FORMAS VERBO-NOMINAIS LATINAS
RESSONÂNCIAS EM PORTUGUÊS

Mariza Mencalha de Souza (UFRJ)

INTRODUÇÃO

O latim clássico possuía cinco formas nominais do verbo: infinitivo, gerúndio, gerundivo, particípio e supino. Além de se comportarem como verbo, elas podiam também desempenhar função substantiva e/ou adjetiva e até adverbial, apresentando (com exceção do infinitivo, indeclinável) sistema próprio de declinação e características inerentes ao verbo. No latim vulgar, essa tipologia foi simplificada, tanto em seu aspecto verbal quanto nominal, passando à estrutura morfossintática do português apenas três formas verbo-nominais: infinitivo, gerúndio e particípio passado, a par de alguns vestígios dos particípios presente e futuro e do gerundivo, incorporados à nossa língua com sua feição original ou com novos valores. É desse assunto que iremos tratar neste artigo.

FORMAS VERBO-NOMINAIS LATINAS
RESSONÂNCIAS EM PORTUGUÊS

Infinitivo

O infinitivo latino era um substantivo verbal que recebia esse nome por possuir traços que o identificavam simultaneamente com o verbo e com o substantivo.

Como verbo, podia apresentar, além de um sujeito, a noção de tempo e voz. Seu sujeito era ou o mesmo do verbo principal, ao qual ele se ligava, na condição de objeto direto, ou o próprio acusativo da forma verbal regente. No primeiro caso, construía-se o infinitivo com verbos do tipo possum, debeo, queo, scio, disco, coepi, incipio, soleo, assuesco, uolo, nolo, malo, cupio, desidero, metuo, dubito, statuo, gaudeo, postulo, studeo, laboro, festino, propero, persevero, mitto, abstineo, etc. No segundo, o infinitivo integrava uma oração subordinada substantiva infinitiva, na qual dependia de verbos que tinham como complemento um acusativo que lhe servia de sujeito, idêntico ou não ao da proposição principal. São exemplos das duas construções: continuo meum cor coepit in pectus emicare (Pl., Aul., 626-7) “imediatamente meu coração começou a saltar em (meu) peito”, uolo facere “desejo fazer”, nunc domum properare propero (Pl., Aul., 181) “agora me apresso em voltar correndo para casa”; bona publicari iubet (Cíc., Cat., IV, 8) “ordena que os bens sejam confiscados”, cupio me esse clementem (Cíc., Cat., I, 4) “desejo ser eu clemente”.

Ambas as construções latinas referidas acima passaram para o português, ocorrendo o acusativo com infinitivo, em nossa língua, depois dos verbos sensitivos “ver”, “ouvir”, “sentir” e causativos “fazer”, “mandar”, “deixar”, com os quais o infinitivo não forma locução verbal. Vejamos alguns exemplos nas obras de Machado de Assis: “vi assomar, à distância, uma mulher esplêndida” (Brás Cubas, L), “Virgília deixou-se estar de pé” (idem, VI), “o cocheiro fez parar o cavalo” (Quincas Borba, LXXXVI), “fez-me aprender em casa primeiras letras, latim e doutrina” (Dom Casmurro, XI).

A estrutura latina do infinitivo desempenhando a função de complemento direto de verbos de possibilidade, obrigação, conhecimento, vontade, temor, etc., passou ao português, mas a tendência entre nossos gramáticos é ver aí um caso de locução verbal, em que o infinitivo é considerado verbo principal e não objeto direto do verbo auxiliar, tido, em latim, como regente. Ex.: “não posso sair amanhã”, “devo partir hoje”, “ele não sabe estudar sozinho”, “quero viajar”, “desejo sair”, “temo sair à noite”.

Havia, além dos já comentados, outros contextos em que o infinitivo podia ter um sujeito. Isso ocorria nas situações em que ele era usado com valor histórico, jussivo e exclamativo, para os quais colhemos, nessa ordem, os seguintes exemplos: tum mater orare, hortari, iubere, quoquo modo fugerem (Plín., Ep., VI, 20, 12) “então (minha) mãe pedia, exortava, mandava-me que eu fugisse de qualquer modo”, tu socios adhibere sacris (Val. Fl.) “reúne tu os companheiros para os sacrifícios”, mene incepto desistere uictam! (Verg., En., I, 37) “eu desistir vencida do começado!”.

Todos os infinitivos citados no parágrafo anterior foram preservados na frase portuguesa, inclusive acompanhados, como no latim, de sujeito. O jussivo ocorre principalmente em ordens militares: “apontar, atirar, fogo!”, “formar! - ordenou o comandante”; o histórico, em narrativas: “o pai nos cabarés, gastando com raparigas. A mãe a fenecer em casa, a ouvir e a obedecer” (Jorge Amado, apud Cunha & Cintra, 1997:474); e o exclamativo, nas exclamações: “eu trair!” (Garret, Catão, 17), “ela aturar crianças!” (Castilho, As sabichonas, 33).

Ainda como verbo, possuía o infinitivo as categorias de tempo e voz, sendo, nesse particular, dividido em três modalidades: presente, perfeito e futuro, empregados com sentido ativo ou passivo.

Dos tempos aqui aludidos, apenas o infinitivo presente ativo, com final -āre,-ēre, -ĕre e -īre, passou para o português, depois de sofrer, no latim vulgar, a apócope do -e: amāre>amar, debēre>dever, venděre>vender, partīre>partir. Entretanto, das quatro conjugações latinas, permaneceram em nossa língua somente três, visto que a segunda se fundiu com a terceira (facěre>facēre>fazer) desde o latim vulgar, sem contar os casos de verbos que mudaram de conjugação: fugěre>fugire>fugir, torrēre>*torrare>torrar.

Como substantivo, podia o infinitivo desempenhar, dentre outras funções, o papel de sujeito, objeto direto e predicativo, casos em que equivalia a um nominativo ou acusativo. E mais: era possível ser construído, à semelhança do substantivo, com adjetivos determinativos e qualificativos, na qualidade de núcleo do sujeito ou do predicado. Tais empregos do infinitivo podem ser observados nos seguintes trechos: uiuere est cogitare (Cíc., Tusc., 5, 111) “viver é pensar”, hic uereri perdidit (Pl., Ba., 158) “ele perdeu o respeito”, meque hoc ipsum nihil agere delectat (Cíc., De or., 2, 24) “e este próprio fazer nada me deleita”, meum intellegere nulla pecunia uendo (Petr., Sat., 52, 3) “não vendo meu saber por nenhum dinheiro”.

O valor nominal do infinitivo, na condição de sujeito, é ainda freqüente nas construções em que ele vem subordinado a verbos impessoais e expressões impessoais: oratorem irasci minime decet (Cíc., Tusc., 4, 54) “de modo algum, convém ao orador irar-se”, mihi necesse est ire (Pl., Amph., 501) “para mim, é necessário partir”. Esse uso do infinitivo equivalendo a um substantivo fica evidente se substituirmos, nas duas frases latinas, as formas irasci e ire pelos seus nomes correspondentes, ira e itus, e lhes dermos esta outra tradução: “de modo algum, convém ao orador a ira”, “para mim, é necessária a partida”.

Todos esses usos do infinitivo latino, com valor de substantivo, foram herdados pela língua portuguesa. Dão-nos testemunho desse fato frases como “comer é bom”, “viver é lutar”, “não ignoro o saber dos filósofos”, “meu pesar é grande”, “o próprio sofrer o incomoda”, “quero levar aos alunos meu saber”, “convém estudar”, “é necessário partir”.

O infinitivo podia igualmente ser empregado para exprimir finalidade. Esse uso era comum com verbos de movimento (īre, mittĕre, etc.) e com as expressões dāre biběre ou ministrāre biběre. Exs.: uenerat aurum petere (Pl., Ba., 631) “tinha vindo para pedir (seu) ouro”, quae iussi ei dari bibere (Ter., And., 484) “aquilo que lhe ordenei que fosse dado para beber”.

Em português, a herança do infinitivo de finalidade sobrevive também em locuções formadas com verbos de movimento ou fossilizadas, do tipo “dar de” e “dar para”. São exemplos elucidativos: “Pedro veio estudar português”, “a mãe deu de beber/comer/mamar à criança”, “deu-me o filho para criar”. No primeiro exemplo, o valor de finalidade torna-se mais enfático se acrescentarmos a preposição “para”, marcador sintático usado freqüentemente para indicar fim: “Pedro veio para estudar português”.

Gerúndio

O gerúndio caracterizava-se morfologicamente pelo sufixo -nd-. Era um substantivo verbal neutro, de sentido ativo, que apresentava, para as quatro conjugações latinas, apenas as terminações de acusativo, ablativo, dativo e genitivo singular, características dos nomes neutros da segunda declinação. Segue abaixo sua declinação completa:

acus. laudandum, abl. laudando, dat. laudando, gen. laudandi (1ª conj.)

acus. docendum, abl. docendo, dat. docendo, gen. docendi (2ª conj.)

acus. regendum, abl. regendo, dat. regendo, gen. regendi (3ª conj.)

acus. capiendum, abl. capiendo, dat. capiendo, gen. capiendi (3ª conj.)

acus. audiendum, abl. audiendo, dat. audiendo, gen. audiendi (4ª conj.)

Tinha, portanto, o gerúndio, desde sua origem, uma natureza anfíbia: uma voltada para o nome, e outra, para o verbo, identificando-se, nesse particular, com o infinitivo, que podia também, conforme esclarecido há pouco, desempenhar o papel de verbo e de substantivo.

Contudo, como normalmente o infinitivo exercia as funções de sujeito, objeto direto, predicativo do sujeito e do objeto direto, próprias do nominativo e do acusativo, as demais que lhe faltavam, reservadas naturalmente aos outros casos latinos, foram preenchidas, graças a essa identidade, pelo gerúndio ou pelo gerundivo e supino.

Além de suprir as lacunas deixadas pelo infinitivo, o gerúndio servia também para expressar finalidade, caso em que vinha no acusativo, precedido da preposição ad: uenit ad legendum “veio para ler”, ou no genitivo, acompanhado dos substantivos causa ou gratia: conuenerunt ludendi causa/gratia “reuniram-se para jogar”. Acrescente-se que podia ainda funcionar como adjunto adverbial de modo ou meio, quando, então, assumia a forma de ablativo sem preposição: Cato nihil largiundo gloriam adeptus est (Sal., Coniur. Cat., LIV) “Catão alcançou a glória nada deixando impune”, discitur legendo et scribendo “aprende-se lendo e escrevendo”.

A propósito, do antigo gerúndio latino, a única forma preservada em português foi a do ablativo sem preposição. Porém, cumpre lembrar que não ficou o gerúndio português, em sua feição latina, restrito às antigas circunstâncias de modo e de meio, visto que passou a exprimir outras funções adverbiais não expressas pelo gerúndio latino em ablativo. Muito mais amplo que sua matriz latina, o gerúndio português pode expressar, dependendo do contexto, idéia de causa, concessão, condição, conseqüência, finalidade e tempo, sem contar os outros valores que absorveu do particípio presente latino. Essa riqueza do nosso gerúndio, exprimindo as novas e as primitivas circunstâncias de sua antiga forma latina, é atestada nas seguintes passagens: “Custódio interrompeu-o, batendo uma palmada no joelho” (M. de Assis, “O empréstimo”, in: Papéis avulsos), “passava os dias no quarto, chorando” (M. de Assis, Mem. de Aires, 10/2/1888), “temendo não vencer a resistência da moça, dava-me por incapaz de amar” (idem, 25/1/1888), “minha mulher, embora querendo simular descontentamento, não pôde deixar de sorrir” (C. Drummond de Andrade, Contos de aprendiz, 17), “não indo Aguiar, quem há de cuidar dele?” (M. de Assis, idem, 26/5/1889), “os ventos brandamente respiravam, das naus as velas côncavas inchando” (Camões, Lus., I, 19), “Rita escreveu-me pedindo informações de um leiloeiro” (M. de Assis, idem, 18/5/1888), “falando ou calando, tinha intervalos de melancolia” (M. de Assis, idem, 22/5/1888).

Gerundivo

O gerundivo, marcado do mesmo modo pelo sufixo -nd-, era, ao contrário do gerúndio, um adjetivo verbal, de valor passivo, terminado em -us, -a, -um. Declinava-se, portanto, como qualquer adjetivo de primeira classe, em todos os casos do singular e plural, concordando sempre em gênero e número com seu complemento, que, por sua vez, harmonizava-se com ele em caso.

Conhecido ainda como particípio futuro passivo, podia o gerundivo concorrer com o gerúndio, exprimindo também as circunstâncias de meio e de finalidade. Exprimia meio, vindo também, como o gerúndio, no ablativo sem preposição, e finalidade, pondo-se no acusativo, precedido de ad mais complemento, ou, no genitivo, mais causa/gratia. Temos exemplos desses dois usos nas frases latinas omnis loquendi elegantia augetur legendis oratoribus et poetis (Cíc., De or., 3, 39) “eleva-se todo o brilho da palavra lendo-se os oradores e os poetas”; uenit ad urbem condendam “veio para fundar a cidade”, auxilii petendi causa profectus est (Cés., B. G., 6, 12) “partiu para pedir auxílio”.

Além de partilhar com o gerúndio algumas funções e empregos, o que ocorria, sobretudo, quando servia de complemento a adjetivos, substantivos e verbos, o gerundivo tinha um importante papel na sintaxe latina: o de substituir o gerúndio, quando este deveria vir no dativo, acusativo ou ablativo regido de preposição e acompanhado de objeto direto. Se, contudo, o gerúndio viesse no genitivo ou no ablativo sem preposição e com complemento em acusativo, podia ou não ser substituído pelo gerundivo, uma vez que, em tal situação, salvo alguns casos isolados, nos quais exigia-se o emprego do gerúndio, era admissível o uso de uma ou de outra forma, indiferentemente. Nos casos em que era intransitivo, transitivo indireto ou transitivo sem complemento expresso, o verbo assumia geralmente a forma de gerúndio e, preferencialmente, a de gerundivo, se era transitivo direto com complemento expresso. Por fugir aos objetivos deste artigo, dispensamo-nos de apresentar aqui exemplos com a passagem ou não da construção gerundial ativa à passiva.

À semelhança do gerúndio, tinha também o gerundivo o valor primitivo de nomes de ação, mas ao longo da evolução da língua latina foi adquirindo outros sentidos que o distanciaram do gerúndio. Indo além dos limites da construção gerundial, dentro da qual podia ter funções e empregos sintáticos idênticos aos do gerúndio e auxiliá-lo na declinação do infinitivo, passou o gerundivo a expressar, em funções atributiva e predicativa, as noções de atribuição, obrigação, possibilidade, finalidade, chegando, inclusive, a ser usado com valor participial. Tais valores podem ser observados nos seguintes exemplos: asperum et uix ferendum (Cíc.), “duro e difícil de ser suportado”, magna dis immortalibus habenda est gratia (Cíc., Cat., I, 11) “grande graça deve ser rendida aos deuses”, procul uidenda est insula (Ov., Metam., XIV, 244) “pode-se ver a ilha de longe”, mihi litteras legendas dedit (Cíc., Fam., 10,12) “deu-me cartas para serem lidas”, inter labores aut iam exhaustos aut mox exhauriendos (Lív., Praef., 21, 21, 8) “em meio a fadigas já suportadas ou a serem suportadas brevemente”, urbes delendae “cidades que vão (devem) ser destruídas”, uir metuendus de die supplicii (Rhythm.) “homem que teme quanto ao dia de (seu) suplício”, in generatione eorum qui noscendi sunt (Nicodem.) “na geração daqueles que hão de conhecer...”.

O gerundivo não deixou em português nenhum traço de sua antiga acepção verbal. Legou-nos apenas seu valor nominal, representado em nossa língua por substantivos (oferenda, propaganda, agenda, etc.) e adjetivos (nefando, venerando, moribundo, etc.). Coutinho (1969:276) menciona a criação em português de formas terminadas em -ndo, com valor de substantivo verbal, numa série de palavras cultas: “educando”, “graduando”, “doutorando”.

Particípio

O particípio latino era também uma forma ambivalente, que participava a um só tempo da natureza do verbo e do adjetivo. Sua natureza verbal residia no fato de poder, à semelhança do verbo, exprimir ações, possuir tempos e vozes e admitir complementos, ao passo que, enquanto adjetivo, sofria flexão de gênero, número, caso e grau. Este último fato ocorre nos dois sintagmas nominais seguintes: amantissimi fratres (Cíc.) e dessideratissima nomina (Plín.).

Suas formas empregadas para expressar tempo denominavam-se particípios presente, passado e futuro. O particípio presente, de índole ativa, mas admitindo eventualmente sentido passivo, caracterizava-se pelo sufixo -nt- e comportava-se como um adjetivo de segunda classe uniforme, ou seja, declinava-se como prudens, seguindo, portanto, a terceira declinação.

O particípio passado, cujas terminações eram, de um modo geral, -tus, -ta, -tum, tinha, ao contrário do particípio presente, basicamente, com exceção de alguns casos isolados, sentido passivo e seguia o paradigma dos adjetivos de primeira classe, declinando-se os finalizados em -tus e -tum, pela segunda, e os terminados em -ta, pela primeira.

O particípio futuro, que passa a ter função participial praticamente a partir do período pós-clássico, constituía, inicialmente, uma conjugação perifrástica e possuía formas ativa e passiva, terminando a primeira, em -urus, -ura, -urum, e a segunda, chamada gerundivo, em -ndus, -nda, -ndum, seguindo, portanto, uma e outra, como o particípio passado, os adjetivos de primeira classe.

Todas essas formas do particípio eram usadas com valor atributivo ou predicativo, isto é, ora vinham determinando um substantivo, no papel de adjunto adnominal, ora, mais comumente, complementando ou qualificando um nome, em função predicativa, formulando-se, por isso, em nominativo ou acusativo. Temos exemplos do primeiro caso em: aqua fervens “água fervente”, amicus exoptatus “amigo desejado”, opinio uenturi boni (Cíc.) “a esperança do bem futuro” e, do segundo, em: miles currens est (Verg.) “o soldado é corredor”, uidi iuuenem maerentem (Tib., El., I, 4, 33-34) “vi um jovem se lamentando”, pons prope effectus nuntiabatur (Lív.) “anunciava-se que a ponte (estava) quase pronta”, uidi saltum obsaeptum (Pl.) “vi o bosque cercado”, cum apes iam euolaturae sunt aut etiam inceperunt... (Varr., R. Rust., 3, 16, 30) “quando as abelhas estão para se reproduzir ou até já o começaram”, si perituraeque addere Troiae teque tuosque iuuat (Verg., En., II, 660-1) “se te agrada te juntares e aos teus à Tróia que há de morrer”.

Em função predicativa, o particípio futuro fazia também a vez de um adjunto adverbial de finalidade: multi accurrere filium arguituri (Sal.) “muitos corriam para atacar o filho”.

Aliás, estas construções do particípio passado, tanto em sua função atributiva quanto predicativa, foram legadas ao português. As do último tipo, deixando suas marcas em frases como “diz-se que o problema está resolvido”, “vi um objeto caído no chão”, “não quero vê-lo solto”, e as do primeiro, refletindo-se em giros como “água purificada”, “alimento estragado”, “problema resolvido”. É preciso esclarecer, no entanto, que, em português, o particípio não exerce o papel de oração subordinada completiva, como ocorria no latim, quando complementava verbos idênticos aos de nossos exemplos ou de natureza diversa.

O particípio passado era ainda empregado em latim, juntamente com o auxiliar esse conjugado (ou não, no caso do infinitivo perfeito passivo), para formar também a voz passiva dos verbos de ação acabada, que compreendiam os seguintes tempos e modos: perfeito, mais-que perfeito e futuro perfeito do indicativo; perfeito e mais-que perfeito do subjuntivo e infinitivo perfeito.

Foi mantido na língua portuguesa, tanto na conjugação passiva quanto na formação dos tempos compostos da ativa, com os auxiliares “ter” ou “haver”. Desse modo, temos, por exemplo, em português, para as terceiras pessoas: “é amado(a)/são amados(as)”, “foi amado(a)/foram amados(as)”, “tenha sido amado(a)/tenham sido amados(as)”, “tivesse amado/tivessem amado”, “havia amado/haviam amado”, correspondendo ao latim clássico: amatur/amantur, amatus(a) est/amati(ae) sunt, amatus(a) sit/amati(ae) sint, amauisset/ amauissent, amauerat/amauerant.

Estabeleceu-se, no entanto, como se percebe, uma diferença entre a formação da passiva em latim e em português: enquanto naquele, a passiva analítica restringia-se aos tempos do perfectum, neste, desde o latim vulgar, estendeu-se também aos tempos de ação inacabada (infectum), passando as noções de tempo e aspecto concluso/inconcluso a serem indicadas unicamente por uma construção analítica e a centralizar-se, sobretudo, no auxiliar “ser”.

A formação da passiva dos tempos compostos em português, com dois particípios do tipo “Pedro tem sido elogiado por todos” e “a lição havia sido estudada pelo aluno”, não é uma herança da sintaxe clássica latina, e sim resultado da conversão para a passiva de perífrases ativas do tipo “todos têm elogiado Pedro”, “o aluno havia estudado a lição”, já encontradas no latim arcaico e clássico, e predominantes no latim vulgar.

O particípio presente, usado com acepção atributiva e predicativa, também passou para o português, o que se observa em sintagmas como: “água corrente”, “luz ofuscante”; “esta situação é preocupante”, “achei Maria intolerante”, etc. Todavia, nas construções desse tipo, preservou apenas seu valor adjetivo, tendo perdido sua função verbal, que acumulava com a adjetiva em sua forma latina. Para Coutinho (1969:275), o particípio presente tinha força verbal somente no português arcaico. O filólogo comprova o fato citando dois exemplos: “temente o dia de mia morte” e “lançantes bom cheiro”.

Aliás, em português, esse duplo papel do antigo particípio presente foi assumido pelo gerúndio, que acumula também, em emprego atributivo ou predicativo, numa única forma, os valores de adjetivo e verbo percebidos, a nosso ver, mais nitidamente na oração adjetiva desenvolvida. Assim, em frases como, “água fervendo” e “vi a flautista tocando”, as funções verbal e adjetiva dos dois gerúndios dão-nos a impressão de acentuar-se quando substituímos suas formas por orações equivalentes desenvolvidas: “que ferve”, “que tocava”.

Os vestígios deixados pelo particípio futuro ativo, com função atributiva, ou melhor, de adjunto adnominal, sobrevivem, em nosso idioma, em alguns torneios do tipo “dias vindouros”, “ação futura”. Contudo, parecem sofrer alguma restrição de uso em função predicativa.

Os particípios latinos sofreram também um processo de substantivação, processo este presente em formas como amantes, praesentes, legatus, docti, uicti, facta, dicta, gesta, credituri, morituri. A herança de tais particípios, com valor substantivo, é visível em diversas palavras portuguesas, dentre as quais, podem ser citadas: “os sobreviventes”, “o gerente”, “o ouvinte”, “o legado”, “os feitos”, “os ditos”, “o futuro”, “o nascituro”, “o morituro”. Lembremos, a propósito, os substantivos “viventes” e “legado”, o primeiro, presente no título de um dos livros de Graciliano Ramos, Viventes das Alagoas, e o segundo, na célebre frase com que Machado de Assis encerra o seu Brás Cubas: “não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.

Além desses empregos, os particípios eram usados ainda com valor de oração subordinada adjetiva relativa ou de oração subordinada adverbial exprimindo modo, causa, concessão, condição, finalidade e tempo. Temos exemplos da primeira situação nas frases latinas lex est recta ratio imperans honesta, prohibens contraria (Cíc., Phil., 11, 12, 28) “a lei é a reta razão que determina o que é correto e proíbe o que é incorreto”, Pisistratus qui primus Homeri libros confusos antea sic disposuisse dicitur (Cíc., De or., 3, 137) “Pisístrato, que dizem então ter sido o primeiro a organizar os poemas de Homero, (os quais estavam) antes confusos”; e, da segunda, em infit ibi postulare plorans, eiulans, ut sibi liceret miluum uadarier (Pl., Aul., 318-19) “então, chorando, lamentando, começou a pedir (ao pretor) que lhe fosse permitido citar o milhafre em juízo”, ruinam metuens aquila ramis desidet (Fed., Fab., II, 4, 21-22) “a águia, temendo a queda, mantém-se empoleirada nos ramos”, risus interdum ita repente erumpit, ut eum cupientes tenere nequeamus (Cíc., De or., 2, 58, 235) “às vezes, o riso irrompe tão de repente, que ainda que desejando, não conseguimos contê-lo”, damnatum poenam sequi oportebat (Cés., B. G., 1, 4, 1) “caso fosse condenado, convinha cumprir a pena”, rediit belli casum de integro tentaturus (Lív., 42, 62, 15) “voltou para enfrentar novamente os acasos da guerra”, humana effodiens ossa thesaurum canis inuenit (Fed., Fab., I, 27, 3-4) “um cão, ao desenterrar uma ossada humana, achou um tesouro”.

Os particípios presente e passado latinos, com papel de oração subordinada adjetiva, não sobreviveram em português, porém figuram em determinadas construções, lembrando essa antiga função. Isso se verifica em frases do tipo “ela é uma criança carente de afeto”, “este é o tema referente à minha palestra”, “ela recuperou seus documentos perdidos”, “as histórias escritas por Machado de Assis fascinam os leitores”, nas quais as formas “carente”, “referente”, “perdidos” e “escritas” poderiam ser substituídas por uma oração subordinada adjetiva, sem mudar de sentido.

Com acepção adverbial, somente o particípio passado se manteve em português: “maltratado pelo irmão, começou a chorar”, “embora pintado por um famoso artista, o quadro não me agradou”, “feito com amor e dedicação, tudo agrada”, “depois de expulso da casa paterna, nunca mais voltou”. Já o particípio presente foi, nesse caso, substituído, quase que sempre, pelo gerúndio, infinitivo ou por uma oração desenvolvida. Dão-nos testemunho desse fato as sentenças “entrou em casa sorrindo/a sorrir”, “temendo perder/por temer perder/como temia perder o imóvel, pagou a dívida”, “mesmo ajudando/apesar de ajudar/embora ajude os outros, não é ajudado”, “estudando/ao estudar/caso estudes, passarás no concurso”, “telefonei-lhe solicitando/para solicitar que comparecesse ao jantar”, “saindo/ao sair/quando saíres, fecha a porta”.

As circunstâncias de causa, concessão, condição e tempo podiam ainda vir expressas pelos particípios presente e passado, numa outra construção latina, conhecida como ablativo absoluto, que difere da oração participial subordinada adverbial, pelo fato de não depender de nenhum termo da proposição principal.

Semelhante estrutura, muito comum em latim, está presente nos seguintes trechos colhidos da literatura latina: ut re confecta, omnes curam et diligentiam remittunt (Cés., B. C., 2, 13, 2) “porque (julgam) o caso terminado, todos deixam de lado cuidado e zelo”, id (oppidum)... paucis defendentibus expugnare non potuit (Cés., B. G., 2, 12, 2) “embora poucos defendessem a cidade, não pôde subjugá-la”, maximas uirtutes omnes iacere necesse est, uoluptate dominante (Cíc., Fi., 2, 117) “é inevitável que todas as grandes virtudes fiquem esquecidas, se o prazer domina”, ipse triduo intermisso cum omnibus copiis eos sequi coepit (Cés., B. G., I, XXVI) “passados três dias, ele próprio começou a segui-los com todas as (suas) tropas”.

Aqui também os particípios presente e passado tiveram destino idêntico ao observado na construção precedente, isto é, apenas o particípio passado sobreviveu nas construções de ablativo absoluto legadas ao português, conservando os mesmos valores que tinha em latim. Causa: “fraudados os votos, houve nova eleição”; concessão: “mesmo exauridas as forças, não se renderam”; condição: “aceita a proposta, faremos negócio”; tempo: “começado o filme, a platéia silenciou”.

O particípio presente, mais uma vez, teve seu lugar tomado pelo gerúndio, infinitivo ou por uma oração desenvolvida. Bastam alguns exemplos para que constatemos o fato. Vejamos: “prevalecendo/por prevalecer/como prevaleceu o depoimento da vítima, o réu foi condenado”; “caindo/apesar de cair/ainda que caia neve, sairei”; “saindo/se sair/caso saia o sol, irei à praia”; “nascendo/ao nascer/quando nasceu o dia, ele partiu”.

Supino

O supino, com sufixo em -to ou -so, foi a única forma verbo-nominal latina que se perdeu completamente em português. Auxiliava a declinação do infinitivo e tinha apenas três casos, o acusativo, usado com verbos de movimento para indicar finalidade, e o dativo-ablativo, cujo emprego era comum com adjetivos do tipo facilis, iucundus, fas, etc. Tanto sua forma de acusativo (ex.: pugnatum, doctum, rectum, captum, auditum) quanto de ablativo (ex.: pugnatu, doctu, rectu, captu, auditu) podiam ser substituídas pelo gerúndio antecedido de ad. Ex.: miles uenit pugnatum/ad pugnandum “o soldado veio para lutar”; puer difficilis doctu/ad docendum “criança difícil de ser educada”.

CONCLUSÃO

Concluímos que, do particípio presente e futuro, só passaram para o português suas funções substantiva e adjetiva, ao passo que, do particípio passado, permaneceram seus três valores: adjetivo, verbal e substantivo, o que comprova ser essa forma, em nossa língua, a mais conservadora, uma vez que manteve quase que todos os traços de sua matriz latina. Apesar de haver se conservado no português com uma única tipologia, o infinitivo também preservou grande parte dos valores da forma latina de que se originou, passando a exercer um importante papel na morfossintaxe portuguesa, admitindo inclusive flexão, o que o distingue do seu congênere no latim e nas demais línguas românicas. O gerúndio, não obstante sua origem única, adquiriu também, na língua portuguesa, grande versatilidade, resultante não só dos novos valores que passou a ter, mas também das funções que assumiu do antigo particípio presente latino. Do supino, já vimos não existir nenhum vestígio em nosso idioma, e do gerundivo, só restou seu valor nominal, tendo se perdido seu valor verbal. Seja como for, cada forma verbo-nominal latina deixou suas marcas no sistema morfossintático da língua portuguesa, servindo de ponto de partida para inovações ou conservando, em grau maior ou menor, suas primitivas feições.

BIBLIOGRAFIA

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