Uma leitura da narrativa breve
de José Cardoso Pires:
da denotação à conotação

Lucia Maria Moutinho Ribeiro (UNIRIO)

Pretende-se averiguar os mecanismos lingüísticos de denotação e de conotação presentes respectivamente na produção neo-realista e pós-moderna de José Cardoso Pires.

Partindo-se do pressuposto de que a leitura de textos literários consagrados de Língua Portuguesa é um dos fatores que contribuem para manter a qualidade do ensino e da pesquisa da Língua Materna, examinar-se-ão os contos “Os caminheiros” da coletânea Jogos de azar de 1963 e “Os passos perdidos. Informe sobre um congresso” de A república dos corvos de 1989. Narrador e ensaísta português do século XX, nascido em 1925 e morto em 1998, José Cardoso Pires desenvolve várias práticas ficcionais como a neo-realista, a documental e histórica, a alegórica e até a autobiográfica. A seleção dos contos supra-citados se deve ao motivo da cegueira, que lhes é comum, como se há-de detectar adiante.

Concebendo-se que o primeiro livro mencionado se desenvolve sobre uma estética da denotação, e o segundo, da conotação, sabe-se que o autor atravessa os movimentos literários e artísticos marcantes do século passado desde a sua estréia em 1949, inserida na terceira fase do neo-realismo português e mesclada a experiências com o nouveau-roman, até manifestar elementos pós-modernos nas últimas publicações. Verificar-se-á, pois, o percurso que levou a obra em tela a essa evolução, investindo o trabalho de aparato técnico ancorado em estudos teóricos pertinentes à proposta em curso. Terá sido esse o caminho percorrido pela representação lingüística, social, artística e literária compreendida nesse período?

Resumidos abaixo, um e outro movimento serão identificados aos textos cardosianos em questão e à correspondente expressão denotativa e conotativa da linguagem.

Comprometida com o neo-realismo, a primeira fase da obra cardosiana demonstra preocupação com a verossimilhança, com a denúncia da injustiça social, com estilo claro e ágil à Ernst Hemingway, com o relato de flashes da vida de personagens oriundos da classe ociosa: ou marginais, que por falta de ocupação não cumprem função social, ou ricos que, por excesso de bens materiais, não precisam trabalhar para sobreviver. Se a intenção é a de acusar um quadro social degradado não convém metaforizar, daí a preferência pelo narrador onisciente, pela representação fiel da realidade, por clareza e objetividade. Intentavam os neo-realistas incutir no destinatário coletivo e pobre a consciência da sua condição subalterna. A literatura tinha, pois, um compromisso didático e esclarecedor, a cujo serviço se prestava a estética da denotação. Um dos aspectos mais revolucionários da obra cardosiana diz respeito à defesa da mulher contra a opressão do macho, o provincianismo, o atraso, a ignorância, dissecados no ensaio Cartilha do Marialva de 1960. Para ele a mulher - casada, solteira, rica ou pobre - faz parte da classe dominada tanto quanto o trabalhador. Importa esclarecer que, embora seja marxista a sua visão de mundo, como a dos demais neo-realistas portugueses (e brasileiros como Rachel de Queirós, Jorge Amado, Graciliano Ramos), a abordagem da questão social na ficção cardosiana não é maniqueísta nem panfletária nem moralista, pois para ele a classe dominada é tão responsável pela conjuntura de desigualdade que vive quanto a dominante, por não reagir contra ela [Lepecki, 1977]. Isso, num tempo de utopia, idos da década de 60. Aliás, o movimento neo-realista em Portugal foi importado do Brasil, inspirados que foram seus autores nos ficcionistas brasileiros enumerados acima.

Já o pós-modernismo abarca os conceitos de intertextualidade, citabilidade, memorabilidade, simulacro, ecletismo, metaficção historiográfica.

A era pós-moderna terá surgido quando se instalou o primeiro chip de computador no início dos anos cinqüenta do século passado [Santos, 1991]. Paradoxalmente, a representação pós-moderna rejeita o domínio da máquina, daí seu retorno à história e ao passado, daí a adoção do termo pós, que reporta ao que quer que lhe seja anterior. Assim, as manifestações artísticas pós-modernas vão abolir o despojamento do modernismo, seu senso prático, sua brancura, linhas retas, objetividade, inventiva, para dar lugar ao ecletismo de formas. O pós-modernismo estaria para o modernismo assim como o maneirismo, a contra-ordem clássica, para o classicismo - nenhum dos dois é totalmente novo, mas abrem as perspectivas para o novo. Os projetos arquitetônicos contemporâneos, por exemplo, traduzem com néon, concreto, aço, alumínio, vidro, a geometria do passado. As abóbadas góticas e barrocas do shopping Praia de Belas em Porto Alegre (de Paolo Portoghesi, arquiteto, teórico e autor de Pós-modernismo: a arquitetura da sociedade pós-industrial) reproduzem uma espécie de templo, sugerindo que passear no shopping e comprar é que é a religião do mundo de hoje. Há aí uma relação dialógica com a citação e no uso de tais citações estão imbricadas ironia e seriedade, crítica e autocrítica, continuidade e mudança, autoridade e transgressão, aproximação e distância. A isso corresponde um exercício de metalinguagem e de intertextualidade que resulta numa mistura de estilos, na exaltação do lúdico, do humor, do prazer, da espontaneidade, enfim.

Como corolário dessa atitude, surge o recurso ao simulacro [Baudrillard, 1991]. Se o real é desconhecido e mascarado, o simulacro é acessível. Se o jacarandá, o mogno, o pau-brasil, são raros e caros ou extintos, recorra-se à fórmica, ao plástico, à TV, à ilusão. Assim, dê-se ao simulacro a forma que se lhe quiser dar, preencham-se os vazios que a realidade não supriu, satisfaça-se a curiosidade com a imaginação, invente-se uma hiper-realidade, crie-se metaficção. Hoje em dia, parece haver cada vez menos realidade e mais objetos reproduzidos artificialmente como numa Disneylândia sem fim: filmes, fotografias, ficções científicas, vídeos, computadores, gravadores, jogos eletrônicos, DVDs, home theatres, clips, game cubes, nintendos, CD Roms, internets, sites. O complexo de lazer New York City Center na Barra da Tijuca seria aos olhos dos habitantes do Rio de Janeiro uma espécie de monumento erguido para exaltar essa cultura da cópia característica da nossa era.

Por outro lado, o conceito de metaficção historiográfica [Hutcheon, 1991] dá conta de estratégias como a volta ao passado, a recuperação da história e da ficção tradicional, comuns em narrativas recentes. Mas, à medida que passado, história e ficção se baseiam em textos, porque só conhecemos o passado através dos vestígios de texto que aquele deixou, desconfiemos da história, pois os textos com que ela interpreta o passado podem traí-lo. Mesmo testemunhos oculares da história constituem um discurso sob determinada visão na qual nem sempre se pode crer. Agora, se a visão pós-moderna do passado duvida de que o possamos apreender por meio de restos textualizados, Walter Benjamin afirma que sim, pois o “resto fala”, mesmo que através de uma ficcionalização [Kothe, 1976].

A partir da análise de ficções negras e feministas norte-americanas, que parodiavam o discurso oficial branco e machista, Linda Hutcheon constatou que o pós-modernismo tem desviado o foco do centro - masculino, eurocêntrico e sexista - para focalizar o ex-cêntrico, o marginal, o diferente. De fato, tem-se dado visibilidade às literaturas africanas, bem como às de autoria feminina ou homossexual, ofuscadas que foram pelo estudo exclusivo das belas letras clássicas e européias, em nível acadêmico. Embora o romance histórico tradicional detectado por Georg Lukács e a metaficção historiográfica tomem ambos a história oficial como matéria e elemento estético, o primeiro legitimiza as figuras históricas tradicionais erigidas como heróis pelo discurso do poder, enquanto a segunda as desconstrói e reconstrói a partir dos interstícios, dos vazios dos fatos que os documentos houveram por bem calar. Ao ponto de vista unívoco e onisciente sucede uma perspectiva deliberadamente múltipla, provisória, limitada e heterogênea, tanto quanto a multiplicidade de versões de um fato, seja histórico ou não. À noção do escritor como criador, proprietário e empresário de sua história sucede a noção de intertextualidade e de narrativa-mestra [Lyotard, 1978] que faculta ao narrador declarar certa falta de originalidade, porquanto não se exime de se apropriar de textos alheios, desabusadamente ourtorgando-se o direito de fazer citações sem declarar a fonte. Decai, assim, a idealização platônica, clássica e humanista da obra de arte, concebida como o belo perfeito, e, com ela, as noções de autor, autoria, autoridade sobre a obra, autenticidade, originalidade, legitimidade, identidade. Esse acontecimento pós-moderno terá sido previsto pelo famoso A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica [Benjamin, 1987] com a concepção de queda da aura. A reprodução técnica e serial expõe cópias do original impossíveis para o próprio original, entretanto, um soneto de Camões será sempre um soneto de Camões mesmo reproduzido no mais reles xerox. Por outro lado, será mais lido, por mais pessoas, ou pelo menos ficará bem mais barato, deixando de ser aquele livro único, jóia rara e preciosa publicada em 1595. Quer dizer, o suporte material nem sempre tem a ver com a essência da obra de arte. A arte contemporânea será mais eficaz quanto mais reprodutível. Em cinema, por exemplo, isso é obrigatório; se assim não for, não haverá público nem filme.

Não se pode desconsiderar, entretanto, as aferições do scholar americano Harold Bloom a respeito do cânone ocidental nem tampouco a sua lista dos cem gênios da literatura recentemente divulgada. Disse ele em entrevista ao Jornal de Letras de Lisboa, em setembro de 2002, que “tudo o que é dito pelos acadêmicos é uma mentira”, “são comissários do politicamente correto, do feminismo - num sentido que nada tem a ver com a igualdade de direitos e de oportunidades das mulheres e outros ismos”. A seu ver, hoje “já não se ensina poesia, romance, teatro americano; estudam-se movimentos sociais, cinema, programas de televisão, etc. [...] Se continuamos assim, sacrificando o ensino da literatura ao do gênero (gender), etnicidade, tendências sexuais ou opiniões políticas, a sociedade acabará por se destruir a si mesma!” Preservemos o estudo do texto literário, pois.

Importa tirar o texto literário do espaço virtual que lhe cabe mediante a sua integração no espaço lingüístico e histórico de que faz parte também. Explorar as possibilidades de uma linguagem não padece de restrição. Pelo contrário, destaca a importância de um autor, um texto, uma expressão lingüística e social e uma hermenêutica.

O estudo da Língua Portuguesa e de textos literários representativos da Língua Portuguesa não deixa de ser um gesto de cidadania e de humildade que o pesquisador inevitavelmente deve ter ao se debruçar sobre o seu objeto de estudo. Do contrário não se produzirá ciência.

Sabe-se que o conceito de metáfora não é só ornamento estilístico, pois ela também está contida no próprio signo lingüístico, embora nós, falantes de qualquer idioma, nem sempre nos demos conta disso [Henry, 1971], porque a associação entre significado e significante se faz por analogia, transporte, isto é, metáfora, o que configura a linguagem como um dos mais sofisticados e abstratos atributos humanos. Afirma Catherine Kerbrat-Orecchioni, no estudo intitulado La connotation (Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 1977), que os mecanismos conotativos não derivam do inefável e podem ser descritos por unidades bifaciais, desde que se especifiquem ancoragem significante e conteúdo significado, com o objetivo de inventariar os diferentes tipos de suportes conotantes e valores conotados. O conceito de conotação põe em evidência aspectos importantes do funcionamento da linguagem de tal modo que os metadiscursos sobre conotação são conotados também. Embora a conotação pareça refúgio da subjetividade discursiva, como lugar onde se fundamenta a especificidade das línguas naturais em relação às línguas lógicas e a especificidade da língua literária em relação ao grau zero da escritura, tem sido desvalorizada à medida que é um conceito refratário a tratamento rigoroso e por isso merece exame lingüístico sério. Ao perverter a “legalidade” denotativa, a conotação demonstra que os mecanismos de produção de sentido são infinitamente mais complexos do que a teoria clássica do signo deixa supor. Essa reflexão propõe as seguintes questões: que critérios o jogo de decifração semântica deve levar a sério? Onde parar a proliferação de sentido? Onde detectar o começo do arbitrário semântico? Uma leitura plural descontrolada que não limite as bordas anárquicas do significante pode levar ao mesmo resultado de uma leitura monológica, isto é, à necrose do sentido e à negação do texto. Segundo a autora, se uma leitura anagramática autoriza polissemia infinita e se se pode ler o que quer que seja em qualquer texto, então todos os textos tornar-se-iam sinônimos e o suporte textual inútil.

A coletânea A república dos corvos, lançada em 1989, mais do que ficcional, podemos dizer que é metaficcional por tecer ficções sobre a própria ficção. Alegórica, hermética e supra-real, exige decifração.

O conto que abre a coletânea e lhe dá título reporta a lenda da fundação de Lisboa por São Vicente cuja imagem é ladeada por dois corvos que enfeitam o brasão da cidade. Um dos corvos da “república”, malandro, folgado e protagonista da ação, por lá passeia, puxa prosa, critica, namora, como qualquer mortal. Com isso o texto aborda a sobrevivência do mito e do sagrado, pois narra a lenda da chegada de São Vicente à cidade de Lisboa, nesse mundo contemporâneo e materialista, super-povoado, digital e virtual, mas ainda habitado por gente comum e que leva a vida rotineiramente.

Ascensão e queda dos porcos voadores fala do quanto nos custa abrir mão das nossas convenções.

O misterioso Lulu conta uma história de Fernando Pessoa e seus heterônimos.

Dinossauro Excelentíssimo, um “velho” texto datado de 1972 e inserido aqui e ali pelo autor, alegoriza a ditadura salazarista. Assim como esta fábula, A república dos corvos é dedicada às filhas, “Para a Ana e para a Rita” (PIRES, 1989: 7), e como toda fábula, tem cunho exemplar e intenção didática. Por isso mesmo as filhas, crianças no início da década de 70, quando lhes contara o Dinossauro e afirmava na dedicatória , “Hoje em dia pode roubar-se tudo a um homem, até a morte - disse o contador de estórias à sua filha Ritinha” , e adultas em fins da de 80, quando lança A república dos corvos e nela inclui novamente o Dinossauro, representam os leitores ideais das lições que pretende veicular, para dizer como o mundo continua igual, com os mesmos conceitos e preconceitos, ou seja, mesmo com a queda do regime ditatorial não se consegue mudar, como relatam os últimos contos.

Ironizar-nos a nós membros da classe-média, nossas convenções, formalidades, o falar impostado, pretensões, nossas fantasias que não nos deixam morrer, em A república dos corvos, supera a intenção de contar histórias insólitas. Comprovam-no os contos O pássaro das vozes e As baratas. O primeiro situa uma família encarnada por um “Contabilista [de uma] fábrica de gás” (p. 197), sua mulher e filhos, “O guarda da fábrica” (p. 203), “um pobre comerciante português..., casado e com um filho mudo de nascença e, por sinal, cunhado do guarda da fábrica onde o contabilista prestava serviço há longos anos” (p. 207). Mas o personagem principal nessa narrativa é um pássaro vindo da África, um azougueiro, caído de pára-quedas em Portugal, rolando de mão em mão, como um objeto exótico, sem destino, sem identidade. Essa “ave-rara” (p. 201), “neurasténic[a]”, “caprichos[a]”, de “carácter voluntarioso”, “difícil” (p. 198), entre muitos atributos que lhe dão os donos, representa o negro africano, escravizado, desumanizado ao longo da História, desenraizado da sua cultura, da sua terra, da sua gente, e marginalizado pela sociedade.

O segundo conto mencionado no parágrafo acima, As baratas, tem como arquitexto a novela Metamorfose (1915) de Franz Kafka, não só porque esses insetos povoam o relato, mas também porque o protagonista se chama “Kapa, engenheiro Kapa” (p. 47), “Franzisco Kapa, umas vezes, noutras Franz Kapa ou Franz K., mas sempre o engenheiro de minas”, em Portugal a serviço de Salazar e do nazismo pela extração do volfrâmio.

Na coletânea de José Cardoso Pires reconhecemos a presença de Bichos de Miguel Torga lançada em 1940. Percebem-se nas linhas cerebrais da dicção cardosiana alguns dos papéis desempenhados pelos “bichos” torguianos: o da dialética entre liberdade e opressão representada pelo gatinho Mago; o retrato da classe pobre e da mulher rejeitada como o de Madalena, tão inocente quanto as cabras que pastoreia; o do olhar preconceituoso da aldeia em relação ao comportamento diferente d’ O senhor Nicolau; a denúncia da distância entre as classes sociais e dos hábitos arraigados do comportamento burguês como o de martirizar o touro Miúra. Só que os contos torguianos vêm eivados de ternura e lirismo que os de A república dos corvos, um tanto ou quanto amargosos e excessivamente sarcásticos, não têm.

A repúlica dos corvos remete-nos ainda à fábula A revolução dos bichos datada de 1945 de George Orwell, inspirada na revolução soviética que acabou por demolir os próprios ideais, e à Fazenda-modelo de 1974 de Chico Buarque, visivelmente calcada no original inglês. Leva-nos de volta aos tempos de Esopo, a La Fontaine, isto é, lembra-nos narrativas em que animais são personagens que têm uma lição para dar, qual seja, a de acusar as falhas humanas, humanas, demasiadamente humanas, por isso, desculpáveis. Assim dita a epígrafe de A república dos corvos: “Cada homem transporta dentro de si o seu bestiário privado” - disse o Juiz.” (p. 7).

Detenhamo-nos a partir de agora no conto “Os passos perdidos. Informe sobre um congresso”. Operemos o texto mediante um processo de descodificação e codificação de sentido que remete ao próprio fundamento da linguagem, no nível fonêmico, no nível significante, na frase. Desde a aquisição das primeiras letras durante a alfabetização até as interpretações mais sofisticadas, o leitor, diante de um texto, em primeiro lugar, precisa descodificá-lo, decifrar-lhe o código lingüístico, para depois imprimir-lhe sentido. O conto em questão, à primeira vista, apresenta-se como um bloco significante indecifrável, por conta da intensa carga de conotação presente no seu discurso. O método de abordagem consiste, pois, num desmonte, numa desconstrução do bloco textual, signo por signo, para em seguida tentar atribuir-lhe um sentido.

Como indica o subtítulo, este conto reproduz o relatório de um congresso sui-generis, no qual os congressistas são cegos e conduzidos e assessorados por cães igualmente cegos. A “presidente honorária da Organização” (p. 97), lady Selina Hackett, não: esta tem olhos bem abertos pois ocupa posição de liderança, embora assuma “a altivez dum cego magnífico” (p. 98), para que os demais a sigam cegamente e permaneçam sempre cegos, isto é, sem autocrítica. O narrador aí desempenha o papel de observador e relator, di-lo em primeira pessoa, dividindo o seu relatório em quatro partes designadas com sinal gráfico introdutor de parágrafo próprio da redação de leis, para ao final requerer sua inclusão na irmandade: “Termino, Excelência, confiado em que não será tida por imodéstia esta minha referência pessoal. Juntei-a apenas como um dado informativo com vista à representação no próximo Congresso, solicitando muito respeitosamente que se digne atribuir-ma / a bem da Pátria e da Cultura” (p. 107) - para que se mantenha a ordem mundial, acrescentamos.

A leitura desse conto tenta desvendar, pois, a imagem do cego com as conotações que ela sugere, sem descartar a hipótese de que pode haver outras leituras, outras atribuições de sentido de outros leitores.

A nosso ver, a imagem do cego aí caricatura os ares de importância que nos damos ao desempenhar funcções tais como expor comunicações em congressos, ouvir e proferir conferências, alcançar os nossos quinze minutos de fama enfim, freqüentar sociedades fechadas, ou científicas ou políticas, “santuários da Cultura”(p. 106), “cadeirais da Sabedoria” (p. 104), que no conto acontecem “no Palácio dos Clássicos, também conhecido por dos Passos Perdidos”(p. 106). A antítese aí nos intriga, pois se são “Clássicos”, que dizer, simétricos, suntuosos, com “majestosas paredes revestidas de telas bíblicas” e tendo no “átrio principal” “a estátua de Pallas” (p. 102), deusa da sabedoria, como podem ser “Perdidos”, isto é, longe de orientadores?

Os cegos simbolizariam professores, intelectuais, profissionais graduados, executivos, funcionários de alto escalão ou parlamentares ou os donos do capital que usam o saber como instrumento de poder e de exclusão, sentindo-se por isso melhores, quando em essência somos todos iguais:

Não obstante, uma coisa creio poder declarar sem a menor reserva e essa é, Excelência, que todos os congressistas eram de cegueira erudita e todos eles da mais alta reputação. Se um ou outro ainda divisava algum resto da nossa luz comum, com certeza que se encontrava no limbo para o nada absoluto, “no limbo, caro Senhor”, conforme me confidenciou a mencionada cega honorária lady Hackett. (p. 98-9)

A imagem do cego, por outro lado, simbolizaria aqueles que são manipulados e, sem se darem conta, imitam os poderosos cegamente sem questioná-los. O texto com isso está acusando alegoricamente o providencial instrumento da ideologia que sustenta a convivência em sociedade como algo que atravessa o tempo “graças a uma prática incessante das leituras mortas” (p. 97), não tem princípio nem fim, seu fundador não se conhece, tanto que o parágrafo de abertura do conto começa sinalizado com reticências entre colchetes, o que indica segundo normas editoriais a supressão de um trecho: “[...] Tudo se configurando de tal modo que, sendo cegos, todos os congressistas pareciam dotados de eternidade” (p. 97), sugerindo a perenidade dessa situação.

“[E]nviados de outros mundos algures e predestinados por uma misteriosa mensagem que os trazia a reunir” (p. 99) os personagens parecem tão “consagrados” que dispensam ajuda de serviçais:

Apercebi-me então de que aquelas criaturas nobilíssimas eram presenças, não figuras. Que a cegueira que os animava nos fazia, a nós próprios, apagar-lhes o traço real. Eles deslocavam-se, Excelência, no “limiar dos apóstolos” ou seja ad limina apostolorum, para usar uma expressão dos antigos.

Sei bem que poderão afigurar-se descabidos estes considerandos pessoais em matéria de serviço e de competência. Porém, se os faço, é menos por abonação própria do que pelo desejo de transmitir, em toda a possível imformação, a verdade dos factos que tive o privilégio de presenciar, os quais são, em sua essência, demasiado perturbadores para caberem nos limites dum relato circunstancial. E posto isto, prossigo.

Conforme atrás faço referência, o pessoal do palácio ficou praticamente inactivo durante os três dias do Congresso, circunstância que dava uma configuração algo singular aos acontecimentos que ali se desenrolavam. Presos aos seus postos, os porteiros de libré, as secretárias fin-de-siècle e os criados de bufete guardavam uma imobilidade conformada como se estivessem em vigília sonâmbula. Quanto aos intérpretes suponho que recolheram a alguma dependência do palácio, já que a vastíssima cultura dos congressistas os tornava desnecessários. (p. 100)

Até porque o evento decorre todo em inglês, hoje língua universal, que dita, como todas as línguas neoliberais, que cada um deve se manter no seu lugar social. A simbologia confirma o cego como aquele que ignora a aparência enganosa do mundo, porque conhece a realidade secreta, profunda, interdita ao comum dos mortais, e, por isso, participa do divino (CHEVALIER, 1982 88-9), tal como se arvoram os congressistas, que se pronunciam num jargão erudito, incompreensível aos demais falantes:

Na realidade os cegos comunicavam entre si em dialectos e cabalas eruditas que variavam consoante as regiões e a época histórica dos temas que versavam, praticando assim as línguas correntes, não na sua forma convencional, mas nas expressões mais íntimas que lhes deram forma. Digamos que falavam em braille - isto para dar uma idéia; e desta sorte reuniam-se em si mesmos (sob a presença tutelar de lady Hackett) sem quaisquer elementos estranhos que lhes registassem o discurso desvirtuando-o (p. 101)

pois o braille é método de leitura e não de fala. A narrativa conta uma história de cegos e não de surdos-mudos e o congresso tem séria mensagem a transmitir. Corroboram essa assertiva a definição de linguagem do jornalista Nilson Lage que cita, entre os vários usos da língua, aquele que serve à “solenidade dos oradores, [ao] formalismo dos burocratas, [à] obscuridade planejada dos médicos, dos economistas” (LAGE, 1998, p. 5) e o seguinte comentário, sob a rubrica “Mercadês”, da coluna da economista Miriam Leitão de O Globo: “Esta semana um jornal brasileiro publicou a palavra “swapados” referindo-se aos títulos que farão parte da renegociação da dívida argentina. Para ser entendido, bastava [...] ter escrito que eles seriam “trocados” (O Globo. Rio, sábado, 28 abr. 2001, p. 22).

Vai daí que as sessões decorrem no “Magnum Auditorium” (p. 101) com disciplina a que até mesmo os cães obedecem, “irmandados [que estão] por uma missão superior” (p. 102) e “com a sábia moderação dos ouvintes de oratórias” (p. 103). Há representantes dos Estados Unidos, Dinamarca, Inglaterra, Bulgária, do país dos vampiros “o Dr. Ion Sturdza - Transilvânia” (p. 101) e de Portugal, “Mestre Feliciano Castilho” (p. 101), devidamente secretariado por seu cão, em clara alusão ao erudito do século XIX Antônio Feliciano de Castilho, poeta e tradutor dos clássicos antigos e de Goethe. Cego de fato desde criança - a cegueira não o impediu de produzir intelectualmente e de entrar para a história da literatura portuguesa.

O conto de José Cardoso Pires se estrutura todo sobre o campo semântico da ordem e da permanência: “porque os cegos, sempre se disse , têm por defesa natural o culto da ordem e do grau” , conforme citação ou pseudo-citação na página 105 do próprio texto e, assim, não deixará de mencionar pelo menos uma vez seu contrário, porquanto a língua também se estrutura sobre o mecanismo da diferença:

É hoje do conhecimento geral que os poderes dos cegos eminentes causam maior perturbação nos heréticos e nos apátridas da Cultura. [...] Essa a razão, finalmente, do despeito e das injúrias que lhes proferem os subversores da Escola e da Regra, muitas vezes em termos públicos e violentos como aquele de que usou um denominado Ernesto Sábato, argentino e panfletário maldito. Transcrevo: “Mi conclusión es obvia: Sigue gobernando el Principe de las Tinieblas. Y ese gobierno se hace mediante la Secta Sagrada de los ciegos. (p. 105)

Com citações, recursos gráficos de editoração (como por exemplo aquelas reticências entre colchetes indicando que o texto começa pelo meio ou nem tem início), enumeração de parágrafos com seu sinal específico, simulando relatório oficial, o conto prega peças no leitor e assim inscreve o livro na corrente do pós-modernismo, desfazendo aquela imagem severa, cáustica, para lhe devolver uma face lúdica e que nos permite interferir na obra e dialogar com ela de acordo com intenção do Cardoso ensaísta quando solicitava a cumplicidade e o instinto do leitor para interpretá-la (PIRES, 1977: 149).

Voltemos nos anos e leiamos o Cardoso Pires de estréia.

Lançada em 1963, a coletânea Jogos de azar seleciona textos de Os caminheiros e outros contos de 1949 (esgotada) e de Histórias de amor de 1952 (fora do mercado) e representa a vertente neo-realista do escritor, embora este não o aceitasse, pois sua obra não se interessa apenas por denúncia da injustiça social nem é panfletária, mas mantém, nessa fase da sua produção, compromisso evidente com o verossímil e a realidade, reproduzida em linguagem predominantemente denotativa.

Demonstrá-lo-emos com o conto que dá título a seu livro de estréia, “Os caminheiros”, porque não só presta serviço à abordagem que vimos propondo, mas principalmente insiste no motivo da cegueira, traçando, logo, um fio de raciocínio coerente com a leitura anterior. Cabe assinalar que não obstante a prevalência da camada denotativa da linguagem nessa obra, a prosa cardosiana nunca deixou de ser, isso sim, fiel à simbologia e ao lirismo.

“Os caminheiros” conta a história de um cantador cego, desses que iam de feira em feira cantando as modas de viola, daí o apelido Cigarra. Possui um guia, Antônio Grácio ou Tóino, que, mais do que guia, é seu empresário e patrão, um patrão que o explora e pretende vendê-lo para o compadre. Vão por uma estrada tão seca pelo sol quanto a linguagem que reproduz a travessia, até encontrarem o comprador no final do relato - Miguel, o compadre de Antônio, com quem estava mais ou menos acertado o negócio:

Os dois compadres voltaram-se uma vez mais para o Cigarra. Lá estava no mesmo sítio, mas agora sentado debaixo do plátano e com a viola no regaço.

“E a roupa?””, perguntou ainda Miguel. “Eu é que pago a roupa dele?”

“Não. Nem roupa nem instrumentos, nada disso é contigo. Tu só tens de pagar a comida e receber metade dos ganhos.” (PIRES, 1963: 85)

O enredo remete a Vidas secas (1938) de Graciliano Ramos, cujos personagens, caminhantes, retirantes, também suportam a escassez e saem em busca de meios de sobrevivência. A descrição dos dois companheiros atravessando a paisagem lembra ainda o retrato que encerra o filme Tempos modernos (1936) de Charles Chaplin, que não deixa de discutir a estética neo-realista, por retratar também figuras desprovidas de “autoridade cívica” (p. 13): “Os dois, estrada fora, um de viola à bandoleira, o outro de casaco no braço, faziam um par solitário atravessando a tarde. Vistos de longe, lembrariam dois amigos em passeio, e nunca duas pessoas que vão à vida” (p. 76).

Em nenhum momento o narrador diz que o protagonista é cego. O leitor o percebe através da descrição de seus gestos: “O companheiro ouviu, continuou: sempre a direito e de cabeça levantada na mesma direcção. De vez em quando estendia a bengala a tactear o asfalto” ( p. 69).

Entretanto, a sua cegueira não é simbólica e longe está de ser metafórica ou lúdica, como se viu no conto abordado anteriormente. A sua deficiência o torna dependente dos outros homens, embora estes é que sejam marginais ou, como denunciara o autor no prólogo “A charrua entre os corvos”, desocupados”, isto é, “criaturas privadas de meio de realização” (p. 12). O Cigarra tem talento, tem seu metiê, seria menos carente do que os demais, que, além de desocupados, são malandros e o enganam, a ponto de aquele nem desconfiar da transação.

Ao passar perto de Cigarra, sentiu-se agarrado. Parou. O outro chegava o rosto ao dele, desejava falar-lhe:

“Vais dar o salto, Tóino?”

Fazia-lhe a pergunta num tom sumido, quase de segredo. Mas, como era mais alto e o rosto lhe ficava por cima do companheiro, parecia dirigir-se a alguém para lá dele, na direcção das árvores da outra margem da estrada.

“A sério, Tóino, vais-te embora?” (p. 83).

O avanço no caminho corresponde ao avanço na narração e - no tempo - , tanto que, tendo iniciado a narrativa com o sol a pino, acaba ao anoitecer:

Então [Cigarra] quis dizer fosse o que fosse, mas só conseguiu agarrar-se ao Grácio e abraçá-lo com tanta força que o peito lhe doeu como se lhe tivessem tirado todo o ar.

Passado tempo, achava-se ainda sentado à beira da estrada quando sentiu que alguém o puxava brandamente pelo braço:

“Amigo, vamos ao Retiro?”

Era ao anoitecer e não ouvia pássaros nem gente à sua volta.

“Sim”, murmurou ele. “O Retiro.”

E levantou-se. (p. 90)

“Os passos perdidos”, viu-se, parecia atemporal e pairar acima da experiência concreta dos homens.

Os caminheiros”, não. Este, é bem humano, denotativamente humano.

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