O “GÉNOS” DO ARCADISMO - 2A. PARTE

Márcio Luiz Moitinha Ribeiro (UERJ e USP)

Baseando-nos na leitura das Bucólicas de Virgílio, faremos, no minicurso, um estudo das suas características, analisando a presença da vida pastoril ou bucólica, o amor, a mulher, o cenário e os elementos mitológicos .

Perceberemos que houve a permanência destas características virgilianas na poesia posterior do Arcadismo.

Presença da vida bucólica

Uma das características da vida bucólica é a paz e a tranqüilidade. O campo é um locus amoenus “lugar ameno” que favorece uma visão calma da existência e da vida simples e sincera ( Há uma idealização da vida campestre).

O pastor, na poesia virgiliana, está num lugar de felicidade, com o seu labor, gozando o dia presente1, enquanto se tem esta oportunidade ou o vigor da juventude, pois a vida é efêmera.

Destacamos o colóquio entre pastores e as disputas poéticas que aconteciam para passar o tempo e para mostrar quem era o melhor no canto e na poesia, enquanto os mesmos cuidavam de seus animais:

Forte sub arguta consederat ilice Daphnis,

compulerantque greges Corydon et Thyrsis in unum,

Thyrsis ouis, Corydon distentas lacte capellas,

ambo florentes aetatibus, Arcades ambo,

et cantare pares et respondere parati.

(Virg. Buc. VII, 1- 5 )

“Casualmente, Dáfnis tinha se assentado debaixo de uma barulhenta azinheira

E Córidon e Tírsis tinham reunido os (seus) rebanhos em um único (lugar),

Tírsis ( reunira ) as ovelhas, Córidon as cabras cheias de leite;

Ambos florescendo nas idades, ambos árcades,

Não só semelhantes no cantar, como também , preparados para responder.”

O amor

O sujeito do amor heterossexual é o pastor dos animais que demonstra na sua fala toda a sua subjetividade e paixão em relação à amada; este pastor não se cansa de tecer elogios ao objeto dos galanteios, sua amada.

Citaremos , a seguir, um fragmento da 7a. bucólica , que diz respeito ao amor do pastor Tírsis por Fílis; com o advento dela, diz Tírsis, que todo o bosque florescerá e Júpiter fará chover, abundantemente, nos campos. Vejamos esta belíssima passagem de Virgílio:

THYRSIS

Aret ager ; uitio moriens sitit aeris herba;

Liber pampineas inuidit collibus umbras;

Phyllidis aduentu nostrae nemus omne uirebit,

Iuppiter et laeto descendet plurimus imbri.

(Virgílio, Buc. VII, vs. 57-60)

TÍRSIS

O campo está seco; a erva , que está morrendo, tem sede por causa do calor do ar;

Baco não concedeu sombras pampíneas às montanhas;

Todo o bosque florescerá com o advento da nossa Fílis,

E Júpiter descerá repleto de chuva abundante.

b) Homossexual , como na 2a. Bucólica, na qual o pastor Córidon está apaixonado pelo jovem Aléxis, mas este não lhe pertence. Aléxis não dá ouvidos a Córidon, que lhe oferece tudo que possui; como o seu amor não é correspondido , deseja a morte. Vejamos a passagem inicial desta paixão de Córidon que o faz sofrer e que o leva a pronunciar palavras sem sentido às florestas e montanhas:

FORMOSVM pastor Corydon ardebat Alexim,

delicias domini: nec quid speraret habebat.

Tantum inter densas, umbrosa cacumina, fagos

adsidue ueniebat; ibi haec incondita solus

montibus et siluis studio iactabat inani:

O crudelis Alexi, nihil mea carmina curas?

nil nostri miserere? mori me denique coges.

(Virg. Buc. II, 1-7 )

O pastor Córidon desejava ardentemente o formoso Aléxis,

volúpias do senhor, e não tinha o que esperava.

Apenas, assiduamente, chegava ao meio das densas faias, de cimos sombrios;

nesse lugar, sozinho, lançava estas ( palavras ) desordenadas às montanhas e às florestas com inútil dedicação:

Ó cruel Aléxis, não te preocupas com os meus cantos?

Não tens compaixão de nós? (tu) me levarás, enfim, a morrer.

c) O amor-veneração à ninfa inspiradora ou a uma musa . Este tipo de amor não é correspondido, mas idealizado. Citaremos uma passagem na qual o pastor Córidon venera as ninfas de Libetra e diz que esta é o nosso amor.

CORIDON

Nymphae noster amor, Libethrides, aut mihi carmen,

quale meo Codro, concedite ( proxima Phoebi

uersibus ille facit), aut, si non possumus omnes,

Hic arguta sacra pendebit fistula pinu.

(Virgílio, Buc.VII, vs 21 - 24 )

Ó Ninfas de Libetra, nosso amor, ou concedei-me

um canto tal como ao meu Codro ( ele faz (cantos) próximos aos versos de Febo ), ou se nós todos não podemos,

aqui, (minha) flauta melodiosa estará pendurada do pinheiro sagrado.

Como vimos , existem três tipos de amor nas Bucólicas: O heterossexual, o homossexual e o amor- veneração. O amor é incidental, pois, aparece, de vez em quando, na poesia pastoril.

A mulher

A mulher pastora também aparece, no gênero bucólico . Há, por exemplo, no início da III écloga, o pastor Dametas , que até se esquece do seu trabalho, para namorar a sua amada Neera , ao passo que o outro, Menalcas, também a desejava e diz que é melhor amante do que Dametas. Vejamos:

MENALCAS

Infelix o semper, oues, pecus! Ipse Neaeram

Dum fouet, ac ne me sibi praeferat illa ueretur,

hic alienus, oues custos bis mulget in hora: 5

Et sucus pecori, et lac subducitur agnis.

(Virg., Buc. III, vs. 3-6)

MENALCAS

Ó! ovelhas, Ó! sempre infeliz rebanho! Enquanto , ele

abraça Neera , e teme que ela a ele me prefira,

este estranho protetor ordenha duas vezes por hora as ovelhas 5

Não só o suco é subtraído ao rebanho, como também o leite aos cordeiros.

O cenário

Na primeira bucólica, há um colóquio entre dois pastores: Melibeu e Títiro.

Percebemos, na fala de Melibeu, alusões ao campo e aos elementos da natureza, seja ela bruta ou modificada pelo homem. Há passagens como “sub tegmine patulae fagi” (v.1) = “sob a sombra de uma copada faia”, ”, “nos patriae finis et dulcia linquimus arua” (v.3) = “nós deixamos as fronteiras e os agradáveis campos da pátria” e “tenui auena”(v.2) = “na tênue flauta pastoril”. No discurso de Títiro, também vemos algumas referências aos animais e ao sacrifício a um Deus. Vejamos estes versos iniciais:

MELIBOEVS

Tityre , tu patulae recubans sub tegmine fagi

siluestrem tenui musam meditaris auena;

nos patriae finis et dulcia linquimus arua;

nos patriam fugimus; tu, Tityre, lentus in umbra,

formosam resonare doces Amaryllida siluas. 5

TITYRUS

O Meliboee, deus nobis haec otia fecit;

namque erit ille mihi semper deus; illius aram

saepe tener nostris ab ouilibus imbuet agnus.

Ille meas errare boues, ut cernis, et ipsum

ludere quae uellem calamo permisit agresti. 10

(Virg., Buc. I, vs. 1 - 10)

MELIBEU

Ó Títiro, tu , que estás deitado sob a sombra de uma copada faia

compões um poema rústico na tênue flauta pastoril ;

nós deixamos as fronteiras da pátria e os agradáveis campos;

nós fugimos da pátria; tu, ó Títiro, (estás) ocioso

na sombra, (e) ensinas as florestas a ecoar (o nome da ) formosa Amarílis.

TÍTIRO

Ó Melibeu, um deus nos fez estas tranqüilidades;

de fato, ele será sempre um deus para mim;

um tenro cordeiro de nossos apriscos, muitas vezes, sangrará o altar dele.

Ele permitiu (que) as minhas vacas vagueassem à toa, como vês (claramente),

e que (eu) próprio tocasse com o cálamo agreste (aquelas coisas) que eu quisesse.

No cenário bucólico da poesia virgiliana, os elementos da natureza, como os animais, às vezes estão descritos com subjetividade. Há o pastor em belas paisagens campestres a cantar os seus lamentos devido ao exílio que está próximo.

Citemos mais um fragmento da primeira bucólica, na qual há a presença desta intensa subjetividade e alusões aos elementos do campo, visto que Melibeu é obrigado a deixar as suas terras e seu rebanho que não está mais feliz, pois sente que seu querido pastor está prestes a se retirar. Os novos donos da terra são os ímpios soldados que se apossaram das terras tão estimadas de Melibeu e as repartem como espólios. Melibeu não sabe se , um dia, voltará. Vejamos, a seguir, os belíssimos versos 67-76:

En unquam patrios longo post tempore finis,

pauperis et tuguri congestum caespite culmen,

post aliquot, mea regna uidens, mirabor aristas?

Impius haec tam culta noualia miles habebit? 70

Barbarus has segetes? En quo discordia ciuis

produxit miseros! His nos conseuimus agros!

Insere nunc, Meliboee, piros, pone ordine uitis!

Ite meae, felix quondam pecus, ite, capellae:

non ego uos posthac, uiridi proiectus in antro,

dumosa pendere procul de rupe uidebo;

(Virgílio, Buc. I, vs. 67 - 76)

Tradução:

Acaso, algum dia, depois de longo tempo, admirarei as terras pátrias

e o teto da (minha) pobre choupana , coberto de colmo,

(e) depois de alguns (meses), vendo os meus reinos, contemplarei as (minhas) espigas?

Um soldado ímpio possuirá estes campos tão cultivados? 70

Um bárbaro (terá) estas terras semeadas? Eis para onde a discórdia

conduziu os cidadãos infelizes! Nós semeamos os campos para esses!

Enxerta ,agora, ó Melibeu, as pereiras, põe, em ordem, as videiras!

Ide, ó minhas cabras, feliz rebanho, outrora:

Daqui em diante, eu , estirado, num antro verdejante, não vos verei (mais), ao longe, suspensas, sobre uma rocha cheia de silvado.

Elementos mitológicos

Eles são freqüentes nas bucólicas. Citemos como primeiro exemplo Dametas, no início da III bucólica, que invoca Júpiter e comenta as qualidades deste deus, ao passo que Menalcas pede a sabedoria a Febo e o elogia. Vejamos:

DAMOETAS

Ab Ioue principium, Musae; Iouis omnia plena:

Ille colit terras; illi mea carmina curae.

MENALCAS

Et me Phoebus amat; Phoebo sua semper apud me.

Munera sunt, lauri et suaue rubens hyacinthus.

(Virg., Buc. III, vs. 60 -63 )

DAMETAS

Ó musas, comecemos por Júpiter; de Júpiter todas (as coisas estão) cheias:

Ele cultiva as terras; os meus cantos (estão) ao seu cuidado.

MENALCAS

E Febo me ama; para Febo os seus dons sempre estão junto de mim,

os loureiros e o jacinto suavemente avermelhado.

Lembremos também uma alusão mitológica de Virgílio muito interessante2 como a de Pirra e de seu marido Deucalião. Zeus decide exterminar a humanidade com um dilúvio. Prometeu alerta Deucalião e este conStrói um barco para se salvar com sua mulher Pirra. Ambos se salvam do dilúvio. Encontram um oráculo que os exorta a repovoar o mundo. Como? Eles deveriam lançar por cima de seus ombros “os ossos maternos”, isto é, as pedras da terra. Quando Deucalião joga-as à terra, elas se tornam homens e as lançadas por Pirra, transformam-se em mulheres. Virgílio cita este episódio nos versos 41-42 da sua VI Bucólica:

Hinc lapides Pyrrhae iactos, Saturnia regna,

Caucasiasque refert uolucris, furtumque Promethei.

Em seguida, relata sobre as pedras jogadas por Pirra, sobre os reinos saturnios,

e sobre as aves Caucásias, e sobre o roupo de Prometeu.

Há, no verso acima, uma outra referência mitológica que é a de Prometeu, pai de Deucalião. Sabemos que Prometeu roubou o fogo celeste e deu aos homens, por isto, foi castigado por Zeus. Amando por este, Hefesto , auxiliado por Crato e Bias, acorrentaram Prometeu no monte Cáucaso. Aí, dois abutres devoravam-lhe o fígado que renascia constantemente.

Gostaríamos de citar mais um mito neste trabalho: o da figura trágica de Medéia. Como sabemos, ela matou os próprios filhos para se vingar da traição do marido, Jasão. Este a abandonara a fim de se casar com Creúsa , filha do rei de Corinto. Vejamos esta referência mitológica, num fragmento da VIII Bucólica:

Saeuos Amor docuit natorum sanguine matrem

commaculare manus;

(Virg., Buc.VIII , vs. 47 - 48)

O Amor cruel ensinou a mãe a macular (suas) mãos com o sangue dos (seus próprios ) filhos.

Podemos concluir que Virgílio demonstra nas Bucólicas amplos conhecimentos sobre os assuntos relacionados aos deuses, às lendas pastoris, enfim à mitologia.

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