FACES DO EROTISMO
NA APRENDIZAGEM DOS PRAZERES

Maria Aparecida Meyer Nascimento (UFRJ)

Ao ler um texto, deslocamos a nossa subjetividade e ao sabor dos prazeres da leitura, encontramos sempre um mistério como um “tecido de vozes” que se entrelaça. Através do mundo do texto se dá o desnudamento da representação. A cronologia, a temporalidade e a espacialidade são divididas, dando lugar ao “devir”. Existe um texto no mundo, como no livro.

O romance Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, de Clarice Lispector, tem como personagem principal Lóri, que pela primeira vez experimenta o amor e o prazer, mas receia perder a própria identidade no processo de aprendizagem. Através da aprendizagem, Lóri tenta conciliar situações extremas da sua existência: a independência da vida pessoal e o vínculo resultante do ato de amar.

Para Lóri, tudo está por acontecer. Tudo se constrói lentamente, desdobrando-se o “eu” numa trajetória construída a partir de escolhas e descobertas. Seu gosto de “ser” é encontrar na figura externa os ecos da figura interna. A narrativa desenrola-se num prazer individual que remete ao prazer do outro e concretiza o próprio mistério pela releitura de si mesmo.

[...] uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida. (LISPECTOR, 1982: 25).

No texto clariceano, o processo narrativo dissemina o germe da escritura, que tende a instaurar a estranheza ao conduzir a realidade social ou pessoal. Na busca de imanência constatam-se ritmos e ciclos, uma cartografia de estados e sensações, experimentados pela escritora.

A produção textual advém de uma relação de fruição, guiada pela articulação entre ações e registros, entre imagens e palavras. O texto-mundo traz em si uma enunciação intransitiva e ambígua, é algo que se faz, que se elabora, tal qual a trama do tecido barthesiano.

Texto quer dizer Tecido; mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado por um produto, por um véu todo acabado, por trás do qual se mantém, mais ou menos oculto, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a idéia gerativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo. (BARTHES, 1999: 82-83).

Clarice narra o mundo feminino, a evolução da personagem que deseja, no decorrer da história, alçar outros sentidos; na confluência do amor com o prazer, Lóri procura a sua verdadeira essência. A narrativa concretiza o próprio mistério de sua experiência: inicia-se com uma vírgula. Esta vírgula originária capta um momento, enuncia uma continuação e evidencia que o seu mundo existia antes do livro.

As experiências de Lóri são compostas de impulsos e revelações súbitas. Ela não conhece o prazer e desconfia que a morte é a apoteose da existência humana. A estrutura do seu “eu” revela-se ilusória e fragmentada. A personagem questiona essa estrutura do existir e depara-se com porções de si antes desconhecidas. Percebe-se como criatura que passa pelo mundo, que compreende o motivo da sua existência sem naufragar no autoconhecimento.

Mas seu descompasso com o mundo chegava a ser cômico de tão grande: não conseguira acertar o passo com as coisas ao seu redor. Já tentara se pôr a par do mundo e tornara-se apenas engraçado: uma das pernas sempre curta demais. [...] E de repente sorriu para si própria com um sorriso amargo, mas que não era mau porque também ele era de sua condição. (Lóri se cansava muito porque ela não parava de ser.) (LISPECTOR, 1982: 19-20).

O erotismo contém, na sua profundidade, a inquietação do conhecer e tende a se abrir para o mundo. Segundo Bataille, pelo erotismo, a atividade simplesmente sexual se transforma em “uma busca psicológica”, configurando-o como um aspecto da vida interior do ser humano, sempre vivenciado como transgressão. A experiência erótica atesta o caráter duplo do espírito, a sua heterogeneidade. Esta heterogeneidade afirma o interdito e a transgressão, a oposição entre o pensamento e o espírito, pois “o interdito intimida, mas a fascinação introduz a transgressão.” (BATAILLE, 1987: 64).

O erotismo feminino é uma sucessão de portas que se abrem para o amor mais íntimo, para a eroticidade. Ao ver no corpo libidinal os atributos da alma, a mulher sente sua capacidade sedutora e a possibilidade de experienciar a fusão do mundo e da vida, sob os desígnios de Eros.

O importante do corpo libidinal é como ele recobre o corpo sexual e imprime sentidos na anatomia e gestualidade corporal. O corpo adquire uma linguagem dupla e ambígua que expressa ou não o prazer, as intensidades. A sociedade e o contato com o outro exercem controles, mas, se bem observados os mesmos gestos podem falar de repressão ou significar um contradiscurso. (GÓES & VILLAÇA, 1998: 175).

Seduzido por uma transgressão erótica pictural, Gustav Klimt realça seus segredos dissimulados, através da variedade das formas. Representa a sexualidade como uma força libertadora por oposição ao determinismo da ciência. Os corpos, com formas aquáticas, evocam sugestões de ordem sexual, cujas alusões foram postas em paralelo com a simbologia de Freud.

O princípio de prazer, então, é uma tendência que opera a serviço de uma função, cuja missão é liberar inteiramente o aparelho mental de excitações, conservar a quantidade de excitação constante nele, ou mantê-la tão baixa quanto possível. [...] a função estaria assim relacionada com o esforço mais fundamental de toda a substância viva: o retorno à quiescência do mundo inorgânico. (FREUD, 1998: 79-80).

Em Serpentes de Água I (NÉRET, 2000: 46), a estilização do universo feminino exprime os arrebatamentos do pintor. A mulher, com lábios entreabertos, traduz uma expressão de êxtase, abandonando-se ao elemento aquático que lhe corresponde. A linguagem visual busca os seus símbolos no imaginário freudiano e manifesta o erotismo através dos ornamentos voluptuosos, construídos pela visão de mundo klimtiana.

Lóri, iniciante no aprendizado sobre a vida, possibilita-lhe a não excluir os fatos simplesmente porque ultrapassam sua compreensão. Aceita o desafio de Ulisses que aprendeu que não basta ter a verdade mas transformá-la em realidade. Ulisses e Lóri têm vidas comuns, embora gozadas pelo prazer e pela dor de um encontro, de um desvendar-se. Lóri, teme uma aproximação que pode desiludi-la na constatação de que um ser não transpassa o outro. “Sua alma incomensurável. Pois ela era o Mundo. E no entanto vivia o pouco. Isso constituía uma de suas fontes de humildade diante de qualquer possibilidade de agir.” (LISPECTOR, 1982: 43).

Serpente de Água I, 1904-07

Entre os sinais anunciadores do prazer do texto de Clarice está a construção de uma linguagem elaborada. O narrador acrescenta comentários, inserindo-se na história de um caso amoroso. O “eu” se dirige a uma terceira pessoa, proporciona o desnudamento da criação literária e possibilita uma maior penetração do leitor no texto.

Estar com quem se ama e pensar em outra coisa: é assim que tenho os meus melhores pensamentos, que invento melhor o que é necessário ao meu trabalho. O mesmo sucede com o texto, ele produz em mim o melhor prazer se consegue fazer-se ouvir indiretamente [...]. (BARTHES, 1999: 35).

O ápice do relacionamento de Ulisses e Lóri se dará quando ela estiver “pronta”. Lóri já teve outros amantes mas foram relacionamentos superficiais. Com Ulisses, ela almeja descobrir o prazer para além do meramente sexual.

Mas também sabia de uma coisa: quando estivesse mais pronta, passaria de si para os outros, o seu caminho era os outros. Quando pudesse sentir plenamente o outro estaria salvo e pensaria: eis o meu porto de chegada.

Mas antes precisava tocar em si própria, antes precisava tocar o mundo.(LISPECTOR, 1982: 59).

A história de Lóri é feita de retalhos. Ela se desarticula e se faz renascer segundo a medida de suas descobertas. Através de uma relação afetiva, ela se enxerga mulher e tenta abrir as águas do mundo pelo meio, desnudando o medo e deixando fruir a paixão. Com Lóri, Clarice desnuda as emoções, identifica o propósito da vida humana de buscar intensamente o prazer e evitar o sofrimento.

Seu desespero vinha de que não sabia sequer por onde e pelo que começar. Só sabia que já começara uma coisa nova e nunca poderia voltar à sua dimensão antiga. E sabia também que devia começar modestamente, para não se desencorajar. (LISPECTOR, 1982: 141).

Em Lóri, a descoberta do prazer está no limiar do sofrimento. Com o aprendizado vai conseguindo deixar-se inundar pela alegria aos poucos. A vida se apresenta sob tessitura de gestos, olhares e aproximações. Seus movimentos interiores, sempre em transição, descrevem um rito de passagem: da alienação à plenitude de ser, constatando a verdade da existência ainda que apossada pela dor.

[...] Lóri se sentia como se fosse um tigre perigoso com uma flecha cravada na carne, e que estivesse rondando devagar as pessoas medrosas para descobrir quem lhe tiraria a dor. E então um homem, Ulisses, tivesse sentido que um tigre ferido não é perigoso. E aproximando-se da fera, sem medo de tocá-la, tivesse arrancado com cuidado a flecha fincada. (LISPECTOR, 1982: 135).

A pintura é a invenção de uma imagem com o pretexto de explorar os limites do olhar. No imaginário do pintor, as aparências eternizam o instante refletido pela percepção. Klimt reveste quadros eróticos com motivos florais. Corpos e flores unem-se e a mão do pintor anima esse caleidoscópio mágico, tornando-se suave, no momento da ligação. A sua imaginação fixa-se na espera que precede a união física, porque ela retém instantes de intenso prazer.

Em A Virgem (NÉRET, 2000: 71), a jovem que se transforma em mulher, permite-nos assistir ao despertar da sensualidade. A alegoria piramidal é representada por partes de corpos que formam uma espécie de puzzle, dominados pelas curvas emaranhadas em estados variados. O tema subjacente é o de Eros e o do ciclo da vida.

Assim como a representação feminina de Klimt, Lóri desnuda-se. Sua paixão pelo conhecimento estimula a personagem a arrancar a máscara, para criar uma história a partir de si. Nela, o princípio de realidade projeta defesas contra a dor. Ao redescobrir o princípio de prazer, reconhece que o prazer que ignora a dor é um prazer-simulacro.

A Virgem, 1913

A metáfora do falcão alude a visão do homem sobre a mulher, presa a ser conquistada. Ulisses não quer apenas o corpo de Lóri mas, também a alma. Contudo, esta mulher, a quem ele resiste, torna-o encantado. O professor aprende que a verdade deve transformar-se em fato.

Existir é tão completamente fora do comum que se a consciência de existir demorasse mais de alguns segundos, nós enlouqueceríamos. A solução para esse absurdo que se chama “eu existo”, a solução é amar um outro ser que, este, nós compreendemos que exista. (LISPECTOR, 1982: 169).

Klimt trabalha a estética do erotismo sob o conceito de que o mundo tem uma aparência feminina. Os seus nus sedutores, envolvidos em ouro e prata, em motivos florais exóticos, formam a expressão erótica da sensualidade moderna. O erotismo da imagem é apresentado pela disposição renovada de corpos e cores que criam um mundo prometéico.

Em O Beijo (NÉRET, 2000: 63), o pintor reflete um momento de paixão entre duas pessoas. A mulher se oferece ao homem, fazendo aflorar a sexualidade no seu prelúdio erótico. As figuras enlaçadas representam o tema da união carnal e a onipresença de Eros na ordem do mundo.

O eu e o outro são sujeitos em mutação, dependendo das miradas do olhar. Em Ulisses e Lóri, as semelhanças diluem as diferenças e aquilo que os distingue um do outro torna-se a abertura para a constatação do prazer. A verdade surge como um suplemento desdobrado em novidades.

O Beijo, 1907-08

Em Lóri, as faces do erotismo se manifestam pela aprendizagem dos prazeres: o prazer da descoberta da eroticidade enclausurada, o prazer de ser, “apesar de”. Há uma certa obsessão do narrador em decifrar essa mulher. Torna-se, então, importante resumi-la num saber capaz de descobrir seus enigmas. A metamorfose interior transforma a sua existência, descortinando o véu que a isola do mundo. Lóri quis aprender a ser.

O aprendizado cria raízes na nossa memória, estabelece elos de ligação com experiências passadas e conhecimentos recentemente adquiridos. Aprender é muito mais do que um processo lógico; é um procedimento com o prazer da vida diante da multiplicidade dos valores humanos. Lóri alcança a possibilidade de ser e com ela o leitor descobre o sentido do verdadeiro aprendizado: ele é algo que sempre se renova, contínuo, desconhece o fim.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARTHES, Roland. O prazer do texto. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1999.

BATAILLE, Georges. O erotismo. 2ª ed. Trad. Antonio Carlos Viana. Porto Alegre: L&PM, 1987.

FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. Trad. Christiano Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro: Imago, 1998.

GÓES, Fred, VILLAÇA, Nizia. Em nome do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

LISPECTOR, Clarice. Um aprendizado ou O livro dos prazeres. 9ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

NÉRET, Gilles. Gustav Klimt. Trad. Jorge Valente. Köln: Taschen, 2000.