UM ENFOQUE DIACRÔNICO
DOS VERBOS DE INVENTÁRIO RESTRITO

Raymundo José da Silva (UEMS)

INTRODUÇÃO

Este trabalho pretende enfocar os verbos de inventário restrito, que aparecem associados às formas nominais (Infinitivo, Gerúndio e Particípio), construções denominadas pela Gramática como conjugações perifrásticas ou tempos compostos ou ainda como locuções verbais. Para a realização deste trabalho, usaram-se, como suporte teórico, basicamente duas obras de Rosa Virgínia Mattos e Silva: O Português Arcaico: Morfologia e Sintaxe, e Estruturas Trecentistas. O corpus é constituído de cantigas de escárnio e maldizer (LAPA, 1970), contendo verbos que compõem as formações perifrásticas. Pode-se verificar que há construções que já se apresentavam semelhantes às do português moderno (podesse ter, non ousavan fazer), em que pese a ligeira diferença de grafia; outras, de feição e sintaxe arcaicas (pois-lo ouve soterrado), caíram em desuso. Entretanto, dentre as várias sutilezas contidas nesses tempos compostos, atrai especialmente a atenção do estudioso a forma participial, aqui abordada, que nos faz oscilar entre o verbo e o adjetivo (tiinha guardados). Trata-se, pois, de um aspecto instigante da língua portuguesa, que, embora tenha sido tema de muitas pesquisas, continua merecendo atenção em virtude das dificuldades e questionamentos que suscita.

A maioria dos gramáticos chama de auxiliares a alguns verbos que compõem a perífrase ou locução verbal, enquanto Mattos e Silva (1984: 437) os denomina verbos de inventário restrito, por trazerem as marcas gramaticais de modo, tempo, número e pessoa, geralmente antecedendo o verbo principal. Este, de inventário aberto na língua, não carrega as referidas marcas, mas expressa a verdadeira ação verbal da perífrase e aparece numa das formas nominais: infinitivo, gerúndio e particípio.

Neste estudo, percebemos que, ao longo do tempo, o uso e o entendimento claro de algumas expressões como locuções verbais na Língua Portuguesa nunca foi fácil, notadamente quando a locução envolve a flexão do particípio. Eis o que nos diz Mattos e Silva (1984: 438):

Autores que se detiveram nesse problema, como, por exemplo, Said Ali (1957: 126) e Mattoso Câmara Jr. (1956: 82), admitem que, enquanto se documenta a flexão do particípio passado de acordo com o complemento direto desse particípio, essa seqüência não é de se considerar como tempo composto ou locução verbal, por não ter ocorrido ainda a fusão semântica e sintática que está implícita na construção do tempo composto, constituído de ter ou haver nas suas formas flexionadas mais o particípio passado invariável, isto é, não está em causa ainda a relação auxiliante/auxiliado necessária a essa construção. É Mattoso Câmara que afirma: “enquanto a forma verbal adjectiva se mantém articulada com o objecto da acção, não há a rigor uma construção verbal composta, mas uma construção frasal que põe em evidência um estado de posse” (cf. 1956: 82 e 1975: 166).

Para ilustrar a referida citação, seguem estes exemplos com os verbos ter e haver que constam em Estruturas Trecentistas:

Pedra que tiinha guardada.

Aquel São Beento que aqueles bẽes tiinha guardados.

Todolos bes que mh’a feitos.

Avia perdudo todo aquelo.

J. Mattoso Câmara Jr. (1975: 166), a esse respeito, assim argumenta:

As duas formas verbais (auxiliar + forma nominal) não se distinguem na análise da oração, para se associar cada qual a outro elemento. Não há, por exemplo, conjugação perifrástica em português, quando ao verbo ter, em qualquer de suas formas flexionais, se segue um particípio perfeito em concordância nominal com um substantivo a que se associa como constituinte imediato: Tenho guardados os papéis (guardados é a maneira por que tenho os papéis comigo).

Verbos ser, estar, andar, ir e jazer.

Observamos que, quando se lê um texto arcaico, torna-se necessário atentar para o significado etimológico dos verbos ser, estar, andar, ir e jazer para uma melhor compreensão das seqüências verbais.

De acordo com Mattos e Silva (1994: 65), nos textos do período arcaico esses verbos seguidos de gerúndio podem aparecer semanticamente plenos, apresentando a seguinte significação etimológica: ser (lat. sedere) ‘estar sentado’; estar (lat. stare) ‘estar de pé’; andar (lat. ambitare) ‘deslocar-se com os pés’; ir (lat. ire) ‘deslocar-se em direção a’; jazer (lat. jacere) ‘estar deitado’. Observem-se, portanto, os exemplos a seguir extraídos da obra O Português Arcaico - Morfologia e Sintaxe da referida autora, com leitura nossa entre colchetes:

a) Achou monges que siiam lendo [estavam sentados e liam] (p. 65)

b) Estando a hũa fẽẽstra rogando Nosso Senhor [estando de pé rogavam] (p.65)

c) O sacerdote andava podando sa vinha [deslocava-se com os pés e podava](p.65)

d) Ele jazia tremendo e ferindo a terra [estava deitado e tremia...] (p. 65)

Exemplos como esses, em que pesem as seqüências verbais com aparência de perífrases, em virtude da obediência à etimologia de siiam, estando, andava e jazia, levam-nos a crer que em cada período ocorrem duas orações com os dois verbos expressando ações simultâneas. Constatamos, também, que muitas vezes tem sido difícil para os gramáticos estabelecer com nitidez a diferença entre quais verbos sejam auxiliares ou plenos.

Para reafirmar essa impressão, valemo-nos do que nos dizem, em nota de rodapé, Cunha e Cintra (2001: 395): “Como não há uniformidade de critério lingüístico para a determinação dos limites da auxiliaridade, costuma variar de gramática para gramática o elenco de verbos auxiliares”. O fato é que, examinando-se o tema, chamam especialmente a atenção do estudioso frases em que aparece, por exemplo, o verbo ser seguido de um particípio flexionado em concordância com o sujeito. Deste modo Câmara Jr. (1975: 167) elucida a questão:

O que caracteriza, com efeito, a construção passiva depende, exclusivamente, do nome predicado, que aqui é o particípio perfeito de um verbo transitivo e não um nome adjetivo puro. Do ponto de vista oracional, tem-se o mesmo tipo de frase em: a) os soldados foram punidos; b) os soldados foram covardes. A diferença significativa está entre o adjetivo covardes, que expressa uma qualidade nominal, e o particípio punidos, que tem força verbal e assinala uma atividade realizada.

Partindo do que foi exposto até este momento, far-se-á a análise dos dados do corpus, que se constitui da cantiga nº 15, PERO DA PONT’Á FEITO GRAN PECADO, extraída de Cantigas de Escarnho e de Mal Dizer dos cancioneiros medievais galego-portugueses, de Rodrigues LAPA (1970):

CANTIGA 15: PERO DA PONT’Á FEITO GRAN PECADO - (CBN. 485; CV. 68)

Afonso (Rei D.) de Castela e de Leon

Pero da Pont’ á feito gran pecado

de seus cantares, que el foi furtar

a Coton, que, quanto el lazerado

ouve gran tempo, el xos quer lograr,
5 e doutros muitos que non sei contar,

por que oj’ anda vistido e onrado.

E poren foi Coton mal dia nado,

pois Pero da Ponte erda seu trobar;

e muito mais lhi valera que trobado
10 nunca ouvess’ el, assi Deus m’ampar,

pois que se de quant’el foi lazerar

serve Don Pedro e non lhi dá en grado.

E con dereito seer enforcado

deve Don Pedro, por que foi filhar
15 a Coton, pois-lo ouve soterrado,

seus cantares, e non quis en [de ] dar

ũu soldo pera sa alma quitar

sequer do que lhi avia emprestado.

E porend’ é gran traedor provado,
20 de que se já nunca pode salvar,

come quen a seu amigo jurado,

bevendo con ele, o foi matar:

todo polos cantares del levar,

con os quaes oj’ anda arrufado.


25 E pois non á quen no poren
retar

Queira, seerá ôi-mais por min retado.

A tradução da cantiga de escárnio e maldizer em linguagem atual faz-se necessária, a fim de que se possa melhor compreender o texto arcaico, sobretudo quanto às nuances que podem ocorrer nos verbos das perífrases verbais. Abaixo temos a tradução:

1a estrofe

Pero da Ponte cometeu grande pecado

por seus cantares que ele foi furtar

de Coton (Afonso de Coton), que, apesar de muito que tenha

sofrido (lazerado ouve) por tanto tempo, deles quer apropriar-se

e de outros muitos que não sei contar,

pelo que hoje anda vestido e honrado.

2a estrofe

Por isso, Coton nasceu em dia infeliz,

visto que Pero da Ponte herdara suas trovas,

e muito mais lhe valera que nunca tivesse ele

trovado, que Deus me ajude,

pois que Dom Pero se serve dos cantares de Coton

feitos com tanto trabalho e miséria e não se mostra grato para com ele.

3a estrofe

E de direito Dom Pedro deve ser enforcado

porque foi furtar a Coton

seus cantares, porque o enterrou,

e não quis disso dar-lhe um tostão

para desobrigar sua alma

ao menos do que lhe havia emprestado.

4a estrofe

E por isso é grande traidor comprovado,

de que nunca se pode salvar

porque foi matar ao seu amigo jurado,

bebendo com ele,

tudo para levar-lhe os cantares,

com o quais hoje anda vaidoso

Fiinda

E já que não há quem por isso o queira acusar,

será de agora em diante por mim acusado.

Estudo das seqüências verbais encontradas no corpus,
com aver, ser, andar e ir.

1. Seqüências com verbos de sentido pleno.

Nos versos seguintes, parece claro que os verbos que acompanham as formas nominais mantêm seu significado lexical, isto é, ocorrem duas ações simultâneas e independentes:

a) Pero da Pont’ á feito gran pecado (v.1)

Seqüência verbal formada de á, verbo aver, em lugar de ter, o que era muito freqüente em textos do português arcaico. Tem feito, isto é, possui já feito, dentro de si, um ato consumado com sentido de posse e que se repete.

b) de seus cantares, que el foi furtar (v.2)

Verbo ir com sentido de movimento (foi ouvir), deslocamento de Pero até onde estivesse Coton para assimilar suas trovas e reproduzi-las.

c) por que oj’ anda vistido e onrado (v.6)

Pelo que (motivo por que) anda, desloca-se, passeia, exibe-se, vestido e honrado. Aqui também não parece haver perífrase. Vistido e onrado seria o modo como anda.

d) porque foi filhar (tomar, furtar, filar) (v.14)

Seqüência com o verbo ir no sentido etimológico de deslocamento, junto ao infinitivo filhar, (do latim piliare,por pilare), o que nos leva a considerar a inexistência de perífrase verbal.

e) com os quaes oj’ anda arrufado

Neste caso, consideramos o verbo andar no seu sentido pleno, deslocamento sem diretriz, seguido de adjetivo, ou ainda do modo de andar? Em todo o caso parece não ocorrer uma perífrase.

2. Seqüências com verbos de inventário restrito (locuções verbais)

Dentre as seqüências verbais do corpus, relacionamos abaixo aquelas conhecidas como locuções verbais, conjugações perifrásticas ou tempos compostos, formadas com verbos comumente classificados como auxiliares, aos quais Mattos e Silva (1989: 437) denomina verbos de inventário restrito. Esses verbos, junto ao principal, expressam as marcas de tempo, modo, número e pessoa.

a) E poren foi Coton mal dia nado (nascido) (v.7)

Verbo ser usado como auxiliar mais o intransitivo nascer. Segundo Mattos e Silva (1994: 63), tais combinações são conhecidas como depoentes, definidas, na gramática do latim, como verbos que apresentam forma passiva, mas com significação ativa. A seguir, um exemplo de forma depoente extraído da página citada: Era fallecido el rei Bolife. (Falecera)

b) que trobado / nunca ouvess’el (v. 9/10)

Consideramos existir aqui uma perífrase verbal formada de auxiliar mais particípio: que nunca tivesse ele trovado.

c) E con dereito seer enforcado / deve (v.13)

Nesta ocorrência, parece evidente a locução verbal na voz passiva, com o verbo auxiliar seer mais particípio.

d) do que lhi havia emprestado (v.18)

Perífrase formada de verbo auxiliar mais particípio, de norma empregada no português atual.

e) seerá ôi-mais por mim retado (v.26)

Seerá retado: será acusado, uma locução verbal com auxiliar mais particípio, formando voz passiva.

3-Seqüências verbais de difícil interpretação.

a) quanto el lazerado / ouve gran tempo (v.3-4)

É esta uma seqüência verbal com sentido ativo (haver+lazerar): tivesse sofrido, embora tivesse sofrido = por muito tempo veio trabalhando.

b) pois que se quant’el foi lazerar (v11)

Verbo ir mais infinitivo. De acordo com Mattos e Silva (1994: 67), ir + inf “já é usado no período arcaico para a expressão de uma intenção a realizar-se”. O verbo ir, aqui, oscila entre o sentido de deslocamento e a função de auxiliar, formando locução verbal.

c) pois-lo ouve soterrado (v.15)

Verbo haver usado em lugar de ter (teve soterrado) com idéia de posse junto a particípio. A sintaxe do exemplo pode gerar dúvida sobre a qual dos verbos pertence o complemento -lo.

d) E porend’ é gran traedor provado (v.19)

No sentido de está comprovado. O verbo ser oscila entre a função de auxiliar, enquanto provado hesita entre a categoria de verbo provar e a de adjetivo qualificando o nome traedor. Tem-se, pois, uma perífrase duvidosa.

e) bevendo con ele, o foi matar

Observem-se, nessa seqüência, duas possibilidades: verbo ir, pleno, seguido de infinitivo significando deslocamento, ou apenas uma intenção? E mais: matar significa eliminar fisicamente o ex-amigo, ou matar a sua memória com a ingratidão e o esquecimento?

Como resultado dessas considerações e questionamentos, segue a distribuição dos verbos aver, ser, ir e andar, em sentido pleno, restrito e ambíguo:

  1) Sentido pleno 2) Sentido restrito 3)Sentido ambíguo
AVER 01 02 02
SER - 03 01
IR 03 - 01
ANDAR 02 - -
Total 06 06 04

Nota-se que, principalmente os verbos aver, ir e andar, em várias situações, de acordo com a semântica e a sintaxe arcaicas, exercem função de verbos plenos (foi filhar, á feito) diferentemente do que ocorre na linguagem moderna, uma vez que esses verbos, juntos a uma forma nominal, costumam funcionar como auxiliares.

Passemos a algumas considerações. Primeiramente, nessa cantiga nota-se ainda o emprego sistemático do verbo aver nos versos 1, 4, 10, 15 e 18, (o que era freqüente no português arcaico) em lugar de ter, mais usado no português atual, conquanto, segundo Mattos e Silva, esses dois verbos tenham sido empregados indistintamente em linguagem arcaica.

Apesar de algumas formas verbais, como á feito (tem feito) e ouve soterrado (tem soterrado), estarem em completo desuso, outras, como havia emprestado, fazem parte da linguagem atual, revezando-se com o verbo ter.

Os verbos ir e andar, freqüentemente, oferecem uma significação ambígua, indefiníveis, se auxiliares com esvaziamento de sentido, ou plenos, com o sentido de deslocamento: foi matar, anda arrufado.

Constatamos, por conseguinte, que a leitura do texto do português arcaico, além da necessidade da consulta das teorias mais abalizadas em diacronia, exige um exame de glossários especializados que nos possibilitem tentar desvendar a mensagem de uma época já bem remota, quando autores manifestaram seu pensamento e linguagem um tanto diferentes do português moderno. O fato é que essa viagem ao passado como forma de conhecer a origem da língua torna-se relevante, sobretudo para que possamos melhor compreender os fenômenos lingüísticos com que nos deparamos no presente.

Referências Bibliográficas

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