SARAMAGO E A COR INEXISTENTE

Geysa Silva (UNINCOR)

A diversidade de pontos de vista a respeito dos efeitos das novas tecnologias sobre os processos de percepção nos leva a considerar o poder da imagem e de suas cores, na modelização do mundo. Indissociavelmente ligados, sujeito e imagem exibem um determinado estado de cultura e a necessidade de uma nova semiótica; basta pensar nos programas denominados "realidades artificiais" da NASA, em que o mundo, na opinião de Paul Virilio, se transforma numa grande tela televisual, para vislumbrar a importância da visão, que hoje deve ser reapropriada e até mesmo desterritorializada, num momento em que os referentes estão sendo aniquilados pela informação.

Subjacente a isso, desenha-se o problema da mimese, que se arrasta desde a Antigüidade, sem ter uma solução definitiva. Como representar aquilo que se vê? Estariam os contemporâneos, tal como os prisioneiros da caverna, confundindo as sombras com o ente? Como escapar da presdigitação e do ilusionismo das modernas tecnologias? É preciso compreender que o técnico, hoje, é um mimetizador, cuja potência está em reduzir suas informações ao desejável para apenas uma parte dos membros de uma comunidade, revelando simplesmente o que ele coloca diante do espelho, realizando um truque que consiste em fingir fazer aparecer o real, quando se contenta em imitá-lo e multiplicá-lo em imagens infinitas. Interessante notar que, na República, Platão coloca em Sócrates as seguintes palavras iniciais do Livro X:

- Si he de ser claro ante vosotros-pues no creo que vayáis a denunciarme a los poetas trágicos y a todos los demás que se dedican a la imitación-, esas obras parecen constituir un insulto a la sensatez de los que las oyen, cuando estos no poseen el antídoto conveniente para ellas; esto es, el conocimiento de lo que en realidad son. (Platão, 1988: 827).

É justificado o afastamento dos poetas, que deveriam deixar a pólis, em virtude do perigo da contaminação da inteligência pelo enganoso, por aquilo que oculta a verdade; contaminar para os gregos era a vergonha e também a violência, a mutilação. Esse é um fato que exige a reflexão para corrigir a desrazão por meio do raciocínio, remédio (pharmakon) que desconstrói os enganos e permite chegar ao conhecimento autêntico.

Atualmente as imagens difundidas pala mídia causam o mesmo receio que as imagens da poesia grega, em especial as da poesia trágica; elas contaminam o grande público, pelo fato de irem ao encontro de seus desejos, desviando a agressividade e a inveja, por exemplo, para um mundo de fantasia, libertando o mundo verdadeiro da violência, mas, paradoxalmente, cometendo a violência do controle e estimulando a imitação (ou seja, a mimese).O procedimento básico para converter o que acontece além da possibilidade de verificação concreta é transformar as personagens dete mundo criado artificialmente em refletores de eventos cotidianos.Transmite-se uma experiência imediatamente vivida pala maioria das pessoas. Neste sentido, veja-se o que escreve Lacoue-Labarthe:

A lei do desejo (a Lei?) é a lei da reapropriação, da retomada da alienação primitiva que a comanda. O desejo quer a diferença e a autonomia, o próprio e a propriedade, ele é a vontade mesma da decisão; - o Mesmo (a identidade, a identificação, a indiferenciação) é o seu terror e o mal que o corrói. Porque a obsessão do desejo é a originalidade, o desejo quer a negação de sua origem e o esquematismo de sua essência. (Lacoue-Labarthe, 2000: 101).

Representam-se as emoções desencadeadas pelos eventos e não as ações que compõem os acontecimentos. Essas imagens encenam uma narrativa que, ao invés de uma trama de fatos, fazem a representação de paixões., sem obedecer a uma concatenação lógica; a grande preocupação é com os efeitos emocionais suscitados pelos fatos.

Neste contexto histórico, José Saramago escreve o romance Ensaio sobre a cegueira; nele, as personagens adquirem uma doença misteriosa que as deixa cegas, não pela falta, mas pelo excesso de luz (cegueira branca). Este trabalho pretende analisar como a ausência de cor, exemplificada pela cegueira, não é apenas uma questão estética e, sim, ética e política. No terreno do dizer e do figurar, Saramago inscreve os múltiplos papéis que a percepção visual desempenha, na trama de agenciamentos que articulam transformações nas relações sociais. Veja-se o seguinte trecho:

Ao ladrão do automóvel levou-o um polícia a casa. Não podia o circunspecto e compadecido agente de autoridade imaginar que conduzia um empedernida delinqüente pelo braço, não para o impedir de escapar-se, como em outra ocasião teria sido, mas simplesmente para que o pobre homem não tropeçasse e caísse. (Saramago, 1995: 35).

Tudo se passa como, a partir da ausência de cores (e, portanto, da percepção diferenciada dos objetos), cria-se uma outra espacialidade, com zonas mais ou menos densas, que obrigam a uma cartografia diferente para tornar possível a compreensão das formas. A representação do real torna- se vazia e força a atribuição de sentidos, formados por toda uma gama de aproximações que repousam numa espécie de memória ótica, como possibilidade de manipular um espaço onde não há unificação do centro perceptivo. Ora esse problema é também discutido por físicos e pintores.

Sabe-se, desde Leonardo da Vinci, que as cores se transformam umas em presenças das outras e que é possível

[...] fazer avançar o conhecimento lógico para exercer de forma integral o controle sobre essas transformações das cores (mutações cromáticas), base de toda harmonia cromática, extraindo daí a variável desejada de lirismo existente na pureza da linguagem íntima da cor. O que está além dos simples meios materiais empregados: a outra cor implícita no corpo material da cor, a cor que é a alma e essência da cor, e que, no entanto, é ao mesmo tempo a sua aura - o além-da-cor . (Pedrosa, 2002: 7).

Por outro lado, suprematistas e realistas, em seus respectivos manifestos, colocam em questão a presença da forma e da cor; para eles, o importante é a sensibilidade e o ideal é a expressão pura, sem representação. O objeto não teria nada a ver com a arte e mesmo impressionistas e cubistas estariam ainda presos a um naturalismo desprezível. Toda a arte do passado deveria ser, no mínimo, desconsiderada, em favor de uma nova atitude, que não quer mais ilustrar usos e costumes, preferindo dedicar-se à abstração. Não é difícil perceber que o Suprematismo é um tipo de arte que abandona as aparências percebidas na natureza e em todo o mundo observável, negando a concretização do reflexo para atingir um ponto onde nada é reconhecível, a não ser o deserto mesmo da representação. É o que se pode observar em Quadrado Vermelho, de Kasemir Malevich. (Fig.I).

Quadrado vermelho, 1915

Ensaio sobre a cegueira vai verbalizar estas situações, pretendidas pelos artistas plásticos do início do século XX. Num mundo descolorido, as personagens se defrontam com problemas cuja solução não se acha mais nas lições a tirar das experiências anteriores. Elas, então, buscam desenvolver formas de atuação que façam surgir propostas para estabelecer relações entre os objetos e seus próprios corpos; a imaginação amplia sua liberdade, porém as personagens têm ainda de possuir uma moral responsável, de vez que o pensamento simbólico se encontra sob o impacto de novo estado físico, que provoca mutações decisivas na esfera da moral. Virtude e vício, solidaridade e agressão fundem a ideologia do poder.

A invisibilidade da matéria torna visível o ethos de cada um. Alguns, então, deixam eclodir a parte destrutiva da personalidade, mostrando o quanto a tragédia ainda nos ameaça, especialmente quando a paranóia descarrega a culpa e o ódio destrutivos sobre determinados elementos do grupo social. Em nome da sobrevivência todo o mal praticado contra o outro passa a ser justificado.

Entretanto, a ocorrência da cegueira remete para os problemas referentes à recepção. A relevância adquirida pelo tato produz uma espécie de tempo puro da sensação, que instiga o sonho e a fantasia, mas também a mesquinhez e até mesmo o crime. Assim, um grupo de cegos resolve explorar o outro, roubando-lhe a comida e exigindo que as mulheres se entregassem a eles. Faz-se a intervenção dominadora, que passa a ditar as regras do convívio. Os conflitos se acumulam nesta nova ordem que consiste no poder de quem detém as armas. A força da persuasão, ou seja, da palavra, é suplantada pelas ameaças que provocam medo.

Quando alcançaram o átrio, a mulher do médico compreendeu logo que nenhuma conversação diplomática ia ser possível e que provavelmente não o seria nunca. No meio do átrio, rodeando as caixas de comida, um círculo de cegos armados de paus e de ferros de cama, apontados para a frente como baionetas ou lanças, fazia frente ao desespero dos cegos que os cercavam e que, em desajeitados intentos, forcejavam por penetrar na linha defensiva [...]. (Saramago, 1995: 134-135).

È interessante assinalar a escolha feita por José Saramago, ao negar escuridão à cegueira. Contrariando a tradicional simbologia do branco (paz, pureza, segurança), Ensaio sobre a cegueira evoca a profusão de cores do mundo atual, cores cuja síntese é o branco. A narrativa alerta para o perigo de vivermos imersos em imagens, sem nos determos sobre suas origens e significados; o acúmulo de imagens produz um "branco" no pensamento, confunde o real com o virtual e estabelece a crença no simulacro. Qualquer estudante de ensino médio conhece o "disco de Newton" que, posto em movimento, transforma as cores do espectro solar em um branco pleno. È a demonstração de que o branco "puro" não existe, ele é constituído de cores diferenciadas, perceptíveis no fenômeno da refração.

Desde a Antigüidade, a refração despertou o interesse de estudiosos, salientando ora seu caráter místico, ora o caráter científico. Israel Pedrosa esclarece a importância de Newton nesta questão, pois

O fato da luz branca ter rido produzida pela recombinação levou-o a concluir que todas as cores do espectro estavam presentes no raio de sol original, comprovando a formulação de Leonardo que "o branco é resultado de outras cores, a potência receptiva de toda cor". (Pedrosa, 2002: 27).

Em Ensaio sobre a cegueira, a reversibilidade ao branco é compulsória e alastra-se pela cidade, numa reedição da peste medieval. Também agora os doentes são isolados dos outros habitantes, impedidos de qualquer contato com o mundo exterior, sob o risco de perder a própria vida, caso desobedecessem às normas de segregação; é o que acontece com o cego gatuno que, fora da hora determinada, dirige-se ao átrio e recebe uma rajada de metralhadora, disparada por um soldado apavorado diante da proximidade do doente.

A cor inexistente (ou branco) é a imagem da síntese operada pela recepção das mil e uma informações coloridas que a cada instante afetam nossas retinas, deixando-nos cegos, impossibilitando-nos de distinguir os constituintes do real, que se torna opaco. As conseqüências desse "mal-branco" são radicais; a incerteza quanto ao espaço condena os doentes a perderem a capacidade de representação e a modificar hábitos os mais interiorizados. A presença - fundamental na relação entre os homens - é percebida de forma completamente diferente do normal.

De pé, a mulher do médico olhava para os dois cegos que discutiam, notou que não faziam gestos, que quase não moviam o corpo, depressa haviam aprendido que só a voz e o ouvido tinham agora muita utilidade, é certo que não lhes faltavam braços, que podiam brigar, lutar, vir às mãos, como se costumava dizer [...]. (Saramago, 1995: 102).

José Saramago vai denunciar esta situação, colocando, para as personagens de Ensaio sobre a cegueira, a necessidade de ampliar a noção de forma, que doravante deverá ser forma de uma relação, de falar, de fazer um carinho, forma de viver e de conviver; portanto, a forma adquire um componente humano, deixando de ser meramente física. Ela não nos é dada pelo mundo exterior e, sim, é um produto de nossa interação com ele. A narrativa aponta para a premência de abandonarmos a contemplação e enfrentarmos as contingências que a existência propõe. Em lugar do cenário costumeiro, apaga-se tudo e a ambigüidade se dissemina pelos sentidos, uma vez excluído o poder do olhar.

A mulher do médico é a personagem que conserva a visão, aquela que continua percebendo o contraste entre a luz e a sombra. Esta condição especial confere-lhe a responsabilidade de atenuar o sofrimento dos que a cercam e de liderar escolhas decisivas. Ensaio sobre a cegueira assume, então, a tarefa de alegorizar a interferência das imagens e da cor na economia dos sentidos e do comportamento ético.

Numa sociedade em que as tecnologias de imagens modificam-se e transformam, de madeira acelerada, os padrões reconhecidos de representação, tornando-os obsoletos, conseguir distinguir as cores e os objetos é um privilégio que implica a contrapartida de obrigações sociais. Ver é também refletir sobre o que é o visto, vencer o medo e enfrentar as articulações da mídia, examinando seu mérito ou demérito. Conhecer é também ver, identificar o que é visto.

Interessante ressaltar que, em Ensaio sobre a cegueira, são personagens femininas as que mais incitam à reflexão e fazem o discurso do ensaio, como acontece com "a rapariga dos óculos escuros".

O medo cega, disse a rapariga dos olhos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegámos, o medo nos cegou, o medo nos fará cegos, Quem está a falar, perguntou o médico, Um cego, respondeu a voz, só um cego, é o que temos aqui. Então perguntou o velho da venda preta, Quantos cegos serão precisos para fazer uma cegueira. Ninguém lhe soube responder. (Saramago, 1995: 131).

Tomado pelo medo, o homem da modernidade tardia prefere nada ver, a ter de distinguir cores e valores. Não se tem mais a imagem no lugar da coisa, pois, ao invés de refletir o mundo, a imagem se torna o próprio mundo. O que interessa é ver a imagem passar, refugiar-se diante da tela do computador e/ou da televisão, abandonar o espaço público e, por extensão, o convívio com o "outro", acentuando-se o solipsismo.

O "mal-branco", ao confinar as personagens em um ambiente semelhante ao Huis-Clos de Sartre, inverte a situação do cotidiano, obrigando-as a interagir com desconhecidos das mais variadas posições sociais. Há que vencer o medo e confrontar com o outro, aceitar os riscos que isso traz, diante da impossibilidade de manipular o espaço e os homens através da visão. Resta o pensamento, voluntário ou involuntário, movendo-se em torno dos acontecimentos, na tentativa de capturar a realidade.

Os sentidos, outrora despercebidos ou até enclausurados, passam a operar nos processos de significação com a consciência de quem a eles recorre. Fica-se sabendo que é preciso julgar as dúvidas que surgem, atentando para o fato de que pessoas e objetos estão ligados à subjetividade, pois é por ela que são percebidos.

Afinal, por que Saramago escolheu o "mal-branco" e não o "mal-negro"? Por que a pureza da luz, ao invés da escuridão? Os motivos pessoais não podem ser detectados pela simples leitura de Ensaio sobre a cegueira. Entretanto podem ser feitas algumas inferências em relação às cores. É sabido que a verdadeira cor inexistente é o preto, pois este não existe na natureza (Fig. II).

Quadrado preto, 1923-29

Em contraste com ele, todavia complementando-o, está o branco. Assim, se tomarmos a luz como ponto de partida, o branco é o início da gama cromática; se tomarmos a privação da luz como ponto inicial, este lugar será ocupado pelo preto. Os impressionistas consideram o branco como uma não-cor de vez que, não sendo definido, era a expectativa de um fato a se desenvolver.

[...] o branco é como o símbolo de um mundo onde todas as cores, como propriedades materiais desapareceram. O branco age sobre nossa alma como silêncio absoluto. É um nada pleno de alegria juvenil aí, para dizer melhor, um nada antes de todo nascimento, antes de todo começo. (Pedrosa, 2002: 118).

Sendo o reino das possibilidades infinitas, o branco acena com um novo mundo, onde os homens possam usar e perceber contrastes. É célebre o quadro de Malevich, Quadrado branco sobre fundo branco, em que as cores se encontram apenas em estado de possibilidades (Fig. III).

Quadrado branco sobre fundo branco, 1918

Com esta mesma posição, Renoir afirmava que o máximo de luminosidade, em pintura, é conseguido com a aplicação de branco sobre branco. Ora, é esse máximo de luminosidade que Saramago usa para pintar, em palavras, o tempo atual, a cegueira da alienação que se instala nos indivíduos.

Porque foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que vendo não vêem. A mulher do médico levantou-se e foi à janela.[...]. Depois levantou a cabeça para o céu e viu-o branco. Chegou a minha vez, pensou. O medo fê-la baixar os olhos. A cidade ainda ali estava. (Saramago, 1995: 310).

Referências bibliográficas

LACOUE-LABARTHE, Philippe. A imitação dos modernos. Ensaios sobre arte e filosofia. Org.Virginia de A. Figueiredo e João Camilo Penna. Trad.João Camilo Penna. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

PLATÃO. Obras completas. Trad. Maria Araujo et alii. Madrid: Aguilar, 1969.

PEDROSA, Israel. Da cor à cor inexistente. Rio de Janeiro: Léo Christiano Editorial / EDUFF, 2002.

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.