ORDENAÇÃO DOS ADVÉRBIOS E

Ludmilla Lamoglia dos Santos (UFF)
Mariangela
Rios de Oliveira (UFF)

 

INTRODUÇÃO

Com base nos pressupostos teóricos funcionalistas (Hopper, 1991; Martelotta, 1996) este trabalho tem como objetivo pesquisar os fatores a que está associada a variação na colocação dos advérbios locativos e . Além de aspectos relativos à dimensão estrutural, como a posição desses constituintes em relação ao verbo, serão observados aspectos de ordem pragmático-discursiva, ligados ao processo de gramaticalização, e de natureza semântica, que delineiam a polissemia desses elementos.

No que diz respeito à ordenação, serão estudadas as tendências de colocação desses itens na oração , a confirmar ou não hipóteses sobre seu uso.

A partir da perspectiva teórica proposta, abordam-se os usos desse tipo de advérbio em textos de cunho religioso.

 

METODOLOGIA

Na fase inicial desta pesquisa, foram utilizados apenas corpora sincrônicos, os quais são constituídos por três livros de cunho religioso: Tocar o Senhor (Pe. Léo,1994), Um coração que seja puro (OLIVEIRA, 1982) e Amor é vida (FRACASSO, 1984). Os textos que servem aqui de fonte para análise, segundo Orlandi (1997), representam um tipo de discurso autoritário, não-autônomo e assimétrico, em que locutor e ouvinte encontram-se em planos bastante distintos, pois o locutor, ao transmitir os ensinamentos de Deus, assume uma postura superior diante dos fiéis.

Com o propósito de verificar algumas tendências dos usos dos locativos, analisaram-se, primeiramente, textos escritos em português contemporâneo, pois, conhecendo um pouco mais os usos adverbiais locativos de hoje, pode-se com maior segurança e propriedade aprofundar-se nos textos arcaicos. Elaborou-se uma proposta que contém um conjunto de textos mais ou menos equilibrados, no sentido de apresentar estruturas lingüísticas semelhantes.

Em nossa pesquisa específica, observamos o uso dos advérbios e ; conforme podemos constatar nos corpora em análise, trata-se de dois termos com funções distintas. Como ponto de partida, o estudo desses elementos estará levando em conta a posição estrutural do locativo, e a sua função, que assim se configuram inicialmente:

 

Posição estrutural do locativo:

1  Pré-verbal

ØSujeito + advérbio + verbo (P1)

ØAdvérbio + verbo (P2)

ØAdvérbio + X[1] + verbo (P3)

2  Pós-verbal

ØVerbo + advérbio (P4)

ØVerbo + X + verbo (P5)

 

Função do locativo

1                 Argumental

2                 Adjuntiva

3                 Juntiva

 

EMBASAMENTO TEÓRICO

Sob a luz do funcionalismo norte-americano, este trabalho baseia-se nos princípios de camadas e divergência (Hopper 1991). Trata-se de dois fenômenos associados ao processo de gramaticalização, o qual leva itens lexicais e construções sintáticas a assumir funções referentes à organização interna do discurso. Como resultado da ação desses dois fenômenos, o elemento pode torna-se mais gramatical, isto é, assumir posições mais fixas na oração, apresentando-se mais previsível o seu uso.

De acordo com a perspectiva funcional (Givón, 2001; Martelotta et alii, 1996), as estruturas lingüísticas resultam de convencionalização ou ritualização de usos discursivos; as formas de expressão configuram-se como cristalizações de sentido, fixadas devido à freqüência com que são articuladas no trato social.

O principio de camadas refere-se ao fato de que as línguas possuem mais de uma forma lingüística para desempenhar funções similares. Está relacionado às possíveis variações nas posições ocupadas pelo advérbio, conforme está colocado no item 1, anteriormente referido. Seguem abaixo dois exemplos de camadas de uso do locativo :

(1) Para o céu, para o alto; está a sua meta.(AV)

(2) Não te declaro imoral, porque não estive nem estou dentro de tua mente.(UCSP)

Em (1) e (2), o locativo ocupa duas posições distintas: a anteceder o verbo (1) e a sucedê-lo (2). Comparando-os, observa-se a existência de duas camadas de expressão. No exemplo (1), o elemento refere-se a um lugar mencionado anteriormente na oração. Neste sentido, podemos denominá-lo espacial pleno, (Martelotta et. al., 1996) uma vez que faz menção anafórica a fragmentos detectáveis no texto. Ao contrário de (1), a partícula locativa de (2) não se reporta a um lugar explícito mencionado no texto, todavia pode ser inferido pelo contexto. Talvez possamos atribuir essa ocorrência ao fato de o advérbio localizar pontos no espaço mais distantes do falante e do ouvinte.

No caso do princípio de divergência, tem-se um conjunto de formas lingüísticas com a mesma origem, porém exercendo funções diferentes. É o que se verifica nos seguintes exemplos:

(3) Na oração ele se revela a nós e é possível encontrá-lo, descobri-lo e amá-lo .(TS)

(4) Deus estabelece sua morada no coração de Maria, porque sempre pode habitar. (TS)

O cotejo de (3) e (4) atesta que, embora a forma permaneça a mesma, a função de advérbio no exemplo (3) fica opacizada em relação a categoria prototípica . Em (3), o locativo antecedido pelo conectivo e lhe confere referenciação textual, e, por conta desse sentido, funciona como conector seqüencial lógico, podendo ser substituído por então, por exemplo. Há, ainda, a possibilidade de uma segunda leitura, na qual estaria se referindo anaforicamente ao termo na oração. Em (4), faz alusão a um espaço virtual, expresso na sentença pelo sintagma adverbial no coração de Maria.

Faz-se necessário frisar que, em ambos os processos, a presença de uma nova forma não implica o desaparecimento da existente. Esse não desaparecimento se dá tanto pela ocorrência de em referência a espaço físico, como pela possibilidade de alguma recuperação do sentido básico locativo de em (3) e (4).

Além dos pressupostos até aqui mencionados, é válido acrescentar o processo de discursivização, segundo o qual expressões lingüísticas tendem perder restrições gramaticais e assumir restrições de caráter interativo, viabilizando o processamento do discurso.

 

e : ORDENAÇÃO E FUNÇÃO

Locativo

No estudo dos advérbios locativos e , partiu-se de uma análise quantitativa, a fim de confirmar, ou não, algumas tendências do seu uso no português contemporâneo. Neste sentido, esses elementos serão observados no seu aspecto posicional e funcional.

Embora os dados ainda sejam reduzidos, do ponto de vista quantitativo, constatou-se que o constituinte se situa, na maioria das estruturas, em posições pré-verbais. Dos 21 exemplos levantados nos corpora, 16 localizam-se antes do verbo, enquanto o restante (5) após. Essa tendência aponta para a não confirmação da tese da maior mobilidade de ordenação dos locativos, pelo menos na fase atual da pesquisa. A seguir será apresentada uma tabela com os resultados das posições ocupadas por :

 

(D)

P1

P2

P3

P4

P5

TS

-

6

5

-

-

UCSP

1

2

2

5

-

AV

-

-

-

-

-

TOTAL

1

8

7

5

-

Tabela 1

Dentre as posições ocupadas por , merece destaque P2, iniciada pelo advérbio. A análise dessa estrutura contraria a hipótese de que o uso do locativo antes do verbo seria raro, haja vista que essa ordem ocorre em 8 dos 21 dados. De acordo com o princípio da ordenação linear, o constituinte , nessa posição, é a informação mais importante, revelando sua ordem de importância para o falante. Por outro lado, sua referência anafórica indica que se trata de uma informação mais antiga; conhecida. Além de iniciar a estrutura oracional, tal ordenação nos remete ao principio da adjacência ou proximidade, no qual conteúdos mais próximos cognitivamente também estarão mais integrados no nível de codificação . Uma dessas construções encontra-se em (5):

(5) No segundo episódio, Pedro o segue de longe, tem perdido o contato e, com ele, a força. está a proposta. (TS)

A construção está apresenta grande nível de integração semântico-sintático, podendo ser substituída por eis.

Observa-se ainda uma única ocorrência da ordenação sujeito/advérbio/verbo, confirmando a hipótese de Pagotto (1999), segunda a qual essa ordenação, na sincronia atual, seria pouco freqüente, como em (6):

(6) Dinheiro e pureza de sentimentos quase nunca se casam

Os fatos estão. (UCSP)

Por outro lado, se observarmos que em (6) o locativo está inserido na construção estão, tomada como uma unidade, podemos considerar que, de fato, não se trata da ordem S Adv V.

Apesar de a ordenação advérbio + verbo ser a mais corrente, não podemos afirmar que o locativo, nesta posição, exerça com freqüência a função prototípica de adjunto. O seu estudo exaustivo aponta para a abstratização dessa função: dos 21 dados levantados, 11 atuam como função juntiva, ou seja, como conectivo ou operador discurso. Com base nos dados, formou-se seguinte quadro:

 

(D)

2.1

2.2

2.3

TS

3

1

7

UCSP

3

3

4

AV

-

-

-

TOTAL

6

4

11

Tabela 2

Essa heterogeneidade de funções é incrementada pelo fato de os advérbios funcionarem num plano de utilização da língua que oscila entre o campo do léxico e a área da gramática, normalmente composta de elementos que assumem funções voltadas para a organização interna do texto ou para a orientação argumentativa que se quer dar a ele. Trata-se de uma classe fluida, de contornos pouco precisos, que tende a se adaptar às motivações discursivas próprias das situações interacionais.

Quanto mais perde traços categóricos, o locativo torna-se mais polissêmico e, em alguns contextos, inicia processo de gramaticalização, quando migra da classe dos advérbios para a dos conectivos; nesta condição, passa a funcionar como seqüenciador, podendo também expressar as noções de conseqüência, tempo ou conclusão. Eis um exemplo:

(7) Quando conseguem entender que fazer sexo é uma coisa e fazer amor é outra, a primeira coisa de que se descartam é das suas idéias de amor livre. E começam a ser puros de novo.(UCSP)

 

LOCATIVO

Diferentemente do locativo , verifica-se que os dados concernentes à partícula indicam uma distribuição equilibrada entre as posições pré e pós-verbais nas três obras, sugerindo a existência de uma relativa mobilidade desse constituinte. Dos 13 exemplos investigados, 5 localizam-se antes do verbo, enquanto o restante (8) após. A tabela abaixo ilustra melhor a variação de posições ocupadas por :

 

P1

P2

P3

P4

P5

TS

-

1

-

-

-

UCSP

-

1

1

6

1

AV

-

2

-

1

-

TOTAL

-

4

1

7

1

Tabela 3

Assim como na análise de foi destacada uma posição, também aqui elegemos uma de igual relevância. Trata-se da ordem P4 (verbo + advérbio), que concorre em 7 dos 13 exemplos.

Essa ordenação nos sugere maior vínculo sintático-semântico entre o verbo e seu complemento. A comprovação dessa conexão baseia-se no fato de os corpora revelarem que boa parte dos exemplos apresenta o elemento funcionando como argumento do verbo. O exemplo abaixo a ilustra:

(8) No beco do Inferno em Vida muitos jovens. E estão ... (UCSP)

Em (8), refere-se a um elemento detectável no texto, de caráter físico e concreto.

Por outro lado, foi encontrado um exemplo de ordenação semelhante – P4, porém distancia-se funcionalmente da construção acima referida.. Eis o trecho:

(9) Sei , acho que é porque embora saiba que você não aprova o que faço, você nos ouve e conversa com calma. Além do mais, às vezes penso que estou certa. (UCSP)

Acima, a seqüência cristalizada sei , de uso corrente na comunidade lingüística, apresenta imobilidade interna, uma vez que o sentido não é dado pela mera soma de partes, mas pelo todo de sentido e de forma.

Podemos estabelecer duas trajetórias para esse tipo de estrutura: i) em unidades mais cristalizadas, o processo de gramaticalização encontra-se mais avançado. Em sei , tanto o verbo quanto o elemento locativo perdem sua autonomia morfossintática; ii) a partícula assume função modalizadora, ou seja, atua como uma marca de afastamento, desinteresse ou incerteza do falante em relação ao que diz (Martelotta et. alii; 1996, p.240) Paralelamente a essa função, há um processo de discursivização que atribui caráter pragmático e interativo à forma sei .

A esse respeito, é preciso observar o tipo de texto em estudo. Por tratar-se de corpora extraídos de três livros de cunho religioso, cuja proposta é a de mostrar aos jovens os caminhos do amor e da paixão, o uso de expressão lingüística mais popular, como em sei , representaria um meio mais eficaz de o locutor passar suas mensagens e estabelecer uma relação com seu público. Nesse sentido, o termo passa a assumir uma função mais abstrata; a indicar, nesse fragmento, a insegurança e hesitação de um jovem em aconselhar-se com um membro da igreja.

Um outro dado interessante, embora pouco freqüente em nosso banco de dados, é que o constituinte , referindo-se a um local ainda por mencionar (catáfora), funciona como uma partícula enfática. Quando catafórico, introduz uma informação nova, como em (10):

(10) O fato é que Jesus fica conversando na sala com Maria... (UCSP)

Na construção fica conversando, o locativo se une de forma mais estreita ao primeiro constituinte verbal, o verbo ficar, formando a seqüência ficar . Assim sendo, o advérbio comporta-se com complemento verbal, funcionando como argumento do verbo, concomitantemente, o gerúndio conversando ganha maior automia semântico-sintática, a funcionar como adjunto.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, investigou-se o item , comparando-o a , à luz do funcionalismo. A análise do advérbio não nos permite confirmar a hipótese da maior mobilidade desse constituinte na oração. Foram encontradas evidências de que, embora ocupe posições mais centrais, sua função é bastante polissêmica, estendendo sua referência de espaço físico a espaço textual. O locativo, em tal circunstância, perde traços prototípicos adverbiais e assume, em estágio de gramaticalização, a função de conector.

A partícula , ao contrário, não sofre tanta alteração de sentido, exceto em estruturas cristalizadas como em sei ; e cumpre com freqüência a função de complemento verbal.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

GIVÓN, T. Syntax: an introduction. Vol. 1. Amsterdam / Philadelphia: John Benjamins, 2001

HOPPER, P. On some principles of grammaticalization. IN: TRAUGOTT, E. e HEINE, B. (ed). Approaches to grammaticalization. Vol. 1. Amsterdam: Benjamins, 1991.

MARTELOTA, M, et alii. O paradigma da gramaticalização. In: Gramaticalização no português do Brasil – uma abordagem funcional.Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.

––––––. Gramaticalização de . In: Gramaticalização no português do Brasil – uma abordagem funcional. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.

NEVES, Maria Helena de Moura. ILARI, Rodolfo (org.). Os advérbios circunstanciais de lugar e de tempo. In: Gramática do Português falado.Campinas: UNICAMP, 1992. Vol. II: Níveis de Análise lingüística.

–––––– (org) e então a hipótese da trajetória universal. In: Descrição do Português: definindo rumos de pesquisa. Araraquara: FCL/Laboratório editorial/ Unesp; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2001.

OLIVEIRA, José Fernandes (Pe. Zezinho). Um coração que seja puro. São Paulo: Paulus, 1982.

ORLANDI, E. A linguagem e seu funcionamento. Campinas: Pontes, 1987.

PE. LÉO. Tocar o Senhor. São Paulo: Loyola, 1994.

PAGOTTO, E. Posição dos advérbios. Via correio eletrônico, 1999.

TAYLOR, J. Linguistic categorization: prototypes in linguistic theory. Oxford: Clarendon Press, 1995.


 

[1] X é qualquer elemento lingüístico que possa ocorrer entre o advérbio e o seu escopo, e vice-versa. É importante frisar que não são considerados como X advérbios que se referem a outros advérbios.