A UNIVERSIDADE BRASILEIRA É MEDIEVAL?

Carmem Praxedes (UERJ)

Perguntar se a Universidade Brasileira é Medieval implica, primeiramente, responder a algumas perguntas: 1- O que é medieval? 2- O que é uma Universidade Medieval? 3- Como a Universidade Brasileira do Século XXI ainda pode ser Medieval? Vamos estabelecer algumas reflexões em busca das respostas a estas perguntas.

Medieval é genericamente um adjetivo que se refere à Idade Média, ou seja, o período que abrange a História Antiga da queda do Império Romano, em 476, até a tomada de Constantinopla pelos turcos em 1453 (Alguns sinalizam o fim da Idade Média com a descoberta da América por Cristóvão Colombo em 1492). Se durante muito tempo a Idade Média foi vista como a longa noite da História, atualmente este (pré)-conceito vem sendo contestado veementemente pelos historiadores medievais. Como exemplo, podemos citar Le GOFF (2000) um historiador medievalista francês que desenvolve uma linha de trabalho caracterizada por uma renovação profunda do conteúdo e, sobretudo, do método de ensino. Ele em todas as suas obras propõe uma História do homem do quotidiano, analisando os elementos de longa duração que têm contribuído para a formação e para influenciar, muitas vezes até os nossos dias, os modos de viver e de pensar do homem ocidental. A originalidade de Le GOFF está no seu modo de desenvolver a pesquisa histórica e na sua capacidade de descobrir aquelas tensões e aqueles conflitos que teriam provocado as mudanças que têm caracterizado a História da Idade Média. Uma Idade Média que ele faz iniciar no Século III e terminar no Século XVIII. Outro historiador que busca rever as linhas de desenvolvimento da História Européia, à luz das grandes mudanças ocorridas durante os últimos vinte anos, é VILLARI (2000), para ele a História deste último milênio tem sido revista com olhos diversos. Para VILLARI os pressupostos mais distantes da civilização européia se encontram no mundo antigo e na Alta Idade Média (Séc.V- IX). Mas a construção da Europa ocorreu no início do segundo milênio da era cristã, o renascimento das cidades ou a fase histórica em que o fenômeno começou a ocorrer. O desenvolvimento das cidades, da economia, das heresias e dos movimentos religiosos de São Francisco e São Domingos demarcam entre os séculos XI e XIII, o movimento culminante de passagem em direção a formação da civilização européia.

A revisão do conceito de Idade Média tem permitido a muitos pesquisadores desconstruir os limites meramente didáticos de épocas precisamente demarcadas e afastadas do nosso cotidiano, como uma faca afiada que tira a casca da laranja e a coloca na lixeira, como que com este ato a casca deixasse de ser laranja. Casca e laranja formam um único ser no mundo, diferentemente do cordão umbilical que une para nutrir e precisa ser separado para que o filho possa se desenvolver como um outro corpo no mundo. Para aqueles que pensam que a Idade Média encontra-se distante é necessário pensar nos limites da nossa civilização, seja a brasileira propriamente dita, sujeita a racionamentos a todo o momento, seja a dos neo-imperadores americanos surpreendidos por um apagão. Entre todas as assertivas sobre Idade Média, aquela que mais me impressionou foi a do italiano Umberto ECO (1985) ao dizer que só conhecia o presente através da televisão, ao passo que da Idade Média tinha um conhecimento direto. Resta-nos a pergunta: o que nos aproxima desta praesentia medioevale?

Em países inseridos em um estado de capitalismo-perverso, como o nosso, o cotidiano sem qualidade de vida para a maioria da população levar-nos-ia ao conceito canônico de Idade Média - lugar / tempo em que tudo faltava. Por outro lado, em países desenvolvidos - social e tecnologicamente - os grandes avanços da Idade Média podem ser diretamente notados. É o caso da Itália, país em que os tesouros da sabedoria e do saber medievais são transmitidos à população, através do ensino do Latim e Grego, bem como através da preservação de sua Arte mantida em Cidades como a de Bolonha, onde vive o escritor e pesquisador Umberto Eco grande estudioso daquela época.

Outras marcas da Idade Média atravessaram os séculos e chegaram aos nossos dias com pouquíssimas transformações se estabelecermos uma relação mudanças x tempo. Uma das mais célebres representantes deste modus vivendi medieval é a Universidade, mas como era uma Universidade Medieval?

Uma Universidade Medieval seria aquela que tivesse na composição de seus quadros a universitas magistrorum et scolarium, isto é, uma corporação de ofício que congregasse mestres e estudantes. Daí surge a figura do trabalhador universitário, chamado de trabalhador intelectual. Para Le GOFF a maior originalidade das universidades medievais é talvez, a de terem sido um imenso esforço para fazer passar a cultura do mundo do lazer estudioso ao mundo do trabalho, ou seja a universidade nascente é, antes de tudo uma instituição de ofício. E como tal rege suas relações sociais seja com um certo "mercado" de trabalho" (chamando a si monopólios e franquias), seja com os poderes eclesiásticos, aristocráticos ou reais e burgueses. Mas se este fosse o único critério para se classificar uma universidade como medieval, certamente, todas as universidades do mundo poderiam ser consideradas medievais. Não é tão simples assim, além de ser uma corporação de ofício que congrega mestres e estudantes, uma universidade para ter o lastro de medieval tem de manter certas particularidades na organização do ensino: a lectio ( quando o mestre lia o texto a ser estudado, interrompendo em alguns trechos sua leitura para um comentário que precisava um sentido literal da passagem (sensus) e depois extraía seu sentido profundo ou oculto (sententia) e posteriormente incentivavam os alunos à disputatio (debate).

No século XII houve uma grande multiplicação das escolas, principalmente nas cidades, uma vez que os grandes mosteiros rurais tendiam a fechar as suas portas. Com um grande contingente de alunos era necessário que eles morassem juntos, formando assim, as repúblicas. A grande prosperidade escolar foi regulamentada pelo III Concílio de Latrão que, devido ao grande crescimento dos mestres e dos alunos, obrigava a cada catedral a ter uma escola e uma prebenda era reservada para manutenção do mestre, instaura-se o princípio de gratuidade do ensino. Surge a licentia docenti que começou a ser concedida pelo escolástico, somente sob a alçada de sua diocese a todos que pedissem, desde que fossem considerados aptos. No século XII, entretanto, o papado criaria para as universidades uma licentia ubique docendi, de valor universal, que tornaria caducos os privilégios escolares das autoridades diocesanas.

Outro dado importante foi o desenvolvimento das traduções, principalmente, do grego. A Cidade de Veneza, na Itália do Norte, estava em contato com o império grego, ela forneceu um certo número de tradutores, que puderam trabalhar diretamente com os originais. A Sicília também conheceu no século XII uma notável prosperidade com uma civilização original baseada no trilingüismo (latim, grego e árabe), isto fez da Sicília uma região privilegiada para a atividade dos tradutores que se interessavam sobretudo pelos manuscritos científicos.

Uma característica importante da universidade medieval era o seu relacionamento com a Cidade por conta da divisão do trabalho, a variedade dos ofícios, comerciais ou artesanais propiciava a vinculação profissional. A Cidade, conseqüentemente, era também a corporação chamada de Universitas.

Nos séculos XII e XIII buscava-se a definição jurídica de corporação que definia-se por sua autonomia interna ( direito de criar para si mesma estatutos e funcionários, de impor a seus membros uma disciplina interna e de expulsar os recalcitrantes) e pelo reconhecimento de sua personalidade jurídica pelos poderes públicos. A universidade foi investida de uma parte da autoridade pública, possuindo inclusive um sinete para autenticar os atos da corporação.

Efetivamente, toda a universidade que tenha sido criada a partir da organização de mestres e alunos, com vistas à organização de institutos básicos, tais como os de Teologia, Filosofia, Letras, Direito e Medicina e tenha sido posteriormente vinculada aos poderes eclesiástico ou governamental, tendo como princípio a gratuidade do ensino e que seus mestres dediquem-se ao ensino e à pesquisa, onde exista a luta constante por sua autonomia pode ser considerada uma universidade sob os modelos medievais.

É importante, todavia, esclarecer que os documentos sobre as origens das universidades são bastantes vagos e aqueles encontrados estavam sob os cuidados da Igreja ou da realeza destinados a confirmar os privilégios destas instituições, os seus domínios, direitos e franquias da Universidade.

Seguindo o modelo acima exposto, como a Universidade brasileira do Século XXI ainda pode ser considerada medieval? Originalmente, a Universidade brasileira é medieval na sua origem que segue o modelo da Universidade de Coimbra que, por sua vez, instaurou-se a partir da mater universitas - Università degli Studi di Bologna. Por outro lado, a Universidade brasileira estabelece uma relação com o trabalho bastante diferenciada daquela medieval - i. é., hoje o trabalhador é funcionário de uma função FLUSSER (1998), enquanto na Idade Média ele exercia um trabalho comprometido com o divino, uma vez que, era uma sociedade teocêntrica. Paradoxalmente, no que se refere ao trabalho do professor, a grande diferença é a quantidade de atribuições que recaem sobre o docente, que obrigatoriamente é professor- pesquisador e burocrata e, em geral, ao mesmo tempo. Neste contexto, o professor passou de um ser comprometido com a transmissão do saber, que lhe fora concedido por Deus sob a perspectiva medieval, para o professor- pesquisador da Idade Moderna e, atualmente, para a complexa articulação comprometimento-investigação-funcionalidade. O professor é assim um super detentor do saber, devendo ter uma capacidade quase divina para o exercício de tantos trabalhos ao mesmo tempo. Todavia, ele enquanto profissional não possui um retorno financeiro diretamente proporcional à sua responsabilidade, resgata-se o princípio da oblatio, ou seja, o saber é uma dádiva e, por isso, não pertence ao professor que é apenas transmissor de um dom divino, devendo este "conceder" parte dos seus proventos à Igreja. Atualizando este princípio, o Estado hoje detém, ao não repassar, boa parte dos salários dos professores.

Tendo, pois, um modelo híbrido - um pouco americano, um pouco europeu - a universidade brasileira encontra-se ainda em formação, ou melhor, em busca de consolidar a sua identidade a partir de um projeto educacional a ser desenvolvido a médio e longo prazos no país. Todavia, as constantes mudanças de políticos interfere na implementação de políticas educacionais produtos de discussões na sociedade, como aquela que deu origem à LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação - 9.394/96. Como exemplo, citamos a tomada de decisão do atual Ministro da Educação, Cristovam Buarque, que dispensou os professores da 1ª à 4ª série da obrigatoriedade de cursarem a Universidade.

Tais decisões interferem no Ensino Superior e, por conseguinte, na Universidade, uma vez que comprometem a formação do estudante da Educação Básica - daquele que poderá ser o futuro universitário. Infelizmente, apesar do trabalho desenvolvido por educadores como Anísio Teixeira - o Filósofo da Educação Brasileira - que viu transformado em Lei o projeto de criação de 11 universidades, a Universidade Brasileira precisa criar raízes para, a partir de experiências anteriores, estruturar-se e colocar-se diante da sociedade - não apenas como sua representação, mas também como antecipadora da solução de muitos de seus problemas. Agindo assim, conseguirá romper com o peso de sua origem portuguesa - o da Universidade de Coimbra - que afetada por diversas mudanças, inclusive de habitação, não conseguiu ocupar um lugar de relevo na história das Universidades da Idade Média, diferentemente daquilo que ocorrera com as Universidades de Bolonha, Oxford, Paris que são até hoje os grandes modelos de universidades nascidas na Idade Média (JANOTTI, 1992: 213).

O Brasil - ex-colônia portuguesa - é um país com características próprias, oriundas provavelmente da dialética existente das visões de mundo dos povos que contribuíram na nossa formação cultural. Somos Africanos, Portugueses, Italianos, Alemães, Japoneses, Franceses. Temos um território em que caberiam Portugal, Itália, França, Alemanha. Nossas características exigem pelo menos duas grandes Universidades públicas por Estado. Por outro lado, neste mesmo território a energia elétrica ainda não chega a todos, fala-se, ao mesmo tempo, em inclusão digital, erradicação do analfabetismo e Projeto Fome-Zero. Vivemos num país de contrários e contraditórios.

Neste contexto, a Universidade Brasileira precisa ser Medieval nas características peculiares às Universidades fundadoras, ou seja, na valorização das Artes, Letras, Filosofia, Direito e Medicina e no seu relacionamento com a cidade que a envolve - como um corpo que interage com o seu coração numa interdependência vital. Por outro lado precisa ser Moderna na Valorização das Artes técnicas como a Engenharia e Arquitetura e ainda precisa ser contemporânea nas Ciências da mente e da Sociedade.

O papel da Universidade é cada vez mais complexo, pois as sociedades também são complexas. Localiza-se para além de resoluções e deliberações. Por isto, realizar-se-á na articulação dialética de contrários em torno do bem estar social, devendo começar com a sua organização interna por meio do comprometimento de seus trabalhadores que precisam antes de tudo arrumar a própria casa (PRAXEDES, 2002: 434-43), para que possam estar voltados à construção da Universitas - corporação de ofício/cidade sememas que estão unidos, porque não podem ser separados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

JANOTTI, A. Origens da Universidade. São Paulo: EdUSP, 1992.

LE GOFF, J. Immagini per un Medioevo. Bari: Laterza, 2000.

PERCIVALDI, E. Lo specchio del MedioEvo 1. <http://www.medioevoitaliano.org/percivaldi.specchio.1.pdf>, 2000.

PRAXEDES, C. Sociossemiótica do discurso burocrático Universitário - O caso da UERJ. São Paulo: FFLCH/USP, 2002.

TRAMONTANA, S. Il Mezzogiorno medievale. Normanni, svevi, angioini, aragonesi nei secoli XI-XV. Roma: Carocci, 2000.

VERGER, J. As universidades na Idade Média. São Paulo: Unesp, 1990.

----- & CHRISTOPHE, C. História das universidades. São Paulo: Unesp, 1996.

VILLARI, R. Mille anni di storia. Dalla città medievale All'unità dell'Europa. Bari: Laterza, 2000.