Ars sermocinandi - A permanência da retórica nas Letras seiscentistas

Kelen Dias de Barros Violento

Tratar de retórica no mundo pós-moderno constitui-se em uma difícil tarefa, pois após inúmeras investidas de um desejo de velocidade, ampliado por uma cultura de massa, valorizadora da alta produção, da linguagem telegráfica, se torna, no mínimo, distante e complicada a leitura de um modelo onde a ornamentação criteriosa da palavra é elevada ao seu máximo sentido.

Nisso consiste, com certeza, o maior percalço para a coerente abordagem a autores pré-iluministas, como Antonio Vieira, por exemplo. É necessário movermos o prisma com que olhamos as produções pós-iluministas, para produzirmos um novo reflexo, que se mostrará amplamente colorido, porém com uma amplitude particular e, como veremos, extremamente engajada.

Voltando-nos para a retórica em si, é importante destacar que, apesar de habitualmente se pressupor que esse modelo discursivo possui um corpus homogêneo, um estudo mais aprofundado nos mostra que não é possível estabelecer uma unidade para a “arte do bem dizer”.

O estabelecimento do nascimento da retórica foi atribuído a Empédocles, Córax eTísias, cinco séculos antes da Era Cristã, Na Sicília. No entanto, autores precedentes a esse período, como os pré-socráticos e Homero, já apresentavam uma profunda valorização da palavra. Desde então, muitas foram as variações e conflitos presentes na configuração da retórica.

Na Grécia Antiga, a criação da polis foi um advento que trouxe profundas mudanças para o pensamento grego. Seus sistemas colocavam em proeminência o discurso, mais do que qualquer outro veículo de poder, a palavra “torna-se o instrumento político por excelência, a chave de toda autoridade no Estado, o meio de comando e de domínio sobre outrem” (VERNANT, 2002: 53,54).

O poder que a palavra tomava estava diretamente ligado à questão da persuasão; ela não tinha mais que ser eficaz, que ter valor de um rito, não precisava efetuar-se indubitavelmente no concreto, mas, ao contrário, ela consagrava-se na contradição, no diálogo. Nesse contexto, a figura do sofista adquiria grande relevo, pois era ele quem apresentava as possíveis verdades, partindo do princípio de que “o homem é a medida de todas as coisas”.

Nesse sentido, surge uma polemica, que várias vezes leva a interpretações equivocadas. Platão criticava ferozmente a absoluta vinculação com o falso, pretendia que todas as manifestações sensíveis referissem-se à essência, ao Mundo das Idéias. Portanto, ele se distanciava da sofística não pelos recursos discursivos em si, mas pela faceta de simulacro nos argumentos utilizados. O filósofo grego fazia amplo uso do discurso eloqüente, das ambigüidades do diálogo, no entanto, defendia que a “arte do bem dizer” deveria dizer o Bem.

Mais tarde, Aristóteles atribuiu à retórica os pressupostos da Lógica Clássica, e revalidou determinados paradigmas, amarrando o modus operandi do discurso em seu livro Retórica.

Ainda há de se destacar a contribuição de Cícero e Quintiliano. Eles acrescentam à teorização da ars bene dicendi alguns aspectos pedagógicos (o que veio a colaborar com a transformação da retórica em disciplina escolar); a valorização da beleza oratória e do prazer que ela proporcionava ao ouvinte.

Enfim, para tratarmos de retórica muitos aspectos têm que ser levados em conta, especialmente por haver inúmeros padrões para esse modelo discursivo.

Ainda mais delicada se torna a questão, quando nos voltamos para a parenética cristã. A exortação de Cristo impulsionava seus fiéis à pregação; o discurso seria o veículo da verdade; a palavra deveria ser semeada pelo mundo. Dessa forma, o cristianismo se disseminou através do verbo, contudo, como destaca Ana Lúcia de Oliveira, a igreja, dele se utilizou por doze séculos sem desenvolver nenhum tipo de teoria específica:

“Uma possível explicação encontra-se no princípio dominante, a partir de São Paulo, considerado um dos mais eficazes oradores da história do cristianismo, de que a mensagem divina é tão poderosa que sua mera emissão será persuasiva. Como resultado prático de tal princípio, a referida ausência de teorização por um lapso tão grande de tempo, em que a Igreja se preocupou quase exclusivamente com o que pregar, desprezando o como”. (OLIVEIRA, A. L. (no prelo))

Corrigindo tal equívoco, Santo Agostinho desenvolve um complexo pensamento, que coloca em pauta a importância da linguagem no mundo. O pensador defende que o “signo natural” seria o único verdadeiro. Fazendo a conhecida analogia da fumaça em relação ao fogo, afirma que o signo era um ícone vazio, que remeteria a uma Verdade anterior a ele. Deus, para amparar o homem nessa falta, teria elaborado uma segunda Escritura, com o fim de esclarecê-lo face aos signos divinos. Nesse processo elucidativo surge uma terceira Escritura, que seria justamente a reunião de comentários e glosas acerca desse conjunto de signos.

Retoma-se, então, à problemática do verbo. Agostinho pensando o mundo como um livro a ser decifrado, reflete sobre a validade da utilização dos recursos retóricos para fins de conversão. Cabe destacar que, como esclarece Etienne Gilson, os santos padres da igreja e, mesmo Santo Agostinho, receberam uma educação romana e foram, em sua maioria, antes da vida religiosa, professores de retórica.

Destarte, Agostinho defende que a igreja não poderia abrir mão da arte do bem dizer, dos recursos de persuasão e comunicação para deixa-los em poder dos adversários:

“Quem ousaria dizer a verdade deve enfrentar a mentira com defensores desarmados? Como? Esses oradores que se esforçam por persuadir do falso conseguiriam desde o exórdio, tornar o auditório dócil e benevolente, enquanto os defensores da verdade seriam incapazes disso? [...] Assim, já que a arte da palavra tem um duplo efeito, já que possui o enorme poder de persuadir para o bem e para o mal, por que razão as pessoas honestas não se esforçariam para adquiri-la, com o fim de se alistarem ao serviço da verdade[...]? (AGOSTINHO II, 3 apud OLIVEIRA, A.L. (no prelo))

Além do mais, a Bíblia fazia uso de recursos retóricos. Rica em metáforas, alegorias, visava a conversão do povo. A Escritura precisava ser decifrada e, para isso, seria essencial um jogo entre a linguagem divina e a linguagem dos homens.

Com isso, ocorre um renascimento da retórica. A ampliação do mundo cristão - que se caracteriza por uma descida de Deus até a coletividade dos homens, através de sua realização na história, já que o mundo constituiria Sua primeira Escritura - traz consigo uma perspectiva amplamente discursiva. O verbo ganha absoluto destaque em um contexto onde a realidade empírica é interpretada como a realização da própria retórica divina.

A disciplina Retórica entrou fortemente nos meios eclesiástico e a Igreja passou a fazer largo uso da pregação eloqüente e ornamentada, que não se igualava ao discurso pagão, pois não tinha apenas a autoridade fundadora de Cícero, Aristóteles ou Platão, mas também a autoridade da Verdade do Onipotente .

No Renascimento, a forte tendência humanista fez com que toda essa teorização acerca do verbo saísse da clausura do universo escolástico para o embate com o homem público.

“[...] a característica fundamental do Renascimento é o seu sincretismo, a concepção de uma tradição interrompida mas reencontrada, na religião, na filosofia e na própria concepção do mundo; a importância de tal premissa reside no fato de ter podido religar todo o passado humano, inclusive a cultura pagã greco-romana, com o fio das verdades postuladas pelo cristianismo”. (OLIVEIRA, A. L. (no prelo))

Ocorre, então, uma imensa “reciclagem” dos preceitos retóricos, a sua utilização nas praças, o retorno aos clássicos, tornou obrigatória a comunicação entre tantas tendências. Lia-se Quintiliano à luz de Aristóteles, pensava-se Platão através de Agostinho, e assim por diante.

A arte oratória floresce, então, com uma espécie de “missão social”, a partir do desenvolvimento da pregação cristã, envolta nas curvas das vias públicas, e com o crescimento do Parlamento.

Nesse processo em que a oratória se torna pública e pretende abarcar as almas, retoma-se um traço ciceroniano em que o a figura do orador é enriquecida por grande prestígio, antes só atribuído aos teólogos e aos monges contemplativos. Esse fator veio a ser ratificado pelo concílio de Trento, que concedeu ao pregador o status de “porta-voz divino”, o “imitador de Cristo”. Nos esclarece Fumaroli:

“A rhetorica sacra, filha do Verbo divino e herdeira de sua eficácia, pôde se prevalecer, não apenas de uma memória greco-latina, mas de uma majestosa tradição oratória cristã, de que a Igreja católica se prevalece com orgulho face a uma Reforma que quer se ater apenas à Escritura sagrada” (FUMAROLI.M.: 1995, 205 apud OLIVEIRA, A. L.(no prelo))

A difusão das escolas da Companhia de Jesus, por toda Europa e também pelas colônias, foi determinante para o desenvolvimento da eloqüência. Vieira se forma professor de Retórica nessas escolas e, com certeza, os jesuítas foram aqueles que mais intensamente abraçaram essa comunhão entre teologia e verbo.

No Brasil, o mensageiro divino da Contra Reforma foi o padre Antônio Vieira, que deixou uma imensa fortuna sermonística, nos permitindo perceber o modelo criativo do início de nossa formação letrada. Apesar do jesuíta não ter nos legado um manual do modelo sacramental, escolheu um de seus sermões para servir de introdução aos demais: Sermão da Sexagésima, um meta-sermão que trata da figura do pregador, do modo de pregar, do quê pregar e da relação do verbo divino com o verbo humano.

Nas pregações, o pensamento de Vieira se apresenta de forma fundamentalmente alegórica, pois, para esse pregador, assim como para Agostinho, os signos eram motivados por uma força maior. Nesse sentido, João Adolfo Hansen destaca que a fala projeta-se para fora de sua condição de fala, ocultando, assim, a produção, pois a enunciação seria como a própria verdade divina se concretizando no discurso. Essa eficácia do verbo é um conceito primordial para a doutrina cristã, que crê que o mundo teria sido criado pela palavra. É válido recordar a famosa sentença divina compilada para o Gênesis: “Fiat lux”.

Apesar desse ocultamento da produção, não se deve pressupor que a figura do orador seja esvaziada de significado. Muito pelo contrário, sua enunciação é amplificada de poder justamente por estabelecer esse enlace com o divino. Por eliminar o fator ambíguo da duplicidade ocasionada pela realização de Deus no mundo, o pregador se distingue dos demais. Ele trás a divindade para as vistas dos olhos leigos. Hansen ainda esclarece:

“[...] o ‘discurso engenhoso’ cifra-se em alegorias: estas consistem na exposição de significações abstratas, conceituais, através de figurações roubadas ao sensível, numa espécie de criptografia oferecida a um duplo percurso do olho: interior e figural, a alegoria materializa visualmente, falada e escrita, uma interioridade de autor; lida e ouvida, exige um esforço de tradução para que se descubra seu sentido secreto, encoberto pela exterioridade sensível” (HANSEN, J.A.: 1978, 175)

Notamos que, no sermão, desenha-se uma iconografia. O particular contém o universal. Os signos não são gratuitos, na verdade estão matematicamente dispostos para a revelação transcendente; eles são o sinal, a fumaça que revela o fogo. É possível notar, também, que, apesar da essência ser ultra valorizada nesse contexto, a imanência não tem seu valor reduzido. Deus, ao se concretizar no mundo, o dota de uma imensa profundidade

Quanto ao aspecto de revelação, cabe enfatizar que Vieira não se pretendia profeta ou vidente; como digno pregador, era historiador de uma história oculta, que acompanhava os fatos, e que era datada, personificada, localizada em um tempo e espaço concretos. O sermonista queria a credibilidade científica para suas metafísicas.

A relação do Infinito com o finito era buscada em todas as dimensões humanas. Fazendo uma breve análise do Sermão da Sexagésima, fica nítida a analogia entre o profano e o sagrado. Antonio Vieira, retomando uma parábola ditada por Jesus, inicia a pregação explicitando o valor do verbo, através do subtítulo da obra: “Semen est verbum Dei”. Torna-se claro, então, ao ouvinte ou leitor que a Palavra é tornada concreta para ser semeada.

No decorrer do discurso analisa quatro questões principais acerca da arte de pregar. A primeira focaliza a figura do pregador:

Ecce exijt, qui seminat, seminare. Diz Cristo que saiu o Pregador Evangélico a semear a palavra divina. Bem parece esse texto dos livros de Deus. Não só faz menção do semear, mas faz também do sair: Exijt, porque no dia da messe hão-nos de medir a semeadura , e hão-nos de contar os passos”. (VIEIRA, A. 2001, Tomo I, 29)

Relaciona nitidamente a ação de sair com a missão catequista dos jesuítas pelo Novo Mundo, em contrapartida aos dominicanos que também realizavam pregações, sem saírem da Europa. O orador deveria ser aquele que leva a Palavra a todos os cantos, que decodifica a presença de Deus por todo o planeta.

O segundo item envolveria o modo da pregação. Destarte, se torna imprescindível ressaltar, que, apesar de todo engenho exigido ao processo de decifração do sagrado, o sermão deveria realizar-se de forma absolutamente natural. Através de uma “arte sem arte”, como enfatiza Vieira:

“Compara Cristo o pregar ao semear, porque o semear é uma arte que tem mais de natureza que de arte. [...] Assim há de ser o pregar. Hão de cair as coisas e hão de nascer; tão naturais que vão caindo, tão próprias que vão nascendo”. (VIEIRA. A. 2001: Tomo I, 39)

É esclarecedora a contribuição de Álcir Pécora para a compreensão desse aspecto: a arte de pregar deveria ser aplicada de forma conveniente, adequando as três regras básicas da retórica: a invenção, a elocução e a disposição. Sem a destreza na utilização desses recursos, a palavra não frutificaria, não converteria as almas:

“O trigo do semeador, ainda que caiu quatro vezes, só de três nasceu; para o Sermão vir nascendo, há de ter três modos de cair: há de cair com queda, há de cair com cadência, há de cair com caso”. (VIEIRA. A. 2001: Tomo I, 39)

A terceira questão diria respeito ao quê pregar:

“O Sermão há de ter uma só matéria. Por isso Cristo disse que o lavrador do evangelho não semeara muitos gêneros de sementes, senão uma só: Exijt;qui seminat, seminare semen”. (VIEIRA, A. 2001: Tomo I, 41)

A escolha do tema a ser tratado no sermão é de suma importância. Apenas o orador que é porta voz divino poderá ver nas coisas do mundo a luz do criador. Após encontrá-la: decifrá-la cuidadosamente, para que a palavra de Deus, que é semente, possa realmente dar frutos.

“Há de tomar o pregador de uma só matéria, há de defini-la, de prová-la com a Escritura, há de declará-la com a razão, há de confirmá-la com o exemplo, há de amplificá-la com as causas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências que se hão de seguir, com os inconvenientes que se devem evitar, há de responder às dúvidas, há de satisfazer as dificuldades, há de impugnar e refutar com toda a força da eloqüência e dos argumentos contrários,e depois disto há de colher, há de apertar, há de concluir, há de persuadir, há de acabar. Isto é sermão, isto é pregar, e o que não é isto, é falar mais alto”. (VIEIRA, A. 2001: Tomo I, 42)

O quarto ponto tratado no sermão pode ser constatado em todo texto, assim como em todos os princípios que dão base à arte de pregar: a relação do verbo humano com o verbo divino. Como os fatos são, desde sempre, expressões de Deus esperando serem decifradas, os sermões são a forma de elucidação desse Sacramento. Sendo assim, o pregador tem que ser eficaz nessa transposição de verdades.

“Sabeis (Cristãos) a causa por que se faz, hoje, tão pouco fruto com tantas pregações? É porque as palavras dos pregadores são palavras, mas não são palavras de Deus. Falo do que ordinariamente se ouve. A palavra de Deus (como dizia) é tão poderosa, tão eficaz, que não só na boa terra faz fruto, mas até nas pedras e nos espinhos nascem”. (VIEIRA, A. 2001: Tomo I, 46)

Vieira reclama um compromisso que deveria ser assumido por todo homem de Deus: a pregação engajada, a negação dos signos vazios, a realização de uma constante epifania.

O referido jesuíta defendia e utilizava largamente os recursos concedidos pela arte retórica, com fim de persuadir os seus ouvintes, para levá-los ao “arrebatamento” da fé. No entanto, condenava os oradores que ornavam o seu discurso esquecendo-se da fundamentação que advinha da Providência.

Ao preparar a edição de seus sermões, deixa clara sua motivação na enunciação, afirmando no prólogo: “Se tirares daqui algum proveito espiritual (que é o que só pretendo) roga-me a Deus pela vida” (1959, LXI). Contudo não se deve entender que essa persuasão seja fundamentada unicamente pelo divino. No século XVII, amar a Deus significava obedecer à Igreja, tendo-a sempre como a intermediária entre o céu e a terra.

Tendo tomado posse das técnicas discursivas desenvolvidas ao longo dos séculos, a instituição religiosa também se apossou de uma série de aparatos e de mecanismos eficientes de poder. Sabiamente passou a utilizar recursos que extrapolavam o campo verbal. Desse modo, nada era gratuito no momento dos sermões: a ornamentação, a platéia, ou mais que isso, a própria arquitetura das Igrejas traduzia o ambiente ideal para a ascese.

A distribuição das luzes era feita da mesma forma como nos palcos de teatro, os contrastes entre a penumbra e o fluxo de luz que da cúpula se derramava sobre o altar eram um conjunto perfeito de atração para os visitantes. Inúmeros preparativos para levar a momentos de fé jubilosa, para mover e convencer.

Assim, o púlpito constituía uma peça-chave na oratória cristã, para onde convergiam todas as atenções; era o lugar central da enunciação. Os recursos teatrais eram admitidos pela Contra-Reforma; contudo, deveriam ser edificantes “como propaganda política de seus objetivos” (HANSEN, J.A: 1978:189).

O orador não se misturava com a platéia, seu lugar era marcado pelo ato de fala e pela observação, enquanto os que assistem apenas notam e são observados. A locução é privativa do pregador: ele ocupa o púlpito devidamente montado para sua enunciação, é o ser dotado da proeminente missão de mensageiro divino, é aquele que escolhe os trechos do Evangelho que o determinado público necessita ouvir, e mais: é o gerenciador das devidas analogias, que permitirão tornar compreensíveis as decisões da Providência para a vida dos homens.

Todavia, esse desequilíbrio de poderes entre o púlpito e a platéia não anula a questão relacional entre eles; a tradição sacra determina o público como alvo.

Todas essas características que envolvem o momento de enunciação do Sermão nos permitem perceber uma relação de dominação, em que aquele que controla o discurso exerce uma função privilegiada em relação aos outros e que esse discurso sempre está a serviço de um poder.

Michel Foucault, alguns séculos após a Contra-Reforma, realizou profundas análises acerca da função do verbo na sociedade ocidental, e acabou nos elucidando várias questões sobre processos específicos presentes nas relações humanas desde o início dos tempos, e, inclusive, no século XVII. Afirma o referido filósofo:

Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder. Nisto não há nada de espantoso, visto que o discurso - como a psicanálise nos mostrou - não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo; e visto que - isto a história não cessa de nos ensinar- o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominação, mas aquilo por que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar. (Foucault, M.: 2000, p.10)

Quando a igreja percebeu o poder que consistia o discurso, absorveu e transformou teorias que, antes, criticava. Os principais procedimentos da oratória pagã são reatualizados e passam a fazer parte de um conjunto semântico - formado pela teologia, pela política e, finalmente, pela retórica - que esperava sua plena realização na história. E, como vimos, a obra de Antonio Vieira compartilhava desses preceitos, hoje tão distantes das atuais configurações das produções artísticas.

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