CRÍTICA GENÉTICA: A BUSCA DE UMA IDENTIDADE

Maria Antonia da Costa Lobo (UCB e UniverCidade)

Considerar um texto em sua respectiva individualidade e em sua própria historicidade, estudar uma escritura como processo leva à compreensão e à formalização de hábitos gráficos de um escritor.

É fundamental ressaltar o idioma, registrado no manuscrito, em uma situação de narração, que força acomodações e desloca elementos, tanto no nível sintagmático, quanto paradigmático, em claro resultado do confronto entre o mundo da imaginação e o mundo da linguagem.

Que códigos meta-escriturais são utilizados? Quais são os rituais para ocupar progressivamente uma página? E a fragmentação de fatos, dados e coisas?

ESCRITURA: A PROBLEMATIZAÇÃO

O contido no(s) rascunho(s) supõe a interação entre um lugar psíquico, de percepção, de memória, mas que desemboca no conceito central do Inconsciente, e uma instância lingüística.

Freud, por exemplo descreve o inconsciente não como um reservatório de obscuridade, em qualquer lugar atrás da consciência, o que restaria uma imagem romântica, mas como um mecanismo neuronal e lingüístico ao mesmo tempo, que se interpõe entre as percepções sem memória e o pré-consciente, depois o consciente. O inconsciente é uma espécie de tela imponderável, uma grade que se turva, cada vez mais coberta de sinais opacos e diferenciais, e que vem se intercalar entre nossa percepção de mundo e a memória consciente ou pré-consciente que se conserva disso - o inconsciente é u’a máquina de escrever.

A psicanálise encontra, nos lapsos das formações do inconsciente, sintomas reveladores de um conflito de instâncias, abrindo uma via de acesso particularmente rica para os conteúdos refluídos.

A genética do texto deve coletar o psíquico na respectiva materialidade dialetal, isto é, ao nível o mais desorganizado da linguagem e na forma a mais associal da respectiva produção.

A influência desse psíquico é tamanha, a ponto de dar, às vezes, a impressão que os erros são o que há de mais interessante no texto.

Em verdade, no caso da filologia, por exemplo, os erros de transmissão são tratados com a maior atenção e por meio de uma metodologia extremamente elaborada, a ponto de considerar, na prática, os diferentes exemplares de um texto, dos quais essa mesma filologia se ocupa como simples suportes de faltas - propondo-se, contudo, como última finalidade perseguir tenazmente esses erros com a respectiva eliminação.

Na realidade, poder-se-iam aproximar a psicanálise e a filologia no plano mais fundamental, observando-se que se constituem ambas como ciência da repetição, até chegar à busca da origem.

E a crítica genética - o grande filão da Filologia - tem por finalidade estudar a invenção, o surgimento do texto, a dinâmica do sentido. Mas não há invenção que seja pura de repetição, e a genética aí se encontra confrontada a cada passo, sob a forma de uma lógica (freudiana) de retorno pelo menos tanto quanto sobre o modelo filológico da cópia.

É importante considerar, então, que, na dinâmica do sentido, no surgimento do texto há um rascunho e um inconsciente inter-relacionados. Mas que relação é essa? Se existe um sentido não nomeado e talvez não nomeável, de que modo chega ele até a significação verbalizada?

O(s) rascunho(s) pode(m) levantar o véu que oculta uma experiência subjacente ao texto, ajudando a reconstituí-la no texto - apelo à razão, ao imaginário, ao inconsciente do leitor.

A experiência para a análise faz brotar a princípio um novo objeto. Posteriormente, ela se torna conhecimento desse brotar. Do aparecimento a princípio confuso, ela extrai uma visão, uma ação de observar e, finalmente, um saber. Essa mesma experiência mobiliza o Inconsciente, a percepção e até o que antecede a linguagem expressa.

É no(s) rascunho(s) que estão alojados elocubrações, depressões, desejos, manifestações mentais e é ele que oferece a compreensão - o descobrir, o revelar constante e ininterrupto. Em verdade, há um inconsciente rascunhado.

É nele(s) que se podem detectar os estados de sonhos, nos quais o enfraquecimento da censura - se existir - consciente oferece um acesso ao inconsciente, ao sentido ao ser.

É importante considerar a distinção entre a escrita (fora do(s) rascunho(s), de notas, de fragmentos) e o rascunho propriamente dito (inscrito em uma temporalidade de produção textual).

A etapa do(s) rascunho(s) é uma etapa segunda. Trata-se de encontrar um traço fluido, e, no processo de escritura, ocorre a materialização na Língua sobre a página, enriquecendo-o, modificando-o, visando a torná-lo definitivo. Esse traço constitui um trabalho lógico e responsável pela união de um desejo (in)consciente a algum prazer.

Durante o processo de escritura (do rascunho), o sentido continua a aflorar e o Inconsciente a surpreender, mas o essencial - ou pelo menos o específico - do rascunho(s) está na colocação na Língua que engloba estratégias: a seleção lexical e a construção de estruturas que aproveita essa seleção. E, então, advém a enformação final.

O CORPUS

A noção de corpus engloba, em verdade, a totalidade da matéria genética.

O princípio, no caso, é o estatuto do texto, o que vai distinguir os escritos analíticos ou sintéticos dos escritos pré-analíticos ou pré-sintéticos. Tudo começa com o(s) rascunho(s) - notas na origem sem título - o esboço. A imagem de uma sucessão de inscrições estratificadas, remanejadas, em função das circunstâncias presentes.

Nele é (d)escrito o processo de gênese tal qual se pode ver nos rascunhos. Toda atividade genética se analisa como um efeito: é retroativamente e com todo o arbitrário do fato concluído que a obra (concluída) permite praticar um recorte, gerando o pré-texto, instaurando uma ordem e a partir de um conjunto de traços - ou mesmo um continuum material - o texto é que determina a gênese.

O crítico genético dispõe não somente da obra final, mas de documentos que testemunham concretamente diferentes etapas - embora essa diferença seja ilusória, à medida que os documentos são interpretáveis apenas a partir da configuração final.

O pré-texto aparece como o resultado de um duplo recorte. Um recorte que o exclui como dejeto, constituindo o texto concluído, e um recorte que o constitui.

Ele reflete o que é preciso esquecer, abandonar, o que é preciso registrar, lembrar - a interpretação completa, a explicitação do que é necessário escrever (registrar) - e faz passar de uma parte à outra.

Na lembrança da hesitação, dois fragmentos são colocados lado a lado, devendo o escritor optar por um deles. Trata-se de um jogo com uma série de imagens.

Um corpus existe, com toda hesitação que esse termo permite, entre o próprio corpo da obra e a constituição de um arquivo textual.

Pré-texto

O pré-texto tende a se projetar em todo o espaço da página. Essa especialização (que acompanha as etapas de redução linear ou é alternada dialeticamente com esta no processo amplificador das provas) expressa uma linguagem que inventa a própria gramática e que se reflete em uma incessante atividade de acréscimos (adição) e de supressão (eliminação), de integração e de desintegração e até pelo preenchimento ou não dos vazios (espaços em branco).

O conjunto dessas operações leva, com efeito, a marca de um estilo específico e avaliar-se-á o que opõe duas espécies de gênese: a primeira que brota antes (caderninhos, anotações esparsas, cenários); a outra que precipita o respectivo curso sob o fogo das provas, até a última fronteira a tirar partido, ultrapassando-a mesmo, para impor retroativamente à obra (definitiva) o cadastramento voluntário do material disponível. São os percursos da leitura.

Desenhos

No trabalho de escritura, o gesto manual pode permitir uma primeira forma de representação moto-afetivo-sensorial do que ainda receberá simbolização verbal. Pode constituir o suporte para escrita, enquanto espaço capaz de acolher traços e permitir transformações sucessivas.

Verifica-se, então, o deslocamento das perspectivas de pesquisa do pólo verbal da comunicação escrita para o pólo gráfico e visual. No caso, há uma certa congruência íntima entre certos motivos - à primeira vista, apenas decorativos - e a lógica da escritura.

O conjunto de anotações, aparentemente inúteis (acréscimos, anotações marginais) e sem relação com o textual, mais os desenhos (mesmo que tolos) constituem a condição e o reflexo de um trabalho de escrita, no contexto biográfico da escritura.

Uma abordagem genética não pode se permitir ignorar a estratificação freqüentemente ocorrida a níveis tornados muito complexos de enunciação de um texto.

CONCLUSÃO

A gênese do texto deve, inicialmente, ser considerada do ponto de vista da primeira espacialidade que a mão coloca em jogo.

O trabalho da escritura e com ela faz intervir um suporte, enquanto sinais acolhidos, tanto por sinais não escriturais - espaço em branco, desenhos - quanto por sinais escriturais. Todos participam de uma organização de um suporte como superfície (de inscrição), capaz, simultaneamente, de receber traços e assegurar uma transformação. Eles permitem refletir a respeito do trabalho de elaboração do texto, através de uma dinâmica material do traço. Não pode haver inscrição sobre uma superfície receptora - o papel, no caso do escritor - se esta não for investida como local possível de acolhimento e de transformação de traços.

Seria um erro pensar que o trabalho com o manuscrito se deixa estritamente reduzir ao trabalho da escritura.

Se a analogia entre a leitura de um texto e a leitura de um desenho permanece um problema, não resta dúvida que, no instante do traçado, escrever e desenhar obedecem à lógica criadora: o desenho coloca em contato estreito com os processos psíquicos, enquanto que a escritura oferece a possibilidade de agir com as representações.

No caso do pré-texto, uma rasura, por exemplo, pode ter não somente um sentido em relação à palavra ou à estrutura em que ela é visível, mas também como um índice de um corte (supressão) ou de uma sobrecarga advinda na continuidade do pensamento no instante da inscrição.

A rasura funciona, então, como um indicador da necessidade de renovar com o pensamento que se achou distanciado para permitir a dinâmica da estrutura em curso de desenvolvimento até o extremo.

Uma rasura pode constituir tanto o indício de um movimento psíquico a prosseguir, quanto aquele de um termo inicialmente escolhido pelo escritor e, posteriormente, recusado - portanto riscado - pelo escritor. Contudo, ela não é apenas o indício de um conteúdo aceito ou recusado, mas aquele de um movimento do pensamento pelo qual uma idéia foi provisoriamente afastada, indicando a necessidade do retour en arrière.

Da mesma forma, o caso de estruturas inacabadas (não concluídas) ou de trechos de estruturas igualmente não concluídas não significa (forçosamente) que o pensamento que sustentava a respectiva inscrição foi abandonado ao longo da estrada. Nada prova que o pensamento progrida sempre por unidades significantes completas. Essa particularidade leva o crítico genético a um trabalho de análise que não se reduz à significação dos sinais inscritos.

Essas possibilidades de organização constituem verdadeiros subterrâneos para a análise, necessitando eles de um trabalho psíquico, já que freqüentemente representam o inconsciente do próprio escritor.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREUD, S. Essais de psychanalyse. Paris: P.B.P., 1977.

MOESCHLER, Jacques. Dictionnaire encyclopédique de pragmatique. Paris: Seuil, 1994.

TISSERON, Serge. Psychanalyse de la bande dessinée. Paris: PUF, 1987.