José Gomes Ferreira – O gosto de falar de si
numa visita guiada ao seu atelier de escrita

Virgínia Sá

 

O objectivo do presente trabalho, como se depreende do seu título, é a reconstituição da história da escrita do poema XIX da série “Província” da autoria de José Gomes Ferreira, inserido no livro Poeta Militante II, de acordo com os princípios da genética textual. No sentido de complementar e ilustrar/explicitar a análise proposta recorrer-se-á aos conceitos de criação poética, crítica genética, à relação poeta/poema e ainda a alguns textos do autor que se julga serem reflexões sobre a poesia, ou seja, se apresentam como metalinguagem.

1 – O Universo da criação poética

Ainda que sejam diversos os textos em que José Gomes Ferreira reflecte sobre a poesia, A Memória das Palavras constitui uma confissão muito significativa relativamente ao universo da criação poética, visível no passo a seguir apresentado:

Cuido não andar longe da verdade se afirmar que a minha aventura poética começou aí por volta de 1908, tinha eu os meus oito anos no dia em que reparei (ou procedi como se reparasse) na existência das palavras extraídas da vaza algaraviada comum por homens estranhos, incumbidos da missão especial de dizerem o que mais ninguém ousava. (...).[1]

De facto, além de ilustrar a entrada do escritor no campo da comunicação erótica, este excerto deixa antever a presença de uma entidade (homens estranhos) que tem uma missão especial na arte de dizer e na arte de criar e anuncia o nascimento do criador da poesia.

José Gomes Ferreira corporiza extraordinariamente a ideia de um criador laborioso, como atesta o seu trabalho sobre os materiais poéticos. Se em 1908 despertou para a existência da poesia, em 1962 consente o contacto com o seu processo de feitura de poesia.

Esta manhã acordei emaranhado na nebulosa de um poema. E corri a taquigrafá-lo.

Como de costume, porém, mal me acomodei à mesa, parei a tremer diante do papel em branco – receoso, hesitante, sarrabiscos de mulheres nuas com cabelos longos nas margens...

Aprendiz...

E desatei a cantar, com boca no coração quente.

A poesia é assim. Uma espécie de maçonaria que só comporta a possibilidade de um grau único: o de aprendiz (Ferreira, 1965)[2].

Para o poeta, o acto de criar é um acto violento e de eterna insatisfação; ele é um iniciado, mas um eterno aprendiz.

2- Genética textual e criação poética

A todo este processo subjaz a ideia de uma criação por etapas, por momentos de escrita, por leituras, por reescritas na procura constante do melhor verso.

Ir ao encontro dessa caminhada do poema é simultaneamente desafiante, por conduzir aos bastidores da escrita e aliciante, porque permite estabelecer relações de intimidade com o criador e de quase cumplicidade com o acto de criar.

A crítica genética propicia esse imiscuir no universo poético, porque procura o inconsciente do texto e a sua pulsação criativa. Nessa busca, entra em confronto com a tradição filológica que considerava o working progress de uma escrita como o caminho para um aperfeiçoamento.

Na verdade, a crítica genética contraria esse sentido teleológico da escrita, pois não se preocupa só com o texto produzido, mas centraliza-se, sobretudo, nos dados de produção de um texto, nos mecanismos que presidiram à sua elaboração. O seu objecto são os manuscritos literários, portadores dos traços de uma dinâmica, operacionalizada entre o texto e o seu devir, que, muitas vezes, foram desconsiderados pelo autor, e que provam as suas infelicidades, as suas hesitações, mas também os seus golpes de génio.

Nestes manuscritos literários, está presente o texto e aquilo que é considerado ante-texto: os esquemas, os esboços, os desenhos, os apontamentos e os rascunhos. Esta panóplia de documentos permite constituir o dossier genético, do qual fazem parte os textos agrupados sob o nome de génese interna e de génese externa.

A crítica genética responsabiliza-se ainda pela apresentação do corpus, contendo todas as campanhas de escrita do texto/obra imediatamente antes de estar “prêt-à-tirer”, e pelo seu curso de escrita, através de uma série de hipóteses que vão sendo levantadas e justificadas e vêm historiadas no aparato genético. Este deve albergar todas as informações pertinentes que esclareçam a história da criação do texto e dêem conta do trabalho do editor. Isto permitirá ao leitor aperceber-se igualmente do percurso que fez o editor, das suas opções, das suas rejeições, dando-lhe meios para formular juízos de valor e até discordar do que foi concluído.

3- O poema XIX seguindo a crítica genética

Este trabalho propõe-se realizar o percurso sugerido pela genética textual, seguindo o ‘arquivo íntimo[3] de José Gomes Ferreira.

3.1- Do biográfico ao poético em José Gomes Ferreira

A entrada no seu Universo Poético será, porém, precedida de uma incursão no seu Universo Biográfico. Como o autor não gosta que se escarafunche na sua vida, no anedótico do seu passado pessoal, tão distante e desfeito[4], mas há necessidade de conhecer alguns passos seus para entender a sua produção poética, deixar-se-á que seja o próprio o guia do seu percurso poético:

Presumo que não mentirei se confessar que muito antes de conquistar a Poesia verdadeira com sabor a abismo que mais tarde me fincou os dedos de esqueleto de névoa no pescoço me deixei atrair pela sedução da figura social do Poeta ...[5]

No entanto, uma dúvida se mantinha no fazedor de poesia: A dor de saber se sou poeta[6]. Somente aliviada em Maio de 1931 como confessa:

Na noite de 8 de Maio de 1931, num segundo andar da Rua Marquês de Fronteira, encontrei, finalmente, a expressão autêntica do poeta autêntico, há tanto procurada![7]

Outro acontecimento marcante na vida do poeta foi a descoberta do Senhor da Serra ocorrida em 1945:

Nesse Verão, como lhe constasse que eu ainda não tinha encontrado poiso no campo para convalescer, Fernando Lopes Graça propôs-me:

-               Venha comigo para o Senhor da Serra, perto de Semide...

(...)

Combinou-se tudo e, no princípio de Setembro, cheguei ao Senhor da Serra, após a escalada da Trémoa com a menina Susaninha, filha da Srª Rosinha, à frente, de mala à cabeça...A mala onde eu metera à pressa algumas mão –cheias de poemas extraídos do porão de palavras do meu navio em busca de naufrágio total.[8]

Será neste espaço privilegiado que José Gomes Ferreira iniciará o processo de organização da sua produção poética:

E, ali mesmo, no Senhor da Serra organizei a primeira série com o título de Província. Durante esse trabalho de classificação descobri que toda a minha poesia acompanhava o correr dos tempos e era como que uma reacção e comentário poético do que se passara nos últimos anos no mundo (no mundo de fora e no meu, de dentro): amores, revoluções, férias, idas à praia, guerra, angústias, alegrias, problemas, pontapés nas pedras, uma vizinha de “eléctrico”... afinal que era eu senão um Poeta Militante de Poesia, claro)?[9]

Assim se explica a preocupação constante do poeta com os seus versos:

... os poemas não dormiam na paz poeirenta da gaveta das palavras mortas. Volta e meia ia mexer-lhes para verificar se respiravam. E depois juntar-lhes sucessivas estratificações de sombras, imagens e imprevistos, no constante esforço de conservar a verdade viva e atenta[10].

3.2. Proposta metodológica para abordagem do poema

Com profunda gratidão ao autor por ter conservado as pistas materiais da sua escrita[11], dar-se-á em seguida conta de uma das suas incursões no mundo das palavras, que só aparentemente estão mortas, pois aguardam impacientes uma visita, seguramente com a mesma impaciência com que esperaram a do seu criador.

José Gomes Ferreira será revisitado através da busca do traçado da sua escrita, da mão que escreve o poema XIX da série “Província”. Procurar-se-á delimitar os diferentes traçados que o compõem, partindo da campanha que se julga ser a mais distante no tempo. A partir dessa lição, estabelecer-se-á uma estratificação/cronologia interna das supressões/acrescentos/variações para os quais se apresentarão razões explicativas ou somente hipóteses, a serem ou não confirmadas. Todas as campanhas de escrita que forem diagnosticadas serão trabalhadas desde o primeiro esboço até à última versão, aquela que o autor consideraria “prêt-à--tirer”. Após o estabelecimento conjectural desse texto, far-se-á um estudo comparativo com a edição impressa do mesmo e serão equacionadas, mais uma vez, as razões que terão presidido às alterações verificadas.

3.3. Nove Campanhas para um Manuscrito

O manuscrito do Poema XIX, que aparecerá com a sigla Ms A[12] , encontra-se em duas folhas seguidas do mesmo caderno[13], uma das quais contém outro poema. Parece lógico afirmar que o Poema XXIV de “Província”, registado na página da direita, foi escrito durante o processo de escrita/reescrita do poema XIX da mesma série, porque a campanha do poema em análise aparece registada na parte inferior da página, ou seja, após o texto do poema XXIV.

No que diz respeito a este manuscrito, foram detectadas nove campanhas cujas variantes encontradas em relação à campanha anterior ou a outras ainda mais distantes são passíveis de explicitação através do aparato genético proposto.

3.3.1. MS A1


 

Aqui, neste monte,

vivia uma sereia

que veio do mar

numa melopeia

agarrada ao silêncio do luar.

 

 

 

 

Nas noites de lua cheia

saia da toca

e abria a boca

ao + da fonte

para cantar.

E toda a gente parava a ouví-la,

a sua voz tão doce

de prata e de argila.

 

Enquanto das árvores

saiam, a dançar,

ninfas a dançarem em fila...

 

Mas um dia calou-se

de tanto cantar

numa voz de viuva

que chora.


 

Os deuses que, de acordo, com Valéry, Les dieux, gracieusement, nous donnent pour rien tel premier vers, mais c’est à nous de façonner le second...[14], foram mais generosos com José Gomes Ferreira, pois não lhe deram só o primeiro verso, entregaram-lhe toda uma estrofe, que se manterá manter incólume durante todas as campanhas detectadas no manuscrito.

Na segunda estrofe, verifica-se um silêncio do manuscrito[15]: o vocábulo foi riscado com tal veemência que anula a possibilidade de decifração. Ainda nesta estrofe, há a assinalar o acento gráfico não necessário da forma verbal ouví-la (não corrigido em nenhuma das campanhas de escrita). Verifica-se o contrário na forma verbal saia e na palavra viuva: em ambas se acusa a falta do acento (não corrigido em nenhuma das campanhas de escrita).

3.3.2. Ms A2


 

Nas noites de lua cheia

saia da toca

e colava a boca

ao silêncio da fonte

para cantar.

E toda a gente parava a ouví-la,

a sua voz tão doce

de prata e de argila.

Enquanto das árvores

saiam, a dançar,

ninfas em fila...

 

Mas um dia calou-se

a sua voz de viuva

que chora.

 

E agora?

Onde estás sereia?

Deitada nalguma nuvem,

a dormir, no ar?

Quando desces de novo, a terra,

nos cabelos da chuva

e do luar?


 

O poeta começa a reescrita do poema no terceiro verso da segunda estrofe, rasura abria e entrelinha colava. Esta correcção da forma verbal remete para o abandono do óbvio, representa uma fuga à vulgaridade e funciona como uma entrada no mundo simbólico, intensificando a proximidade entre a sereia e a fonte.

Sobre aquele que se considerou ser um silêncio do manuscrito, o poeta escreve, curiosamente, o substantivo silêncio, palavra-chave da sua poética[16], que associada ao substantivo fonte cria uma metáfora/paradoxo.

Ainda nesta estrofe, o poeta risca (sem ocultar) a expressão para cantar, acrescentando a preposição de, para a abandonar de imediato e reescrever a expressão para cantar no enfiamento do verso.

Na estrofe seguinte, há a assinalar uma supressão do terceiro verso a dançarem que, a ser mantido, perturbava o ritmo da estrofe, visto ser um verso com oito sílabas métricas (enquanto o primeiro e o segundo tinham cinco sílabas métricas), pleonástico.

A quarta estrofe, por sua vez, foi aquela que mais intervenções sofreu. O poeta riscou com um traço contínuo o segundo, terceiro e quarto versos. Acrescentou, no entanto, logo a seguir, dois versos, correspondendo o segundo ao quarto riscado previamente. Trata-se, pois, da recuperação de um fragmento alvo de excisão, até porque o traço fino utilizado deixava antever um reaproveitamento. Pertinente nesta alteração é o reconhecimento da osmose entre a sereia e a viúva, porque a voz da sereia é agora a voz da viúva que chora. O canto da sereia é identificado com dor e sofrimento.

Atendendo à mancha gráfica do texto, parece plausível afirmar que só quando a quarta estrofe sofre a segunda campanha, o poema continua, iniciando-se uma quinta estrofe com duas interrogações (a primeira marca uma ruptura em relação ao passado e a segunda dirige uma interpelação à sereia) que nos transpõem para um universo mais interventivo da poética do autor, provando que o elemento do maravilhoso - a sereia - não só é necessário no mundo dos contos como também no mundo real. Há uma reabilitação da tradição, não enquanto elemento paralizante, mas enquanto estímulo para a mudança. Nesta estrofe, regista-se a ausência do acento no a e na expressão a terra, testemunho da falta de paciência do poeta para estas irrelevâncias perturbadoras do acto criativo.

3.3.3. Ms A3


 

Mas um dia a sua voz

longa como um veu de viu

calou-se, calou-se.

 

 

 

Onde estás agora sereia?

Deitada nalguma nuvem,

a dormir, no ar?

Quando desces de novo, a terra,

nos cabelos da chuva

ou agarrada ao luar?


 

Na quarta estrofe, o poeta eliminou a forma verbal calou-se do primeiro verso, através de um traço ondulado, e entrelinhou sob o rasurado o sintagma nominal a sua voz. Acrescentou ainda à esquerda do seu texto, entre os versos quarto e quinto (já riscados), o sintagma adverbial longa como um veu de viu. Suprimiu também os quinto e sexto versos e entrelinhou à esquerda a forma verbal calou-se, calou-se. Ao abandonar ainda a ideia de choro explícito, aumentou a poeticidade do texto através do recurso à comparação e à repetição.

Na quinta estrofe, o poeta suprime o primeiro verso, riscando-o, e retoma um dos elementos abandonados, o advérbio agora (valorização do momento presente), entrelinhando-o na diagonal. Reformula também o verso final e do luar e altera-o para ou agarrada ao luar, retomando paralelisticamente, a ideia da primeira estrofe uma sereia (...) agarrada ao silêncio do luar. Ainda que agora desconheça o paradeiro da sereia, pretende que ela regresse e que este regresso seja semelhante à sua primeira entrada no mundo terreno.

3.3.4. Ms A4

Deitada nalguma nuvem,

a dormir, no ar?

Quando desces de novo, a terra,

nos cabelos da chuva

ou agarrada ao luar?

O poeta risca o primeiro verso da quinta estrofe, mas uma vez que se mantém legível o que foi rasurado, e dada a importância do verso para provar a oposição do passado/ presente, vislumbra-se uma hipótese de reaproveitamento do que foi abandonado.

Há ainda a sublinhar a expressão adverbial para onde, acrescentada do lado esquerdo da quinta estrofe, no enfiamento dos versos rasurados, que fica registada como um apontamento sem consequências posteriores, embora possa ter surgido na mente do criador como alternativa para a oração com valor adverbial onde estás, retirada.

3.3.5. Ms A5


 

Mas um dia a sua voz

longa como um veu

+ longo de vuiva,

de + brando calou-se

num morrer de chuva

Onde estás agora, sereia?

A dormir, no ar

deitada nalguma nuvem

 


 

Quando chega ao fim da página, o poeta opta por continuar a escrever o poema na página da direita, onde já escrevera treze versos do poema que classifica como XXIV, uma vez que só a parte inferior da folha é por ele utilizada para reescrever a quarta e quinta estrofes, bem como iniciar a sexta.

O poeta copia o primeiro verso da quarta estrofe, não o eliminando na página anterior, mas reformula os versos seguintes. Intensifica a comparação registada na versão anterior, acentuando o arrastamento da voz longa como um veu longo de viuva. Esta repetição do adjectivo alonga o ritmo do poema, prolongando o canto da sereia, pois funciona como uma exemplificação do mesmo. Os sons nasais associados ao canto são retomados no momento da sua extinção, através da expressão de brando que se associa à forma verbal calou-se. Surge uma combinação interessante: a sereia que veio do mar numa melopeia extingue a sua voz num morrer de chuva. Verifica-se a ligação dos dois elementos - o mar (local de proveniência da sereia) e o céu (local do seu desaparecimento) -, ambos unidos pelo elemento aquático. Há ainda a registar nesta campanha dois silêncios do manuscrito, cuja decifração não é pertinente para a sua compreensão, bem como o abandono da contracção no, rasurado no quinto verso, que não é determinante para o seu entendimento.

Ocorre também a reposição da interpelação onde estás agora, sereia? que tinha sido rasurada na campanha anterior (o traço subtil já deixava adivinhar que não iria ser esquecida).

Ainda nesta estrofe, o poeta não utiliza o sinal gráfico da interrogação no último verso, porque talvez tenha sentido repentinamente necessidade de reformular a estrofe anterior.

Os versos finais são abandonados. Demasiado explicativos e concretos, retirariam ao poema alguma da sua magia, atenuando o valor das metáforas anteriores.

3.3.6. Ms A6


 

Mas um dia a sua voz

longa como um veu

longo de vuiva,

de brando calou-se

no ceu.

Onde estás agora, sereia?

A dormir, no ar?

deitada nalguma nuvem

 


 

E, assim, na sexta campanha, o poeta substitui num morrer de chuva pelo no ceu, mostrando, mais uma vez, a intimidade que une o mar e o céu : um remete para o aparecimento da sereia, o outro para o seu desaparecimento.

3.3.7. Ms A7


 

Mas um dia a sua voz

longa como um veu

longo de vuiva,

de brando calou-se

no ceu / no sol dum ceu

sem chuva.

Onde estás agora, sereia?

A dormir, no ar

deitada nalguma nuvem

 

 

 

Vem. Sai da fossa

em que te encobres

Sereia de voz de água langue

Que eu, ao menos

 


 

O poeta reformula novamente a quarta estrofe e desdobra o verso final, recuperando elementos que tinham sido banidos do seu poema. Recorre, então, novamente à chuva, agora para registar a sua ausência, o que vaticina problemas para a sereia, visto esta necessitar de água. De facto,  ela calou-se, porque estava no sol de um céu sem chuva ( estes elementos foram acrescentados à direita dos versos que vieram substituir). A manutenção do verso no céu constitui uma opção para a qual não se conseguiu descortinar uma razão ao longo da presente análise.

Só no fim desta campanha foi possível ao poeta escrever a sexta estrofe. Pela distribuição das estrofes na página, percebe-se que as alterações desta campanha não poderiam ter acontecido nos locais onde aparecem registadas se houvesse uma estrofe previamente escrita.

O poeta escreve a sexta estrofe, mas não a termina, porque uma questão material ( a ausência de papel ) o obriga a voltar à página onde tinha registado as outras estrofes do poema. Assim, vê a totalidade do poema e retoma a sua escrita no canto superior esquerdo da folha do caderno onde o tinha iniciado (a reescrita desta estrofe insere-se já na oitava campanha).

3.3.8. Ms A8


 

Vem! Sai dessa fossa

em que encobres

sereia de voz de agua lan

 

Que / par que eu, ao menos de te ouça

nas lagrimas do pobres,

não de


 

Na reescrita da estrofe supracitada o poeta introduz, no primeiro verso, a seguir à forma imperativa do verbo vir, um ponto de exclamação, anulando o ponto final da campanha anterior, o que confere ao verso maior emotividade.

Sente-se que é uma escrita de jacto, pois o autor omite no segundo verso o pronome te, torna ilegível o vocábulo seguinte e não termina a palavra langue. Talvez seja a revelação de desinteresse pelas terminações daquilo que é conhecido, ou velocidade gráfica, ou um problema decorrente das emendas em curso de redacção.

Aquele que era o verso final na campanha anterior (e que não tinha seguimento) é separado da estrofe-mãe e constitui o primeiro verso de uma nova estrofe.

O que (de sentido optativo) é posto em confronto com para que (indicador de finalidade) e ambos são deixados no poema. Regista-se ainda a ausência de concordância entre a contracção do e do substantivo lagrimas (sem acento).

3.3.9. Ms A9

Que / par que eu, ao nos de te ouça

nas lagrimas do pobres,

que são de sangue!

O autor completa a última estrofe acrescentando uma ideia pertinente da sua poesia - a defesa dos oprimidos -, lembrando as lágrimas do mundo e aderindo à dor humana anteriormente camuflada no seu poema através da referência a um elemento encantatório, a sereia.

Para que seja possível uma visão global do texto final, apresenta-se seguidamente o Ms A9 na sua totalidade.


 

Aqui, neste monte,

vivia uma sereia

que veio do mar

numa melopeia

agarrada ao silêncio do luar.

 

Nas noites de lua cheia

saia da toca

e colava a boca

ao silêncio da fonte

para cantar.

E toda a gente parava a ouví-la,

a sua voz tão doce

de prata e de argila.

 

Enquanto das árvores

saiam, a dançar,

ninfas em fila...

 

Mas um dia a sua voz

longa como um veu

longo de vuiva,

de brando calou-se

no ceu / no sol dum ceu

sem chuva.

 

Onde estás agora, sereia?

A dormir, no ar

deitada nalguma nuvem

 

Vem! Sai dessa fossa

em que encobres

sereia de voz de agua lan

 

Que / par que eu, ao menos de te ouça

nas lagrimas do pobres,

que são de sangue!


 

4. Comparação do manuscrito com a edição impressa

Findo o itinerário genético do manuscrito, procede-se, de seguida, à enunciação das alterações existentes na edição impressa[17], abaixo transcrita:

XIX

(Quase-romance da Fonte do Senhor da

Serra, agora seca. Já nem a menina Susana

vai buscar água, de bilha à cabeça. E que

bom rimar em “ar”!)

 

Aqui neste monte

vivia uma sereia

que veio do mar

agarrada à melopeia

da espuma de ser-luar

 

Nas noites de lua –cheia

fugia da toca e colava a boca

ao silêncio da fonte

-          para fingir de cantar.

 

E toda a gente parava a ouvi-la,

essa voz tão doce

de prata e argila.

Enquanto da árvores

saíam em fila

luas de sol a dançar...

 

Mas um dia a sua voz,

Longa como um véu de viúva,

de brando calou-se

na boca da chuva.

 

E ninguém mais a ouviu cantar.

 

Onde estás agora, sereia?

 

Dormida nalguma nuvem

por dentro do Ar?

 

A acender as raízes

a prata azul do pomar?

 

Porque não vens até nós,

sereia de água langue,

do poço onde te encobres?

 

-Que eu ao menos ouça a tua voz

nas lágrimas de sangue

dos pobres.[18]

O poeta reequaciona o seu poema, introduzindo-lhe uma epígrafe que surge entre parêntesis e que pode funcionar como um aparte, uma pista de leitura para melhor se compreender o texto que se segue ou, ainda, remeter para um certo distanciamento em relação a esse mesmo texto, funcionando, assim, como um desabafo do foro íntimo. José Gomes Ferreira fala de vivências reais[19], das quais partiu para produzir o poema, e anuncia as rimas em ar, comprovadas pelos vocábulos: mar, luar, dançar, cantar, ar e pomar, que povoam a composição poética.

Relendo a primeira estrofe, há a registar a supressão das vírgulas, o que permite uma leitura mais rápida, mais próxima do tom oral dos romances populares. Por outro lado, a relação da sereia com a melopeia foi intensificada, pois aquela não veio do mar numa melopeia, mas agarrada à melopeia, reafirmando-se, assim, a indissociabilidade da sereia e do seu canto.

Parece haver também nestes versos finais uma espécie de interseccionismo: a melopeia (que remete para a audição) aparece associada à espuma (que remete para o tacto) e ao luar (que remete para a visão). Ainda nesta estrofe, o ritmo foi uniformizado com a redução do número de sílabas métricas do último verso, o que aproxima o texto da vertente tradicional da poesia portuguesa(cf. redondilha menor nos três primeiros versos e redondilha maior nos dois últimos).

Na segunda estrofe, o poeta acentua o carácter rebelde da sereia ao substituir a forma verbal saia por fugia, pois esta mostra a sua irreverência, o seu inconformismo, o desejo de fuga em direcção à liberdade, a recusa do obscurantismo, da escuridão. Estes sentimentos são acentuados no verso final para fingir de cantar que nos remete, por um lado, para o universo infantil do faz-de-conta, mas sugere, por outro, ou o carácter simulador das sereias[20], que encantavam os marinheiros para os enredar/envolver, ou o trabalho de intervenção do poeta que finge de cantar para denunciar ao mesmo tempo. Há também que realçar uma reorganização estrófica: a segunda estrofe passa a terminar em para fingir de cantar e os últimos três versos são transpostos para o início da terceira estrofe.

Nesta estrofe, é substituído o determinante possessivo sua, associado a voz , pelo determinante demonstrativo essa, que julgo revelar uma relação de intimidade partilhada e uma quase omnipresença do canto intemporal da sereia. Já no verso final da estrofe não são as ninfas que dançam, mas as luas de sol; verifica-se, uma vez mais, a interpenetração de elementos que, à partida, não poderiam coexistir: o sol e a lua. Esta junção pode, contudo, querer sugerir o momento em que ambos se cruzam por breves instantes e que corresponde ao espaço de tempo em que o canto da sereia se espalha no ar: a madrugada. Há, portanto, a preocupação com o enquadramento cénico do espaço narrativo. A sereia que veio do mar, agarrada à melopeia da espuma de ser luar, numa noite de lua cheia. Constrói-se, pois, um ambiente romântico de cariz mítico que entra em ruptura com o neo-realismo.

A quarta estrofe sofreu, nesta versão final, uma contracção, tendo perdido o verso longo de viuva, que acentuava, pleonasticamente, a comparação; os versos no ceu/no sol de um ceu / sem chuva foram substituídos por na boca da chuva. O poeta humaniza a natureza e concede-lhe o poder de falar, de intervir. Neste contexto, o substantivo boca torna-se um elemento recorrente - a sereia já colava a boca ao silêncio da fonte –e simboliza a vontade de denunciar, materializada metonimicamente na boca.[21]

Surge, na quinta estrofe, um alargamento da massa textual, com a inclusão de um monóstico, e ninguém mais a ouviu cantar , e assim se finaliza o quase-romance e se faz a ponte para o momento presente. O sonho já não existe, a sereia calou-se. Antigamente, toda a gente a ouvia, agora ninguém a ouve. A situação antitética dá conta da oposição entre o passado e o presente.

Daí a questão pertinente do poeta, na sexta estrofe, onde estás agora, sereia?, que ele isola, retirando-a da estrofe onde estivera até então. Assim mostra a sua preocupação com o paradeiro da sereia e com a ausência/impossibilidade da capacidade de sonhar.

Essa preocupação é amplamente demonstrada pelas hipóteses aventadas nas sétima e oitava estrofes sobre os possíveis paradeiros da sereia.

Na sétima estrofe, a interrogação remete-nos para um espaço etéreo e para uma intersecção do ar com a sereia.

Na oitava estrofe, não parece haver uma lógica sintáctica. De facto, embora, à partida, se pudesse prever que a interrogação dissesse respeito uma vez mais à sereia, a ausência de pontuação após o vocábulo raízes instaura como sujeito activo desse acender a prata azul do pomar. Cruzam-se, uma vez mais, numa espécie de interseccionismo, elementos referentes ao fogo, à água, à terra e ao ar.

Na nona estrofe, o poeta altera o sentido do apelo da versão anterior. Nesta, o apelo era explícito; na edição impressa, é realizado através de um convite subtil: Porque não vens...? Faz ainda a sereia voltar ao elemento aquático ( sereia de água langue ), que está estagnado, doente, não permitindo a vida.

E embora o poeta substitua o elemento disfórico da última versão manuscrita ( fossa ) pelo substantivo poço, que se enquadra mais facilmente no universo da histórias de encantar, permanece ainda o encerramento da sereia e a impossibilidade do seu canto.

Na estrofe que encerra o poema, o poeta formula um desejo: que eu ao menos ouça a tua voz. Poderia, assim, distinguir-se de todos os outros homens, obtendo por essa via um estatuto privilegiado. O poeta ouve sinestesicamente a voz da sereia nas lágrimas de sangue dos pobres, ou seja, inspira-se no universo do sofrimento e canta a partir dele, numa tentativa de encontrar uma solução, um remédio para minorar os efeitos do sofrimento.

5. Conclusão

O percurso de reconstituição da história da escrita do Poema XIX, da série “Província”, permite reter, em forma de conclusão, duas das principais ideias que serviram de alicerce à proposta de trabalho aqui apresentada.

Por um lado, reitera-se a dominância temática da articulação entre o ‘eu’ social e o ‘eu’ individual continuamente convocada na obra de José Gomes Ferreira. De facto, a comparação do manuscrito com a versão impressa demonstra que

... das duas mundividências opostas que derivam da oposição eu social/eu individual, dir-se-ia resultarem duas atitudes poéticas diferentes: uma correspondendo ao eu individual, aparentemente enfeudada a uma cosmovisão de tipo romântico, enquanto a que resulta do eu social a uma visão neo-realista.[22]

Por outro lado, a análise do poema justifica plenamente a articulação dos elementos de génese interna e de génese externa em busca do poeta e da sua produção proposta pela genética textual, confirmando igualmente a pertinência dos atributos com que no início foi caracterizado o acto de criação poética.

No seu conjunto, as pistas seguidas ao longo deste percurso desembocam todas, para o autor do presente estudo, na certeza, partilhada com Mário Dionísio, de que

É um prazer sem igual desmontar este edifício laboriosamente construído, fazer a viagem ao contrário, ir ao encontro dos possíveis pontos de partida, desconfiar dos truques do poeta, repor certas palavras onde elas talvez tenham começado por estar, pôr lá as que faltam, tirar outras cuja presença parece suspeita, reduzir tudo à banalidade inicial. E ver, então, sem possibilidade de refutação, como nada é gratuito nesta poesia excepcional, nada indiferente, nada enfeite ou só efeito.[23]

6. Referências bibliográficas

BROWNING, Robert (1990): O flautista de Hamelin. Porto. Edinter.

CASTRO, Ivo (1980-1981): A Tragédia da Rua das Flores ou a arte de Editar Os Manuscritos Autógrafos. in Boletim de Filologia, Tomo XXVI, Fascículos 1-4. Lisboa. Centro de Linguística da Universidade de Lisboa.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, A (1982): Dicionário de Símbolos. Paris. Editions Robert Laffont S. A. et Èditions Jupiter.

DIONISIO, Mário (1990): Prefácio. in Poeta Militante I. 4ª edição. Lisboa. Publicações D. Quixote: 11-34.

FERREIRA, José G. (1990): O Poeta Militante I. 4ª edição. Lisboa. Publicações D. Quixote.

FERREIRA, José G. (1991a): A Memória das Palavras ou o Gosto de Falar de Mim. 5ª edição. Lisboa. Publicações D. Quixote.

FERREIRA, José G. (1991b): O Poeta Militante II. 4ª edição. Lisboa. Publicações D. Quixote.

FERREIRA, Raúl (2001): José Gomes Ferreira - Fotobiografia. 1ª edição. Lisboa. Publicações D. Quixote.

TORRES, Alexandre P. (1990): Ensaios Escolhidos II – Estudos sobre as Literaturas de Língua Portuguesa. Lisboa. Editorial Caminho.

VALÉRY, Paul (1978): Au sujet D’Adonis, Vari´rté I et II. Paris. Gallimard

VOUGA, Vera (1992): Oitavo dia da criação. in Revista da Faculdade de Letras do Porto, II série, volume IX: 273-297.


 

 

Anexo

 


 

[1] FERREIRA (1991a:11).

[2] Citado por FERREIRA (2001:123 ).

[3] ibidem:99.

[4] Cf. ibidem: 14.

[5] FERREIRA (1991a: 14).

[6] Ibidem: 15.

[7] Citado por TORRES (1990: 127-128).

[8] FERREIRA (1991a: 181-182).

[9] Citado por TORRES (1990: 129-130).

[10] Citado por FERREIRA (2001: 135).

[11] VOUGA (1992: 275).

[12] Leitura das siglas utilizadas: Ms A – versão manuscrita

 Ms A1 – Ms A9 – campanhas de escrita detectadas

 + - silêncio do manuscrito

 Ed. Imp. – edição impressa

[13] Cf. versão fac-símile em anexo.

[14] VALÉRY (1978: 64).

[15] CASTRO (1980-1981: 328).

[16] Cf. TORRES (1990: 165).

[17] Nesta edição impressa foram corrigidos todos os erros de acentuação, e de pontuação e igualmente terminadas todas as palavras deixadas em suspenso durante o processo de escrita

[18] FERREIRA (1991b:23-24).

[19] A Fonte do Senhor da Serra e a menina Susana foram já referidas no decurso do presente trabalho (cf. p. 9).

[20] As sereias seduziam os navegadores pela beleza do seu rosto e pela melodia dos seus cantos, atraíndo-os para o mar e devorando-os. in CHEVALIER et alii (1982:594).

[21] Orgão da palavra (verbum, logos) e do sopro (spiritus), simboliza também um grau elevado de consciência, uma capacidade organizadora através da razão. in CHEVALIER (1982:122).

[22] TORRES (1990:161).

[23] DIONÍSIO (1990:31).