Condicionamento lingüístico
e
manutenção da sociedade
no
romance Admirável Mundo Novo

Amaury Garcia dos Santos Neto

 

O presente trabalho se dedica à análise do papel da linguagem no processo de condicionamento utilizado no romance Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, como também a relação da linguagem com o modo de acessar a realidade, sua utilização na educação dos personagens e sua importância para a manutenção da sociedade. Acreditamos ser o condicionamento lingüístico um dos elementos fundamentais para a manutenção da continuidade e da estabilidade desta sociedade utópica.

Para que possamos nos situar, faz-se primeiramente necessário o esclarecimento dos termosutopia” e “distopia”. Bernardete Pasold define “utopia como um texto literário que apresenta um mundo, no ponto de vista de seu autor, perfeitamente organizado e que proporciona felicidade a seus cidadãos, existente num lugar e tempo imaginários (Pasold, 1997: 18-19). Hugh Holman e William Harmon, definem “utopia” de acordo com a etimologia da palavra: utopia derivaria de um jogo de sentidos entre o vocábulo grego “outopia”, que significa o “não-lugar” e “eutopia” que significa “lugar bom” (in Pasold, 1997: 16).

O termo “distopia”, por sua vez, é de difícil definição. Booker considera a distopia:

(...) um termo geral que compreenda qualquer visão imaginativa de uma sociedade no intuito de mostrar, de uma forma crítica, características negativas ou problemáticas daquilo que se como ideal naquela determinada sociedade[1] (Booker, 1994: 22).

Hugh Holman comenta sobre o caráter duplo da distopia: (...) pode ser traduzido comooutro mundo e ainda o mesmo’ (...) (in Pasold, 1997: 52). Booker faz a mesma afirmação sobre o caráter duplo, desta vez sobre a “utopia”, dizendo que o que é um sonho, representando o ideal para um indivíduo, pode ser um pesadelo para outro, demonstrando que a aplicação de tais termos se torna relativa (Booker, 1994). É também relevante a definição etimológica do vocábulo, que diz ser a “distopia” umlugar ruim” (Sisk, 1997).

Para que uma sociedade utópica possa existir, a mesma depende do estabelecimento de uma ideologia oficial, que tem característica unilateral, e que determina o modo de vida de seus habitantes. Esta ideologia é unilateral pois, para que a comunidade proposta possa ser perfeita, ela depende da total adesão de seus habitantes. Idéias contrárias são necessariamente suprimidas, em nome da manutenção da sociedade. Porém, não são todos os habitantes que decidem qual será a ideologia oficial, e sim um grupo seleto, que constituirá a elite administrativa. Todos os outros habitantes terão então que se adaptar à ideologia escolhida, não se levando em conta suas opiniões pessoais, que poderiam ser contrárias à proposta oficial. Se imaginarmos que nenhum habitante estará contra aquilo que for estabelecido como oficial, então a utopia será um lugar perfeito. Como Pasold mesmo define:

O problema reside no fato de que o conceito de utopia pressupõe um otimismo subjacente em relação à natureza humana, uma convicção de que seres humanos são potencialmente capazes de voluntariamente escolherem sacrificar seus interesses pessoais pelo bem comum. (Pasold, 1997: 61)

Porém, levando-se em conta a diversidade humana, tal proposição pode ser concebida como imaginária, adquirindo o status de não realizável. Para que tal projeto venha existir, as diferenças de opiniões, ou possíveis objeções devem ser erradicadas. O aparecimento de oposições é impossibilitado, e assim, a ideologia oficial tem total aceitação. Neste ponto, a “utopia” se torna “distopia”, pois anula a possibilidade de posicionamentos contrários ao que é proposto pelo Estado. Alain Frontier afirma: a infelicidade do mundo não provém das utopias, mas daqueles que são suficientemente loucos para confundi-las com programas de ação política (in Pasold, 1997: 18). Tal argumento nos faz concluir que uma sociedade é utópica enquanto imaginária; uma distopia é tal projeto posto em prática.

Para que tal plano seja executado, faz-se necessário o estabelecimento de uma ideologia oficial, a ser difundida através da educação. De acordo com Louis Althusser, a escola representa o mais forte e eficiente aparelho ideológico de Estado[2] (Althusser, 2001). Através da educação, controlada pelo estado, e feita obrigatória para todos, a classe dominante torna-se capaz de inculcar seus valores nas mentes de cidadãos de outras classes, que por sua vez estarão recebendo tal ideologia, e assim, se posicionando na sociedade de acordo com o que lhes é pregado (Idem). Althusser afirma que o papel dos chamados AIE é de reproduzir as relações de produção, isto é, manter a sociedade configurada da mesma maneira, conferindo-a continuidade. Althusser diz:

Com efeito, são estes [AIE] que garantem, em grande parte, a reprodução mesma das relações de produção, sob o ‘escudo’ do aparelho repressivo do Estado. É neles que se desenvolve o papel da ideologia dominante, a da classe dominante, que detém o poder do Estado. (Idem: 74)

Sem tal aparelho (a escola) a ideologia da classe dominante não seria tão facilmente difundida, e sua aceitação pelas classes dominadas seria certamente dificultada, problematizando-se assim a manutenção social.

Booker aponta a teoria de Althusser como uma das principais preocupações de escritores distópicos, e afirma que tal filosofia mostra de forma eficiente o modo como a educação é apresentada na tradição distópica (Booker, 1994).

Um dos pontos mais importantes dentro da educação, que faz possível a interpelação ideológica, é a linguagem. Seu caráter aparentemente neutro faz com que esta seja um dos mais eficientes modos de sujeitar o indivíduo a uma determinada ideologia. A linguagem traz em si um discurso, carregado de uma ideologia (Orlandi, 2001), e ao ser utilizada, não está apenas servindo como um meio a se passar os valores sociais, mas como um fim, isto é, está ela própria inculcando, ou até mesmo formando, a ideologia oficial na mente daquele que é exposto a ela.

David W. Sisk, crítico literário, afirma que o gênero distópico confere grande importância à linguagem como possível meio de controle de mentes ou resistência a tal controle (Sisk, 1997: 2). Sisk se questiona de que maneira a linguagem poderia funcionar como fator de manutenção da sociedade, e como a mesma se relaciona com a educação em romances distópicos. O autor afirma ser a hipótese Sapir-Whorf um dos temas centrais na forma de se considerar a linguagem nos escritos do gênero. A primeira parte dessa teoria, proposta por Benjamin Lee Whorf, defende a idéia de que a linguagem forma e estrutura à percepção humana. Desta maneira, se torna impossível para um indivíduo apreender a realidade se não através da linguagem. A segunda, esboçada por Edward Sapir, diz que os pensamentos também formulam a linguagem: novos pensamentos podem formar novos modos de se dizer algo. Não iremos discutir a validade de tal hipótese; é suficiente atestar que a mesma parece ter sido abraçada por escritores distópicos.

Com base nessa teoria, escritores de distopias vieram a mostrar o poder de manipulação da linguagem, e explicitaram como o controle da mesma é de extrema importância para a manutenção social.

Em Admirável Mundo Novo, podemos encontrar exemplos de como linguagem e educação se unem para garantir a continuidade do Estado. Huxley cria uma sociedade utópica, na qual seus cidadãos se encontram na maior parte do tempo felizes e satisfeitos. Esta sociedade tem como prioridade a estabilidade e manutenção de sua estrutura, objetivo esse representado no lema: Comunidade, Identidade, Estabilidade (Huxley, 1932: 7). Através deste mote, pode-se compreender a importância dada à estabilidade e à comunidade. Baker explica o lema de forma interessante:

O lema é arranjado de tal forma que o termo-chave, ‘Identidade’, esteja como que abraçado pelo ideal coletivista do Estado-Mundo, ‘Comunidade’ e ‘Estabilidade’. Em tal cultura, a identidade individual não é permissível; ainda mais numa comunidade que é fixa e imutável. (Baker, 1990: 81).

O fator estabilidade também é mostrado como chave através do calendário desta sociedade: o ano em que a estória é passada é relatado como ano de estabilidade, estabelecendo um trocadilho com a expressãoAno de Nosso Senhor”.

Tal estabilidade apóia-se principalmente em quatro fatores, que chamaremos aqui de condicionamento[3]. Booker demonstra a importância de tal técnica:

Boa parte da capacidade tecnológica desta sociedade é direcionada a um programa maciço de doutrinação criado para fazer com que os membros desta mesma sociedade se sintam satisfeitos com os papéis designados para os mesmos. Relembrando a apoteose de Pavlov na Rússia soviética, os cidadãos da distopia de Huxley são condicionados a reagir automaticamente sem que pensem ou sintam. (Booker, 1994: 49)

Huxley inicia sua narrativa com um passeio do Diretor de Incubação e Condicionamento[4] e seus alunos pelo Centro de Incubação e Condicionamento. Durante este passeio o D.I.C. explica a seus alunos, e a nós leitores, o funcionamento desta sociedade. Ele mostra como bebês são geneticamente manufaturados para que ocupem um determinado papel social. Esta sociedade é dividida em diversas castas sendo os bebês criados de acordo com a demanda social.

Logo no primeiro capítulo, se pode perceber um dos principais temas do livro: a falta de individualidade, a impossibilidade de existência do conceito de diferença. Os bebês, como dito acima, são produzidos pelo Estado, de forma similar a uma linha de montagem, relembrando Henry Ford[5] e sua indústria automobilística. A possibilidade para um sentimento de individualidade é removida, que os habitantes do Estado-Mundo são manufaturados, e recebem sua identidade de acordo com a demanda social. Baker explica como a individualidade é perdida através de tal processo:

Muito mais importante, no entanto, é o simples fato que processos naturais foram substituídos pela tecnologia ao grau em que os cidadãos do Estado-Mundo são literalmente concebidos pela ciência, e não por homens e mulheres individuais. Eles nascem dentro de um sistema impessoal de sujeição que determina seu futuro, suas características intelectuais e psicológicas, e, como resultado, seu status social quando ainda são embriões. (Baker, 1990: 80)

Prosseguindo, o D.I.C. então mostra a seus alunos, e a nós leitores, todo o funcionamento do processo desde a engenharia genética, assim como o condicionamento psicológico, e o lingüístico. Vemos então o entusiasmo do D.I.C. ao narrar fatos que a nós leitores chegam a ser grotescos, como a sessão de choques elétricos nos bebês. Esta parte é de absoluta importância para nosso trabalho, pois os bebês são condicionados a detestar livros, pois estes são associados à agonia e à dor causadas pelos choques. Livros contêm linguagem, e, portanto, discurso. Levando-se em conta a hipótese Sapir-Whorf, a linguagem tornar-se-ia uma possível ferramenta de subversão. Ao condicionar os cidadãos contra livros o Estado está reconhecendo tal poder, e demonstrando seu cuidado para com a linguagem. O governo não deseja que seus cidadãos sejam descondicionados por palavras. Devemos também atentar ao fato de que, além desse condicionamento, ainda há a proibição de várias obras, fato que se faz claro na parte final do romance.

Nestes capítulos, Mustapha Mond, Administrador da Europa, tem uma conversa com John, o selvagem. John é um homem que não foi criado no Estado-Mundo, pois nasceu dentro de uma reserva selvagem, e, portanto, não foi exposto ao mesmo tipo de educação dada aos habitantes do admirável mundo novo. Sua educação consiste basicamente de suas experiências adquiridas na reserva e de sua leitura de Shakespeare.

Quando esses dois personagens discutem literatura, filosofia e religião, podemos compreender a visão do Estado-Mundo em relação à leitura. Mustapha afirma que livros são largamente proibidos pois têm o potencial de descondicionar os leitores, tornando-se ameaças para a ordem social. Em relação a essa perspectiva Booker afirma: Eles [cidadãos do Estado-Mundo] são, como Mond diz, ‘bons animais domados’, opondo-se aos efeitos potencialmente subversivos trazidos por Shakespeare ou outras coisas antigas produzidas fora da ideologia do sistema atual (Booker, 1994: 173). Sisk, por sua vez, lembra que: A sociedade Huxleyana teme a palavra impressa como talvez a única força que pode permanentemente subverter anos de condicionamento meticuloso. (Sisk, 1997: 20)

Sisk então argumenta que para evitar tal problema, o Estado faz uso do condicionamento lingüístico, durante a infância de seus cidadãos, tratamento chamado de hipnopedia. Durante tal processo, crianças, em seu período de sono, escutam frases contendo a ideologia oficial. Através da linguagem, os valores que formam a filosofia do Estado são inculcados nas mentes das crianças. Huxley nos explica em seu Brave New World Revisited que durante o sono, ou períodos de extremo estresse ou cansaço, é comum que o ser humano tenha o seu nível de sugestionabilidade elevado, isto é, o indivíduo oferece menos resistência a sugestões externas. Huxley também diz que o reflexo condicionado tem pouquíssima chance de ser descondicionado, isto é, o que é inculcado na mente do indivíduo torna-se parte integrante do mesmo (Huxley, 1965). No romance em questão, tal processo de hipnopedia é parte integrante da educação das crianças, sendo obrigatório, e provido pelo próprio Estado, o que nos faz recordar o comentário de Althusser, mencionado anteriormente, a respeito do fato de a escola desempenhar o papel do mais eficiente AIE (Althusser, 2001).

Com a sugestionabilidade elevada, o potencial de aceitação das crianças expostas às frases aumenta de maneira considerável, e a possibilidade de que as mesmas venham a agir da maneira como são induzidas se torna praticamente garantida. As sugestões são todas passadas através de frases, que são sucessivamente repetidas, com o propósito de que adquiram o status de verdades, de idéias naturais, nas mentes dos sujeitados. Estas frases, ou rimas, são criadas pelo próprio Estado, e carregam em si os valores necessários para a manutenção da sociedade. O D.I.C. se refere a tal processo comparando as rimas a gotas de cera:

(...) como gotas de lacre derretido, gotas que aderem e se incorporam àquilo sobre que [sic] caem, até que, finalmente, a rocha não seja mais que uma massa escarlate.

Até que, finalmente, o espírito da criança seja coisas sugeridas, e que a soma dessas sugestões seja o espírito da criança. Mas também o adulto, para toda a vida. O espírito que julga, e deseja, e decide, constituído por essas coisas sugeridas. Mas todas essas coisas sugeridas são aquelas que nós sugerimos, nós! (Huxley, 1932: 31).

Huxley afirma em Brave New World Revisited, e através do D.I.C. no próprio romance, que a linguagem é elemento crucial para que o processo possa ocorrer. Esta linguagem tem o poder de passar os fundamentos morais com maior eficácia que qualquer outro meio. O D.I.C. explicita tal poder ao explicar o funcionamento da técnica de hipnopedia:

Rosas e choques elétricos, o cáqui dos Deltas e uma baforada de assa-fétida – ligados indissoluvelmente antes que a criança saiba falar. Mas o condicionamento sem palavras é grosseiro e genérico; é incapaz de fazer aprender as distinções mais sutis, de inculcar as formas de comportamento mais complexas. Para isso é preciso palavras, mas palavras sem explicação racional. Em suma, a hipnopedia (Huxley, 1932: 30).

No segundo capítulo do romance, o D.I.C. mostra uma sessão de hipnopedia, chamada de “curso elementar de Consciência de Classe”, onde um grupo de crianças Beta recebem sugestões de como conceber pessoas de outras classes sociais. Durante as sessões de condicionamento, as seguintes frases são repetidas:

As crianças Alfas vestem roupas cinzentas. Elas trabalham muito mais do que nós porque são formidavelmente inteligentes. Francamente, estou contentíssimo de ser um Beta, porque não trabalho tanto. E, além disso, nós somos muitos [sic] superiores aos Gamas e aos Deltas. Os Gamas são broncos. Eles se vestem de verde e as crianças Deltas se vestem de cáqui. Oh, não, não quero brincar com crianças Deltas. E os Ípsilons são ainda piores. São demasiado broncos para saberem ler e escrever. E além disso se vestem de preto, que é uma cor horrível. Como sou feliz por ser um Beta (Huxley, 1932: 30).

Este é um dos primeiros exemplos de rimas de hipnopedia, dentre vários que aparecem ao correr do texto, e demonstra bem a forma simples como são construídos para que sejam facilmente aceitos e assimilados. Uma característica muito importante mostrada neste exemplo é a ênfase dada à satisfação que o cidadão deve ter por ser o que é, satisfação que é condicionada em todos os habitantes, diminuindo a possibilidade de que sintam a necessidade de mudar, o que poderia acarretar um problema para a manutenção de tal sociedade. Com este exemplo, ironicamente chamado de consciência de classe, vemos como o Estado inculca o sentimento de satisfação, para que o mesmo gere a adesão de todos os interpelados à filosofia.

Outros exemplos importantes são: (...) cada um pertence a todos, e quando o indivíduo sente a comunidade treme. Através do primeiro exemplo, o Estado demonstra seu poder de controle sobre o indivíduo, que ninguém pertence a si próprio, e sim a outros, ou seja, nenhum membro tem controle sobre sua vida. Quanto a segunda frase, podemos ver claramente a oposição entre o indivíduo e a comunidade, e, chegamos a conclusão que o indivíduo não deve sentir. Uma das rimas que melhor mostra o pouco valor dado ao indivíduo é dita pelo próprio D.I.C.: o corpo social subsiste embora as células componentes mudem. Com tal sugestão vemos claramente a importância dada à comunidade em detrimento do indivíduo.

Se levarmos em consideração a hipótese Sapir-Whorf, assim como todo o processo de hipnopedia, e o caráter discursivo da linguagem, chegamos a conclusão de que os cidadãos do Estado-Mundo se vêem apenas como componentes de um corpo maior, corpo este que deve sobreviver. Desta forma acontece o condicionamento lingüístico, através de palavras que formam o caráter e os costumes de toda uma comunidade.

É interessante analisarmos também a reação dos cidadãos a experiências as quais não foram condicionados para experimentar. Estas experiências não podem ser expressas, pois os cidadãos não possuem a linguagem para tal. Quando isto acontece, os personagens que se encontram nestas situações logo recorrem às rimas de hipnopedia, mostrando, assim, a matéria da qual suas consciências são feitas, ecoando a afirmação do D.I.C., citada anteriormente. Podemos ver isto no seguinte diálogo entre Marx e Lenina, dois dos personagens principais do romance:

Ele começou a dizer-lhe uma porção de absurdos incompreensíveis e perigosos. Lenina fez o que pôde para tapar mentalmente os ouvidos, mas de vez em quando um fragmento insistia em se tornar perceptível. ‘... para experimentar o efeito produzido pela repressão dos meus impulsos’, ouviu-o dizer. Essas palavras pareceram despertar algo em seu espírito.

Nunca deixe para amanhã o prazer que puder gozar hoje – disse ela gravemente.

– Duzentas repetições, duas vezes por semana, dos quatorze aos dezesseis anos e meio – foi o único comentário dele. As palavras loucas e perversas continuaram. –Quero saber o que é a paixão ela o ouviu dizer. –Quero sentir alguma coisa com intensidade.

Quando o indivíduo sente, a comunidade treme – declarou Lenina. (Huxley, 1932: 89).

Quando forçados a encarar situações não-ortodoxas, os personagens fazem uso dessas rimas, que são a soma de suaspersonalidades”, personalidades estas produzidas pelo Estado.

É interessante notar a forma como Lenina responde aos argumentos de Marx: não somente são essas respostas uma repetição das rimas previamente inculcadas em sua mente, mas as mesmas são utilizadas imediatamente após Lenina ser exposta a certos tipos de palavras num contexto não reconhecido; estas palavras funcionariam como estímulos, e, por terem sido seus reflexos condicionados também através da linguagem, Lenina simplesmente repete as rimas.

Nestes poucos exemplos podemos ver como a ideologia oficial se faz presente através da linguagem. O condicionamento lingüístico é tão forte, que os habitantes do Estado-Mundo se tornam realmente incapazes de conceber pensamentos que possuam uma direção subversiva. Como Matter propõe:

Os administradores mundiais parecem concordar com a teoria de relatividade lingüística proposta por Benjamin Lee Whorf, que sugere que pessoas que não tem palavras para expressar sentimentos anti-sociais não conseguem pensar de forma anti-social (Matter. Apud Sisk, 1997: 27-28).

A manutenção da ordem, e a continuidade desta sociedade são então garantidas através da linguagem.

O mais interessante é que os personagens acreditam serem suas as palavras que utilizam, incapazes de ver que estão sendo simplesmente escravizados através da linguagem. Assim, o controle se dá de forma eficiente e total. Como Sisk comenta:

Admirável Mundo Novo não mostra um governo forçando uma linguagem que restrinja o pensamento em seus cidadãos. Ao contrário, Huxley nos mostra uma sociedade que produz sua população de sua concepção em diante e então faz com que todos os desejos, que foram previamente condicionados, sejam realizados. Os cidadãos do Estado do Admirável Mundo Novo não se consideram reprimidos. Eles não desejam coisas que o Estado baniu. Ao contrário, algumas palavras para conceitos fora de moda ainda existem, mas são rebaixadas (...). Se considerarmos a maioria dos cidadãos, a felicidade total e a harmonia social foram estabelecidas sem nenhum custo. (Sisk, 1997: 22)

Podemos ver então, como a linguagem, através da educação, inculca os valores sociais nas mentes dos personagens desta distopia, mostrando como suasnaturezas” na verdade são apenas construtos sociais. Huxley nos oferece algo oposto a visão romântica da linguagem, que a compreende como um instrumento libertário, e nos chama a atenção à sua característica manipuladora, e até mesmo escravista. Sua contribuição para nosso entendimento dos mecanismos da linguagem é imensa, e sua forma de nos advertir sobre seus perigos nos inspira a buscarmos cada vez mais a consciência sobre os discursos, isto é, a política que se encontra imbuída em todo o uso que fazemos da linguagem.

 

BIBLIOGRAFIA

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado, trad. Maria Laura Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Graal., 2001.

BAKER, Robert S. Brave New World: History, Science, and Dystopia. New York: Twayne Publishers, 1990.

BOOKER, M. Keith. Dystopian Literature: A Theory and Research Guide. Westport: Greenwood Press, 1994.

––––––. The Dystopian Impulse in Modern Literature. Westport: Greenwood Press, 1994.

HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. trad. Vidal de Oliveira & Lino Vallandro. São Paulo: Globo, 1932.

––––––. Brave New World & Brave New World Revisited. New York: Harper & Row, 1965.

ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2001.

PASOLD, Bernadete. Utopia X Satire in English Literature. Florianópolis: Ares, 1997.

SISK, David W. Transformations of Language in Modern Dystopias. Westport: Greenwood Press, 1997.


 

[1] Tradução livre; todas as traduções, neste artigo, são de seu autor.

[2] A partir deste momento este item será apresentado na forma abreviada AIE, como o próprio autor o utiliza.

[3] Os tipos de condicionamento são: genético, psicológico, lingüístico, e químico.

[4] Desta parte em diante, tal personagem será chamado de D.I.C.

[5] Huxley faz uso de Ford como uma espécie de divindade. Um exemplo claro é a substituição do vocábulo “Lord” (Senhor) por “Ford”, e também nos jogos de palavras, como na troca de “Lordship” (alteza) por “Fordship” (fordeza).