Linguagem e História
a manipulação do passado através da palavra
em 1984 de George Orwell

Anderson Soares Gomes

1984: A (des)construção da realidade
através da linguagem

Atualmente, muito se comenta do caráter premonitório de 1984, último romance de George Orwell. No mundo de hoje, onde a vigilância constante dos indivíduos pelo governo se dá como garantia da segurança nacional, onde a verdade adquiriu um caráter circunstancial e altamente mutável de acordo com o status quo e em que o cidadão se vê cada mais imerso em inúmeras construções da realidade forjadas por diferentes mídias, o nome de Orwell e de sua obra se tornaram lugar-comum.

No entanto, uma série de críticos considera 1984, escrito em 1949, uma previsão falha, já que muito do que foi escrito por Orwell não ocorreu e sua possibilidade de concretização é remota. Contudo, essa visão de 1984 como um advento do que virá, um mero livro de predições, é bastante reducionista, porque nega ao romance tanto o seu caráter de narrativa distópica, quanto a crítica nela embutida. Está na natureza dos romances distópicos uma “crítica às condições sociais e aos sistemas políticos” (BOOKER, 1994: 3) e o caráter anti-utópico, ou seja, alertar para os riscos e as falhas na construção de sociedades perfeitamente planejadas e seus terríveis efeitos sobre o indivíduo. Para a consolidação de uma crítica aos modelos utópicos, as distopias utilizam o recurso da “desfamiliarização”, ou como afirma Booker, ao focar suas críticas sociais sobre distantes cenários, as ficções distópicas fornecem perspectivas acuradas sobre problemáticas sociais que, de outra forma, poderiam ser vistas como naturais e inevitáveis. (BOOKER, 1994: 15.)

A desfamiliarização é também uma estratégia narrativa usada por Orwell em 1984, só que o autor ultrapassa o conceito em si. Ele se apropria deste recurso e “desfamiliariza” a narrativa de forma, a princípio, paradoxal: o leitor é distanciado do universo descrito pelo narrador, facilitando a análise e a forte crítica social presente na obra. No entanto, ao mesmo tempo, o leitor tem como se localizar de forma espacial e temporal: Londres, provavelmente no ano de 1984, o que amplifica o caráter aterrador da obra e mapeia a sua leitura.

A Londres de 1984 é uma cidade devastada por guerras, imersa num universo de decadência. O mundo se encontra geograficamente dividido em três grandes áreas: Eurásia, Lestásia e Oceania, sendo esta última a área em que se localiza a atual capital da Inglaterra. A Oceania é controlada pelo Partido, o governo totalitário que segue as diretrizes da Ingsoc (no original, “socialismo inglês”), uma teoria política e social que se concentra no controle total sobre o indivíduo e a aniquilação da construção de pensamentos próprios por parte da maioria da população. A imagem do partido se epitomiza na imagem do Grande Irmão - Big Brother - cujo rosto é onipresente em pôsteres na Oceania, sobre o slogan: “O Grande Irmão está observando você.”

É nesse tempo e espaço onde se encontra Winston Smith, o personagem em que a narrativa se concentra. Funcionário do Partido, Winston despreza tudo aquilo preconizado pela Ingsoc com uma rebeldia muda, inverbalizável, já que os cidadãos são sujeitos a duras penas, ou até mesmo ao fuzilamento, se exibirem o menor traço de expressão facial que constitua algo que o Partido considere como ameaça. O mais importante ato de inconformidade de Winston para com a Ingsoc é a escritura de um diário. Desta forma, ele consegue manter a sanidade e ao mesmo tempo questionar várias das questões que permeiam a sociedade onde se insere. O ato de escrever um diário por si só já constitui a construção de um indivíduo historicamente, já que ele reporta a realidade que o cerca de acordo com o momento histórico em que vive. No entanto, como veremos no decorrer deste trabalho, no mundo de 1984 a “história foi impiedosamente erradicada” (SISK, 1997) e relatar fatos que possam ter qualquer caráter temporal é considerado uma atividade perigosa.

Em seu diário, Winston questiona os valores que o cercam, assim como sua própria atitude se comparada à de outros membros do Partido. A aceitação dos preceitos e fatos apresentados pela Ingsoc todos os dias através da teletela (uma espécie de televisão de mão dupla, onde se observa e se é observado) acontece de forma ampla, com os cidadãos acreditando cegamente em tudo que lhes é apresentado. As notícias veiculadas pelo Partido, todas inventadas, têm um caráter estritamente controlador, cujo objetivo é manipular a informação e aquilo em que a população acredita e pode pensar. É neste ponto em que se situa um tema central em 1984: a (des)construção da realidade através da ficção, e, por conseguinte, da linguagem.

É importante mencionar, portanto, a teoria dos lingüistas americanos Benjamin Whorf e Edward Sapir, cujo trabalho serviu e vem servindo de influência para diversos textos de ficção, distópicos ou não. De acordo com essa teoria, a linguagem que usamos influencia fortemente a maneira como percebemos a realidade, além disso o chamado mundo real não passa de uma construção lingüística. (BOOKER, 1994: 81).

Muito do que é narrado na obra de Orwell serve para exemplificar tal teoria, mas nenhum outro ponto é mais relevante do que a Novilíngua (“Newspeak”). Trata-se de uma língua criada pelo Partido cujo objetivo principal é anular a capacidade de raciocínio próprio e discernimento dos indivíduos. Ou seja, o controle social chega ao nível da fala e da mente, privando a sociedade de qualquer coisa que não seja a ortodoxia da Ingsoc. Ao difundir essa língua, o Partido é capaz de manipular a realidade de forma ainda mais completa, porque torna incomunicável o que considera indesejável. No entanto, a Novilíngua ultrapassa o poder que exerce sobre os indivíduos - ela também é capaz de forjar fatos históricos.

Novilíngua: a manipulação como novidade

O próprio conceito de criação de uma linguagem se constitui como um paradoxo, pois dessa forma Orwell parece negar o caráter vivo da mesma, ou seja, que a cada momento diferentes pessoas têm diferentes pensamentos, emoções e opiniões e estão constantemente utilizando novas palavras para expressá-los. Da mesma forma, mesmo que se considere a invenção de uma nova linguagem como um processo possível, é surpreendente que em 1984 isso aconteça não através da inserção ou total construção de vocábulos ou regras gramaticais, mas sim através de sua extinção.

É interessante notar, no entanto, que a Novilíngua é um dos poucos aspectos do livro não representados em sua totalidade. Muito se fala sobre a Novilíngua, mas pouco se diz na Novilíngua. De acordo com o romance, esta nova língua inventada só será implementada em sua totalidade no ano 2050. Assim sendo, a língua com a qual os personagens se comunicam ainda é o ‘Oldspeak’, ou seja, o inglês como ele é hoje. No entanto, existe a inclusão nos diálogos - por parte de diversos personagens - de palavras e termos da Novilíngua em várias situações. Winston, por exemplo, recebe suas atividades diárias no Departamento de Registros, onde trabalha, com termos em Novilíngua. Esses verbetes se destacam dos demais por apresentarem um número exagerado de prefixos, sendo esse apenas um dos aspectos que servem para distinguir essa “língua nova”.

Muitos críticos vêem a pouca presença da Novilíngua, um aspecto crucial do texto, como uma espécie de incompetência lingüística por parte do autor. David W. Sisk afirma que “Orwell parece ter estado ciente de suas limitações como lingüista, já que a Novilíngua é o único aspecto das técnicas repressivas do Partido que não se apresenta desenvolvido de forma satisfatória na história.” (SISK, 1997: 50). W. F. Bolton acrescenta:

Orwell não sabia mais sobre linguagem (...) que o cidadão britânico médio de seu tempo e classe social poderia ter sabido, e talvez até menos (...) Ele não propagava seu conhecimento lingüístico, ainda assim ele parece ter estado bem confiante em suas opiniões lingüísticas. (Idem, p. 52).

É no mínimo contraditório que ao mesmo tempo em que a Novilíngua pouco apareça na narrativa e, por conseguinte Orwell seja considerado um lingüista no máximo mediano, o mesmo Orwell dedica todo um apêndice ao tema. “Os Princípios da Novilíngua” é como um livro dentro do livro, ou seja, um outro narrador, aparentemente em um tempo posterior ao da escrita do romance, analisa a teoria e as regras da Novilíngua. É este narrador que afirma que “o propósito da Novilíngua não era apenas fornecer um modo de expressão para a visão de mundo e hábitos mentais próprios aos devotados à Ingsoc, mas fazer todas as formas de pensamento impossíveis”. (ORWELL, 1950: 4).

As palavras da Novilíngua se dividem em três categorias distintas: o vocabulário dos tipos A, B e C. O vocabulário do tipo A constitui o grupo de palavras usadas diariamente, mas em um número reduzido se comparado ao usado atualmente. As palavras têm um sentido marcado que não pode ser alterado, o que exclui qualquer capacidade de construção de diferentes sentidos através do mesmo vocábulo. É interessante perceber também como funciona a gramática da Novilíngua, porque como nos conta o narrador: “Qualquer palavra na língua (...) poderia ser usada como verbo, substantivo, adjetivo ou advérbio (…) essa regra envolvendo a destruição de várias formas antigas.” (ORWELL, 1950: 181).

Várias e severas modificações na língua foram feitas para o sucesso da Novilíngua, mas talvez a mais significativa tenha sido a possibilidade de vários afixos serem adicionados a uma mesma palavra, seja para indicar o seu oposto, aumentar a intensidade ou a categoria gramatical. Um bom exemplo é a palavra duplibom, que aumenta a intensidade daquilo que é bom ao adicionar o prefixo dupli- e assim descarta termos com “excelente” ou “ótimo”.

As palavras que consistem o vocabulário do tipo B são aquelas que possuem qualquer objetivo político que o Partido intenciona que a população apreenda. Geralmente são palavras compostas que personificam os principais dogmas da Ingsoc. Um exemplo claro é a palavra duplipensar, onde o verbo pensar adquire característica dúbia, já que é possível armazenar duas informações conflitantes no pensamento e aceitar as duas como verdadeiras.

O vocabulário do tipo C é formado por aquelas palavras que possuem significados técnicos ou científicos, sendo usado apenas por aqueles que conheciam seu sentido e que eram obrigados a lidar com elas.

No entanto, se na Oceania é praticamente impossível a enunciação de ironias e conteúdos ambíguos, a narrativa de 1984 está repleta deles. Um dos melhores exemplos é a nomeação dos ministérios que regem a política do Partido. São eles o Ministério da Fartura, o Ministério da Paz, o Ministério da Verdade e o Ministério do Amor. Num brilhante exercício antitético, Orwell faz de cada ministério responsável pelo oposto que o seu nome poderia vir a representar. O Ministério da Fartura coordena os produtos comercializados na Oceania e sua escassez, fazendo a população ainda mais dependente de um Estado que provêm aos seus cidadãos menos do que eles necessitam. O Ministério da Paz coordena as guerras constantes que a Oceania trava contra a Eurásia e a Lestásia, fazendo com que os conflitos durem infinitamente e com que a população acredite no inimigo como ameaça em potencial em um momento e como aliado em outro. O Ministério da Verdade coordena todos os aspectos de comunicação e registros da Oceania, só que altamente manipulados para corresponder às necessidades do Partido. E finalmente, o Ministério do Amor é responsável pela repressão política e psicológica exercida pelos princípios da Ingsoc, em suas dependências torturas e execuções sumárias são realizadas.

De todos os processos repressivos usados pelo Partido, talvez seja a Novilíngua o mais abrangente. Ao influenciar o aspecto cognitivo da população, o Partido pretende restringir o que um indivíduo é capaz de enunciar e, por conseguinte, não conseguir construir um raciocínio lógico sobre aquilo que não consegue comunicar. Assim sendo, o projeto da Ingsoc que tem a ortodoxia como regra fundamental, afeta não apenas a linguagem como instrumento de comunicação, mas a própria realidade que é comunicada no processo da fala e escrita.

A re-escrita da História

Nos dias de hoje, os teóricos do pós-estruturalismo e pós-modernismo se concentram cada vez mais nos aspectos do mundo considerado “real” que na verdade constituam elementos ficcionais que permeiam aquilo que apreendemos como factual. A realidade é cada vez mais vista como um constructo, um conceito meramente manipulável cuja definição depende basicamente de quem é o enunciador da linguagem de que consiste este mundo real. Por outro lado, a ficção adquire cada vez menos o caráter de “invenção”; seu campo de atuação ultrapassa o limite da literatura e outras formas de representação culturais para se tornar parte daquilo que antes era apenas uma mimese: o mundo dos fatos, da verdade propriamente dita.

Diante dessa nova ordem dos fatos, algumas questões são pertinentes: qual seria, então, o papel da História? Pode a linguagem manipular a História e, por conseguinte, o passado? Parece que essas questões tão atuais já preocupavam George Orwell mesmo antes da escrita de 1984. A força narrativa do romance provém principalmente do caráter duplo em que o conceito histórico é abordado. Por um lado, o próprio título do romance já evidencia seu propósito. Ao dar o título de seu último livro 1984, Orwell parece ter considerado a importância do romance como um documento histórico, uma espécie de diário sobre um futuro aterrador, assim como o protagonista Winston também escreve o seu diário. Só que enquanto Orwell tem claro o seu público leitor, Winston se questiona sobre o objetivo daquilo que escreve:

Para quem, de repente ocorreu a ele se questionar, estava escrevendo seu diário? Para o futuro, para os ainda não nascidos (…) Como se pode comunicar com o futuro? Era de uma natureza impossível. Ou o futuro se assemelharia ao presente, o que nesse caso não daria importância a ele; ou seria diferente, o que tornaria a sua situação incompreensível. (ORWELL, 1950: 4).

Por outro lado, tudo que se pode considerar histórico em 1984 é sujeito à intensa manipulação por parte do Partido. O passado se torna acessível apenas através da mediação das teorias da Ingsoc, o que torna os cidadãos constantemente alienados daquilo que já aconteceu e incapazes de concatenar idéias que possam relacionar eventos do presente com as causas históricas do passado. Assim sendo, o conhecimento histórico revela-se não só dependente da memória ou de textos, mas também de quem se constitui como o poder vigente. O romance, portanto, ao mesmo tempo em que se propõe histórico ao servir de alerta para um futuro distópico, desconstrói o próprio sentido daquilo que conhecemos como história.

Esse caráter duplo que o romance possui ao retratar a história - construção e desconstrução - acha um símbolo na figura de Winston. O personagem trabalha no Ministério da Verdade, no Departamento de Registros. Em mais uma ironia de linguagem, o Departamento de Registros mostra-se o oposto do que poderia se imaginar. A função básica de Winston é alterar o registro de fatos ocorridos no passado que se encontram em diversos meios de comunicação.

Essa constante manipulação dos registros históricos tem como objetivo tornar verdade qualquer decisão do Partido tomada posteriormente à escrita dos documentos. Dessa forma, o Partido jamais se contradiz, já que as suas previsões estariam sempre corretas pelo fato de o que acontecer ter sempre sido previsto pelo “Big Brother”.

O sucesso desta (re)escrita da história por parte do Partido acontece pela capacidade - ou dever - dos indivíduos em considerar verdade duas idéias concorrentes. Qualquer fato modificado é tido como verdade, mesmo se sabendo que se trata de uma falsificação. Ou seja: “o passado era apagado, o apagamento era esquecido, a mentira se tornava verdade”. (Idem. p. 43).

É interessante perceber, portanto, que o poder do Partido sobre seus indivíduos não se dá apenas pela coerção e pela dor. Seria muito fácil para a população ser contra os princípios da Ingsoc e ainda assim agir como se os aceitassem. Isso facilitaria uma possível revolução como a sonhada por Winston e a derrubada do Partido. Como afirma o narrador: “nada era propriamente seu senão os poucos centímetros cúbicos dentro de seu crânio”. (Idem. p. 16).

Mas os poderes da Ingsoc parecem ultrapassar os limites da mente, o que Winston pode ter sabido, mas não ter aquilatado sua totalidade. Na parte final do romance, ele não tem apenas que enunciar sua aceitação das normas do Partido, das regras da Ingsoc e seu amor pelo Big Brother. Ele tem de acreditar naquilo que diz, sob pena de torturas que remetem aos tempos medievais. Como afirma James Phelan:

(...) até aqueles poucos centímetros cúbicos não são próprios. Na verdade, o poder do Partido se estende muito além do controle do que uma pessoa faz, não apenas o que uma pessoa pensa, mas também o que esta pessoa sente. (PHELAN, 1998: 105).

Assim sendo, fica claro como Orwell em 1984 trabalha muito bem o caráter duplo da linguagem. Nas mãos do Partido, a linguagem vira um instrumento de manipulação para as massas, onde a própria noção de fato histórico (o que aconteceu) e a escrita sobre esse fato (o que foi dito sobre o que aconteceu) se confunde. Ao tratar da manipulação de textos históricos com o objetivo de mudar o entendimento da sociedade sobre o passado, Orwell parece antecipar muitas das discussões atuais sobre o caráter ficcional da História e como a mesma é insustentável como ciência exclusivamente objetiva. Para citar um exemplo, em The Poetics of Postmodernism, Linda Hutcheon comenta a problematização da História. A autora cita Hayden White ao afirmar que “o que deve ser indagado por historiadores (…) não é o que os fatos são, mas como os fatos são descritos com o objetivo de apresentar um modo específico de explicá-los ao invés de algum outro modo”. (HUTCHEON, 1988: 115). A representação do fato histórico torna-se o fato histórico em si, por isso a História pode ser re-escrita, já que a mesma já se encontra presente em forma de texto. Como afirma Hutcheon: “O passado realmente existiu, mas nós podemos saber sobre aquele passado hoje apenas através de textos e é aí que se encontra a ligação como o literário”. (Idem. p. 116).

Por outro lado, a linguagem também apresenta um lado liberador. Ao se encontrar oprimido por um mundo coercitivo e controlador, é à linguagem da escrita do diário que Winston recorre. É através do texto que o protagonista de 1984 se sente capaz de se libertar pelo menos por alguns momentos das pressões que o envolvem e exprimir-se com a complexidade que lhe é negada.

Em 1984, linguagem, passado e ficção parecem apresentar-se como irremediavelmente ligados. A História para o Partido ultrapassa a noção de ‘algo que ocorreu’; ela se torna na verdade um ‘relato sobre aquilo que ocorreu’. Este relato, no entanto, é uma narrativa, pois não é possível que tenha existido sem alguém para contá-la. Ao evidenciar o caráter subjetivo da história e igualar o conhecimento histórico a uma narrativa, pode-se perceber que a narrativização da história como tal torna-se possível, pois esta depende de um narrador/historiador. É este narrador que vai se apropriar dos acontecimentos do passado e apresentá-los às gerações do presente e futuro de acordo com as suas escolhas. Assim, a história torna-se inevitavelmente ligada à literatura - com direito a personagens, clímax e finais felizes (ou não).

CONCLUSÃO

1984 é mais que uma previsão sombria sobre o futuro. Ao escrever seu último romance, Orwell tinha em mente os fatores sociais de sua época e o risco de sua exacerbação caso a sociedade adotasse uma postura apática. O alerta do autor tocou no âmago da questão, permanecendo no inconsciente literário de toda uma geração do século XX, estendendo-se além do ano de 1984, para alcançar o século XXI onde parece que medidas totalitárias realizadas por governos tidos como democráticos ensaiam uma espécie de duplipensar.

Talvez ainda mais que o tempo futuro, George Orwell procurou em 1984 mostrar a importância do passado na construção da realidade que nos cerca. O passado, no entanto, se mostra no texto do romance como intimamente ligado ao uso da linguagem. Através de discursos propangadísticos nas teletelas, o Partido molda a história no momento em que ela acontece de acordo com seus interesses de manipulação das massas. Ao alterar registros históricos, é possível mudar mais que letras no papel: como na teoria de Sapir e Whorf, a realidade em si é alterada e a História como ciência se resume a uma narrativa; adicionado ao conceito de duplipensar exercido pela população, toda a mentira torna-se verdade.

A linguagem, no entanto, também é um dos poucos recursos através do qual Winston pode expressar sua raiva contra os preceitos da Ingsoc. O próprio Orwell leva em consideração a tamanha contribuição da linguagem para a força e credibilidade de sua obra ao dedicar todo um apêndice para os aspectos da língua. Um fato interessante que merece ser mencionado é que a própria linguagem usada por Orwell em seu apêndice - “Os Princípios da Novilíngua” - parece ter se tornado sujeito à análise e constituinte relevante da própria significação de todo o romance.

Um aspecto de extrema importância, contudo, parece residir nas páginas da última parte de 1984, apontando para uma mudança de toda a percepção da obra como romance distópico. Como afirma W. F. Bolton:

O famoso apêndice foi escrito no tempo passado (...) Os verbos estão no passado (...) Embora o romance seja futurístico, seus eventos são vistos de um futuro ainda mais distante onde a Ingsoc e a Novilíngua deram lugar a uma sociedade e uma linguagem mais como a nossa. A Novilíngua, como se parece, não teve sucesso em aniquilar o “Oldspeak” [inglês como falado hoje em dia] e seu vocabulário de moralidade política. (SISK, 1997: 80).

Se analisarmos “Os Princípios da Novilíngua” por esse ângulo, Orwell acabou por realizar uma distopia no passado. Seu alerta sobre um negro 1984 é seguido por um texto analítico de um futuro pós-Ingsoc, onde tudo que foi narrado anteriormente parece não existir mais. Dessa forma, o contexto da narrativa onde se encontra Winston também ganha status de histórico, já que esta também já aconteceu e encontra-se no momento da escrita do apêndice provavelmente nos livros de história.

Seria então a Novilíngua uma ameaça ou apenas uma brincadeira de Orwell sobre a necessidade das estruturas que têm o poder de comandar todos os aspectos da vivência humana? Parece que o futuro de Orwell era mais um passado distorcido do que uma visão apocalíptica. E a Novilíngua se apresenta como instrumento de dominação, mas ao mesmo como desejo inalcançável, porque a linguagem no final parece sempre achar o seu caminho.

BIBLIOGRAPHY

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BOOKER, M. Keith. The Dystopian Impulse in Modern Literature. Westport: Greenwood Press, 1994.

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WHITE, Hayden. Metahistory. London: The Johns Hopkins UP, 1975.