos textos, nos contextos histórico- sociais e numa rápida biografia dos/as autores/as.

O Cântico de Salomão

Escrito por Salomão em Jerusalém no ano de 1020 a. C., mereceu o seguinte comentário do rabino judeu Akiba ( 1º século d.C.): " O mundo inteiro não era digno do dia em que este sublime cântico foi dado a Israel" (Míxena Judaica: Yadakim 3: 5). Também Clarke diz que é " um cântico de extrema perfeição, um dos melhores que já existiram ou que foram escritos." (CLARKE. Commentary . vol.III, p. 841; 1Reis 11: 3)

O seu escritor foi o grande rei Salomão de Israel, filho do rei Davi, da linhagem de Judá, e de Bate- Seba. Construiu em seu reinado (1037-998 a. C.) edifícios governamentais e fez grandes obras no território sob seu domínio, incluindo a construção de cidades- armazéns e grandes muralhas e o primeiro templo para a nação adorar a Jeová, no monte Moriá. Tornou-se um grande comerciante mundial, sua renda anual em ouro era US$ 256,643,000. Não só era o rei mais rico de sua época como também era um rei sábio, tornando a nação próspera e feliz. Também era um admirador das artes, possuía em sua casa e no templo harpas e instrumentos de corda e escreveu alguns Salmos, Provérbios e Eclesiastes (livros bíblicos). Amava muitas mulheres, e dentre suas esposas estava uma filha de Faraó. No fim de sua vida, tinha 700 esposas e 300 concubinas (Gênesis 3: 20).

O famoso cântico é um poema idílico, inserido na poesia hebraica do século XI a.C. Salomão retrata a história de quando não conseguiu impressionar e conquistar uma jovem simples por quem se enamorou. O poema possuí três personagens principais: Salomão, a sulamita e um pastor. A história se passa, inicialmente, perto de Suném, ou Sulém (atual Sulam), terra natal da sulamita, onde Salomão está acampado com sua comitiva e para onde a sulamita vai à procura de seu amado pastor. Salomão a detém em seu acampamento e a leva para Jerusalém, para onde o pastor vai, seguindo sua amada. Num momento raro da literatura, o autor relata as belas juras de amor da sulamita, do pastor e dele mesmo e o desfecho - Salomão a deixa partir, reconhecendo seu fracasso em conquistá-la e, nos versos, eterniza a sublime união do pastor com sua amada sulamita.

Em vários momentos Salomão escreve em voz feminina, da sulamita, expressando o grande amor que ela sentia pelo pastor e a recusa de unir-se a Salomão. Usa a voz feminina mas não deturpa a história para mostrar mais uma conquista; com honestidade, mostra admiração por aquele grande amor e pela firmeza da sulamita.

A expressão hebraica para mulher, 'ish.sháh, significa literalmente "homem feminino". A sociedade israelita dos tempos bíblicos era patriarcal, na qual a mulher era criada para casar e ter filhos e era vista como ajudadora para o homem; nas Escrituras Hebraicas, a primeira mulher da humanidade chama-se Eva, que em hebraico, Hhaw.wáh, tem o significado de vida ou vivente, porque ela tornar-se-ía " mãe de todos os viventes"8 . A mulher hebréia deveria servir a Deus em primeiro lugar e, depois, obedecer ao marido e instruir os filhos. As moças eram treinadas na arte de cozinhar, tecer e administrar a casa. Mas, embora fosse o pai que escolhesse a esposa para o filho, a mulher podia expressar sua vontade e não se tornava uma esposa calada, tinha liberdade para se expressar com o marido e às vezes ajudava-no a tomar decisões. Possuía seus direitos e deveres dentro da Lei, por exemplo, a Lei aplicava-se igualmente tanto aos homens como às mulheres culpados de adultério, já que a poligamia era regulamentada, e elas podiam participar dos benefícios dos sábados e nas festividades. A Lei também ordenava que ambos, o pai e a mãe, fossem obedecidos. É a esta sociedade que o poeta Salomão pertencia.

As cantigas de amigo

As cantigas de amigo são um tipo dentre as cantigas do Trovadorismo, poesias feitas para serem entoadas nas ruas acompanhadas por música. Compostas por trovadores, cantadas por eles mesmos ou apenas por cantores, os jograis; assim eram as cantigas portuguesas do século XIII.

No início deste século, Portugal vivia, sob o reinado de D. Afonso II, um período de desenvolvimento comercial e expansão econômica e a consolidação de uma sociedade extremamente religiosa católica e com resquícios e influências do domínio árabe na região. Já no final do século, o rei D. Dinis incentivou a cultura nacional, determinando que os documentos oficias fossem escritos em português e não mais em latim e criando a primeira universidade portuguesa, a Universidade de Coimbra.

Na literatura medieval havia a poesia lírica francesa, escrita em provençal, a poesia ibérica épica, em castellano, e a poesia ibérica lírica, em galego- português; é a esta última que as cantigas de amigo pertencem. Estas possuem um caráter local e, por comunicarem-se por via oral, são rítmicas e versificadas.

As cantigas de amigo eram compostas por homens usando a voz feminina, tratavam de temas femininos, como o da mulher só, cujo "amigo" (amado/amante) foi para a guerra ou para o mar, o da mulher abandonada e o da mulher feliz. Estas cantigas, provavelmente, são influência da literatura árabe, na qual um gênero de cantares é a regueifa, que usa temas femininos, escritos por homens como se fossem mulheres. Na maior parte das cantigas os trovadores usam a voz da mulher para transmitir o ponto de vista masculino sobre sentimentos e atitudes femininos e ironizar a mulher que tentava transgredir os padrões sociais, usando o tema do amor, da coita (ou sofrimento) e da morte por amor.

Na sociedade portuguesa do século XIII as mulheres, mesmo as damas da corte, não tinham um papel importante, ou mesmo um papel, na produção intelectual. A maioria delas nem sabiam ler e escrever, viviam para criação dos filhos e cuidar do marido, escolhido por seus pais, muitas vezes por interesses econômicos, eram mulheres mudas social e intelectualmente, não tinham o direito de expressar o que sentiam ou o que achavam sobre o mundo. Tinham apenas o dever de serem obedientes esposas e fervorosas católicas.

O pouco que sabemos sobre como, realmente, eram é por mulheres que desobedeceram a sociedade, como as trobairitz francesas, que dominaram a escrita e penetraram no mundo intelectual, escrevendo trovas e contos que demonstraram que as mulheres sentem, desejam e lutam pelos seus homens.

As poesia do século XIX

Trato aqui de poesias escritas por mulheres no Brasil do século XIX. Inseridas em um contexto intelectual essencialmente masculino. Época dos grandes escritores do Romantismo que em sua obras resgatavam mitos nacionais, criticavam a sociedade burguesa e mostravam sua visão do mundo através da história de grandes e marcantes personagens femininas: burguesas e mulheres simples que entraram para a história da literatura da literatura brasileira como retratos de uma época; retratos pintados por homens inseridos em uma sociedade machista.

Sociedade que cultivava nas mulheres os valores essenciais: donas- de- casa exemplares, mães dedicadas, zelosas católicas e habilidosas bordadeiras, grandes damas da sociedade etc. Enquanto qualidades consideradas masculinas, como escrever e participar da política, eram socialmente vetadas; a elas cabia apenas o papel de ler os folhetins.

O Brasil da época crescia com o café e nele também crescia o gosto pelos salões do império ao mesmo tempo que o sonho da república. Grandes políticos e jornais começaram a incentivar a criação da república e a defender o fim da escravidão. E mulheres corajosas passaram a defender em artigos de jornais e revistas femininas o direito ao voto.

Sempre existiram mulheres que enfrentaram a sociedade de sua época e, no século XIX no Brasil, grandes poetisas expuseram seus sentimentos e suas opiniões em sonetos, quadras, liras, em fim, em versos. As poesias selecionadas são de mulheres escrevendo em primeira pessoa sobre suas ilusões e desilusões amorosas e declarando seu amor a um desejado homem. São poesias com as características marcantes do Romantismo, só que escritas por mulheres que nos deixaram uma amostra de quem elas realmente eram.

As relações

A relação da mulher com a natureza e com uma amiga é similar no Cântico de Salomão e nas cantigas de amigo. No Cântico a sulamita conversa com as mulheres de Jerusalém e com algumas damas da corte de Salomão, sempre numa relação de confidência; e em algumas cantigas vemos a mulher falar do amigo com a mãe e receber conselhos dela. Tomemos como exemplo este trecho em que a sulamita fala sobre si mesma às mulheres de Jerusalém: “Sou uma moça preta, mas linda, ó filhas de Jerusalém./ Se tu não sabes, ó mais bela entre as mulheres, sai tu mesma nas pegadas do rebanho e apascenta tuas cabritinhas.” (CÂNTICOS, 1: 5). Também, Joam Garcia de Guilhade, trovador da segunda metade do século XIII, que pertencia à pequena nobreza portuguesa e tem em sua obra 21 cantigas de amigo, em uma das cantigas diz na voz da mulher: “Quer’eu amigas, o mundo loar/por quanto bem mi nostro Senhor fez: /fez-me fremosa e de mui bom prez,/as faz meu amigo muit’amar” (VIERA, 1987: 109). Continuando na relação cantiga- Cântico destaco duas declarações a homens amados- uma feita pela sulamita a seu pastor e outra por um eu- lírico duma cantiga- a sulamita exclama: “ Beije-me ele com os beijos da sua boca. Teu nome é como um óleo que se despeja. Por isso é que te amaram as próprias donzelas” (CÂNTICOS, 1: 2,3). E recebe a resposta: “Como lírio entre as plantas espinhosas, assim é minha companheira entre as filhas.” (CÂNTICOS, 2: 2) Agora o trovador canta: “Tal vai o meu amigo/com amor que lh’eu dei,/come cervo ferido” (VIERA, 1987: 103). E ouve a advertência: “E guardade-vos, filha,/ ca ja m’eu atal vi/ que se fezo coitado/ por guaanhar de mim.” (Idem, Ibidem) encontrando uma resposta muda de seu amado.

Nas cantigas de amigo, nas poesias do século XIX e no Cântico de Salomão é marcante a presença da natureza, atuando como protetora e amiga ou servindo para descrever o ser amado. Infelizmente a natureza também é usada para ironizar- em uma das cantigas a mulher dialoga com um papagaio, que abre seus olhos quanto a que foi abandonada. Falo de uma cantiga do rei de Portugal (1279-1325), Dom Dinis, que procurou seguir uma política de proteção e desenvolvimento da cultura e compôs, dentre outras, 51 cantigas de amigo: “Amigo loução,/que faria per amores / pois m’erraste tam em vão?/Ai Santa Maria,/que será de mim agora?” “E o papagai dizia: bem, per quant’eu sei, senhora” (Idem, p. 129). A mulher pede ajuda e conselhos a um papagaio e o pede que a entregue à morte: “Ca na morte m’é esta vida” “Diss’el: senhor comprida/ de bem, e non vos queixedes,/ ca o que vos há servida,/ ergued’olho e vee-lo-edes” (Idem, Ibdem). Ao lermos as poesias de brasileiras do século XIX, entramos em uma cena bucólica, sofrendo ainda bastante influência do Arcadismo, embora já estejam no Romantismo. A poeta mineira, Beatriz Brandão- prima da Maria Dorotéia de Seixas ( a cantada Marília de Dirceu), casada, que, embora tenha recebido apenas noções de letras e música, “aprendeu por si mesma, no silêncio do seu gabinete, as regras de poetizar e de escrever a gosto, e depurada crítica sobre matérias, que pareciam vedadas à delicadeza do seu sexo”- em um dos seus poemas, muitos deles publicados no Parnaso Brasileiro, diz: “Suave murmura a fonte/Os brandos ramos se movem,/Ao longe as vozes da Serrana e do Pastor./Abre a rosa matutina/O virgínio rubro seio,/Do Zéfiro doce enleio/Meiga negaça de Amor” (MUZART, 2000: 92). E à bela sulamita é feita uma das mais belas descrições, aliás duas, pois é descrita pelo pastor e por Salomão; e também se expressa descrevendo seu amado. O pastor elogia: “Teus olhos são os das pombas, atrás do teu véu. Teu cabelo é como uma grei de caprídeos. Teus dentes são como uma grei de ovelhas recém- tosquiadas que subiram da lavagem. Teus lábios são como fio escarlate e tua fala é deleitável. Teu pescoço é como a torre de Davi. Teus peitos são como duas crias gêmeas duma fêmea de gazela, que pastam entre os lírios.” (CÂNTICOS, 4: 1-5) Note que o pastor não só admira seus atributos físicos, mas também o que ela fala, sua personalidade.

Outra marca dos três textos é a presença de Deus, o clamor a ele por ajuda ou a acusação de culpa pelo sofrimento do eu-lírico: o Cântico faz apenas uma referência, mas esta é marcante: “O amor é tão forte como a morte. Suas labaredas são as labaredas de fogo, a chama de Jah[Jeová]. Mesmo muitas águas não são capazes de extinguir o amor, nem podem os próprios rios levá-lo de enxurrada” (CÂNTICOS, 8: 6,7). A sulamita também enaltece seu Deus por seguir Sua lei e manter-se íntegra e fiel a seu amado, com quem tinha um compromisso. Já nas cantigas o trovador retrata uma mulher que culpa a Deus por estar apaixonada e que se resigna diante do que entende ser a vontade divina, desistir de um amor proibido ou conformar-se com o abandono e a solidão. Em uma cantiga de Martim Codax, jogral galego que tem em seu repertório apenas cantigas de amigo, a mulher recorre às ondas do mar e invoca a Deus: “Ondas do mar de Vigo,/ se vistes meu amigo!/e ai, Deus, se verrá cedo!” (VIERA, 1987: 107). Também, em outra composição de Dom Dinis, lemos uma mulher abandonada que exclama a Deus e pede às flores notícias de seu amigo: “Ai flores, ai flores do verde pino/ Se sabedes novas do meu amigo,/aquel que mentiu do pôs comigo?/Ai Deus, e u é?/ Vós me perguntades polo voss’amigo/ e eu bem vos digo que é san’ e vivo.” (Idem, p. 127)

Agora vejamos as denúncias das brasileiras do Romantismo; expressam com profundidade seus sentimentos ao questionarem: se Deus é a fonte do amor e é culpado por amarem, por que esse amor não pode se realizar, por que estão erradas em amar, que Deus cruel é esse, que dá o amor mas o impede de acontecer? Muitas chegam a conclusão de que quem as encerra não é Deus, mas os interesses da sociedade; isto denunciaram as damas da alta sociedade brasileira do século XIX, que se viam obrigadas a casar por interesses familiares (econômicos) e eram apontadas quando transgrediam os padrões morais e sociais. Leremos trechos de poemas nos quais Beatriz Brandão expressa sua angústia: “Justo Deus, quando criaste,/A sensível raça humana,/Quando o pomo lhe vedaste,/Vedaste também o amor?/Se é crime a doce paixão,/Não és deste crime o autor?/Tu os sentidos nos deste,/Tu nos fizestes sensíveis: /E de paixões invencíveis/Nos entregaste ao furor?/ Leis humanas atropelam/Tuas santas leis augustas: /Formalidades injustas/Nos regem a seu sabor./Ambição, vil interesse,/Caprichos, preocupações,/Escravizam corações,/ Que nasceram para amor” (MUZART, 2000: 102, 103). Delfina da Cunha- gaúcha, cega desde a infância, primeira mulher brasileira a editar um livro de poesias, órfã que viveu de um auxílio de D. Pedro I e de realizações de espetáculos teatrais em seu benefício- concretiza a expressão da contemporânea: “Se este Deus tão sup’rior/Viveu sujeito à paixão,/Como há de meu coração/ Libertar-se deste mal,/Se o amor com arma fatal/Combate a minha razão” (Idem, p. 124). Provavelmente a poeta escreve para Manuel Marquês de Souza, por quem sentia uma paixão secreta, um silencioso amor platônico.

Os desfechos destas histórias de amor são diferentes:

Salomão declama sua derrota e a sublimação do amor pastoril da simples sulamita: “Corre meu querido, e faze-te igual à gazela ou à cria dos veados sobre os montes de especiarias.” (CÂNTICOS, 8: 14)

Os trovadores descrevem uma mulher que ama e não é correspondida ou que talvez o seja até ser abandonada. Martim Codax etrata uma mulher que chama, que propõe, mas que não recebe resposta: “ Quantas sabedes amar amigo/treides comig’a lo mar de Vigo/e banhar-nos-emos nas ondas.” (VIERA, 1987: 108) O ser amado é mudo e não ouvimos sua resposta.

As poetisas expõem a sua impossibilidade social de perpetuarem seu amor ou a angústia diante do amor solitário e seu sofrimento. A carioca Serafina Pontes, praticamente cega, expressa em seus versos profunda tristeza: “Partiste! Só me deixaste,/Sem de mim ter compaixão./Vou morrer, pois já não posso/Suportar tanta aflição!/Infeliz! Tu não me amas,/Nem sequer tem dó de mim!” (MUZART, 2000: 465). Delfina da Cunha também proclama: “Mas ai e mim! Se acaso por meu dano/Em teu sensível peito houve mudança,/Extingue com a vida o mal tirano.” (Idem, p. 125) E em um soneto completa: “Minha alma loucamente o adorava: / Quem ama como eu, tarde presume / Que amar não deve, que seu mal agrava./Quem jamais tanto amou não sendo amada” (Idem, p. 143). Mas também mostram amores felizes: “Meu coração palpita acelerado,/Exulta de prazer, de amor delira./O meu Tirce de mim vive lembrado,/Saudoso, como eu, por mim suspira;/A amorosa expressão do bem amado!” (Idem, p. 90)

Por não poder facilmente realizar seu amor, a baiana Idlefonsa Laura César- de família ilustre e que, antes de seu casamento legal com outro homem, viveu com um estudante de medicina com quem teve uma filha- demonstra em uma lira inveja da pastora: “Quanto invejo da pastora/o viver simples e bom!/Cheirosas flores enrama para as dar ao seu amor./Não fazem sua fortuna/vãs ilusões de grandeza.” (MUZART, 2000: 151)

Já, Maria Firmina dos Reis, em um poema intitulado Sonho ou Visão?, descreve: “Nas sombras da noite/Eu sinto teus lábios/Roçar minhas faces/Roçar no meu peito/Que falas mais alto/que juras ardentes,/Que votos de amor./Então eu desperto/Do sonho - ou visão.” (Idem, p. 255)

Delfina da Cunha resume numa quadra os sentimentos destas corajosas mulheres que desafiaram a sociedade de sua época: “Gosto de amar; vou amando,/Confesso minha fraqueza;/O crime não é só meu,/É também da natureza.” (Idem, p. 136)

Numa expressão que dá a volta às humilhações sofridas pelas mulheres, no poema Desilusão, Serafina Rosa Pontes pede desculpas a um jovem por não amá-lo mais, por tê-lo abandonado: “Desculpa, jovem, se de amar-te deixo./Não compreendeste meu amor tão terno,/Vai pro inferno não te quero amar./Ingênua amei-te por te crer um anjo,/És um marmanjo não te quero amar./Criei juízo, não te quero amar.” (Idem, p. 464)

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VIERA, Yara Frateschi & MOISÉS, Massaud (dir.). Poesia Medieval. São Paulo, Global, 1987,p.103. Cantiga de Pero Meogo, clérigo galego que só compôs cantigas de amigo, nove.