A FORMAÇÃO DO LEITOR EM QUESTÃO
A
BUSCA DA LEITURA NA DANÇA

José Ricardo da Silva Ramos (UFF)

 

Sem ser um meio para complemento ou uma compensação, a literatura nos permite moldar ativamente o mundo e a nós mesmos, ao propiciar o contato com alguma coisa que não podemos conhecer ou vivenciar de forma consciente.

Gabriele Ichuvab

 

Introdução

Este trabalho buscará discutir as possibilidades da expressão corporal na formação do leitor na escola. Sendo assim, tratará da importância do corpo mediando a aquisição da leitura por meio da dança. Entretanto, por que essa proposta é interessante para as diferentes instâncias educacionais que procuram despertar o gosto pela leitura?

A partir da participação em um curso de formação do leitor[1], e da leitura de diferentes textos sugeridos pelo curso, ainda pelo estudo e registro das idéias nele suscitadas, buscou-se compreender as relações que os autores estabeleceram para a criação do gosto pela leitura e do papel fundamental daquele que deve mediar o livro ou o objeto a ser lido. Os textos falavam acerca de como deve ser prazerosa a leitura, de como deve ser importante despertar o gosto de ler, comentavam as boas lembranças da leitura, o que a leitura neles suscitava, que a leitura não deve ser imposta e que existem diferentes meios de orientar a leitura, como por intermédio do computador, da pintura, da poesia e das artes.

Mas, se os textos lembravam caminhos lúdicos para criar o gosto de ler, demonstrando pertinência e autonomia com relação a formas de apropriação e utilização de recursos para a leitura, a escola, por sua vez, desconhece as possibilidades para despertar o hábito da leitura. Muitos colegas do curso relataram que a leitura na escola se fecha na leitura dos livros didáticos, em resumos de histórias, em provas e que os alunos, na sua maioria, não gostam de ler, têm aversão pelos textos literários, pela literatura que é ensinada na escola. Conheceram-se alguns métodos que os colegas construíram para romper com o desprazer, a imposição e a obrigatoriedade de ler determinada pela escola. Nesse sentido, tornou-se possível perceber que a escola forma não-leitores, que os alunos não conseguem desfrutar do prazer de ler um livro e que os alunos têm medo, timidez e vergonha de ler para o outro, para a classe ou para o professor e ser avaliado como mau leitor.

Como pode a intervenção pedagógica resolver esses problemas? Como não temer diante dos textos literários? Drummond (1987), no texto “O leitor e o lido”, diz: “Às vezes penso que o leitor é alguém que deseja estar no meu lugar, um concorrente em potencial, um amigo-inimigo” (p. 195). Será que temos tido a oportunidade de fazer outros tipos de leituras na escola? Será que temos compreendido a função de outros tipos de leituras na formação do sujeito-leitor? Será que nós, professores, temos tido a oportunidade de ler a postura, o corpo, ou seja, as escrituras corporais dos nossos alunos? É possível tornar os nossos alunos sujeitos que se expressam por meio dos seus corpos e, ao mesmo tempo, leitores daquilo que expressaram? Como encontrar caminhos pedagógicos em que os alunos gostem de ler, passem a ler, voltem-se para o livro e a literatura sem temer diante deles? Será que a dança, como uma proposta de leitura, pode ser útil à formação do aluno leitor?

Assumindo uma perspectiva que é a linguagem como ação, visa-se, neste trabalho, levantar algumas reflexões sobre o que significa compreender a leitura como expressão corporal – uma linha de pesquisa que busca interlocutores para construir caminhos pedagógicos comprometidos com a teoria e a prática na formação de leitores. No contexto dessa perspectiva, analisar-se-ão diferentes modos de entender a leitura na escola como instrumento, necessidade, gosto, exercício ou mera atividade curricular.

Lendo além das letras

Tomando como possibilidade de intervenção pedagógica a metodologia criativa que parte da proposição de atividades assemelhadas às das várias artes, como experiência de criação, coerente com aquilo que os alunos desejam para aprender para a sua vida, estudou-se a distinção que Bordini & Aguiar (1988) estabelecem entre constatar uma carência e reproduzir histórias a partir de narrativas ouvidas. Desse modo, a literatura pode ser vivida, experimentada e contada para o outro, compartilhada, tornando-se leitura corporal, por meio do caráter cênico expresso pela dança, que pode devolver e despertar no aluno o gosto pela leitura.

Parte-se do pressuposto de que a leitura como uma forma de expressão corporal seja uma prática pedagógica, em que o aluno possa interagir, criar , divertir-se, informar, comunicar e partilhar saberes tanto para quem , quanto para quem propiciou a leitura, ao representá-la corporalmente, crescer, ser desafiado, aprender e construir conhecimentos.

A área pedagógica da leitura vem recebendo, durante séculos importantes contribuições tanto no que se refere à procura de caminhos concretos para o ensino da leitura quanto no que diz respeito a uma direção epistemológica para o assunto. Sartre (1989), por meio da denúncia de uma leitura morta, segundo a qual o livro é um objeto sem nenhuma ação, nos apresenta a leitura “engajada”, em que a palavra é ação e procura mudanças. A palavra, decide desvendar o mundo e especialmente o homem para os outros homens, a fim de que estes assumam em face do objeto (livro) a sua inteira responsabilidade. Desse modo, a função de um professor “engajado” é construir o como a leitura pode atingir a sua máxima ressonância.

Com o impulso na área metodológica, a mudança paradigmática parte da tentativa de desconstruir a equivocada experiência da leitura conservadora: a leitura como uma destreza. “Porque a leitura, ao contrário da carpintaria ou do bordado, não é meramente uma habilidade; é uma ativa elaboração de significados dentro de um sistema de comunicação.” (DARNTON, 1986, p. 279). Desde Rousseau e sua compreensão de leitura como sensibilidade romântica, entrando pelas correntes da filosofia, da psicologia, da sociologia e da linguagem, é possível conhecer os estudos do passado, que ora conservam, ora enfrentam questão ligadas ao prazer e o gosto pela leitura. Esses campos teóricos nos situam no espaço da reflexão, da política, da ideologia e do problema de apresentar caminhos concretos para a prática da leitura.

Chartier (1998), entre as limitações e a liberdade na leitura, chama a atenção para o caráter histórico da experiência humana de ler, ostentando a aventura social da leitura, que se traduz nas experiências humanas marcadas nos modos de lembrar e recordar dos sujeitos que procuravam diferentes formas de leituras. Suas investigações indicam que a consideração do livro como objeto vivo, do ambiente, como conteúdo educacional e da memória como elemento de leitura do mundo, incorporou diferentes modelos explicativos de leitura na dinâmica social de cada época, aumentando os processos relacionados à informação e à comunicação humana, mudando o panorama estático, conservador para um panorama modular e flexível. As idéias dos diferentes modos de leitura vêm repercutindo, durante séculos, em desdobramentos pedagógicos significativos para que os indivíduos se apropriem do ato de ler.

Entre os vários modos de leitura, Chartier (1998) pontua a revolução que os textos eletrônicos vêm fazendo com as suas idéias contemporâneas, ofertando mais comunicação e informação, cujas contribuições promoveram impactos no delineamento de questões sobre o ato de ler e novas propostas para a apropriação do gosto de ler.

No conjunto dessas contribuições teóricas e de busca por caminhos pedagógicos concretos para que a escola se aproprie do gosto de ler é que se coloca o presente estudo. Ao levantar questões sobre os modos de ler, de diferentes tipos de alunos e escolas, onde a leitura de fato não acontece, importa frisar também o problema do “comofazer. Na busca da direção epistemológica e do como intervir, busca-se neste trabalho inquietante, observar algumas manifestações corporais de ligação com a leitura, estudando esses comportamentos, entrevistando professores “engajados” na busca de novas alternativas para o gosto da leitura, procurando compreender a escola, como também buscando caminhos e respostas. Ao longo desse processo, no encontro com interlocutores, levantam-se as seguintes questões: o que é ler? Qual a sua natureza? Como se o mundo? Como a escola entende a leitura? Existem outros modos de ler e narrar o que se leu? No emaranhado dessas questões é que se estudam diversos modos, conceitos e teorias para a compreensão da leitura. Ler é uma destreza? É exercício? É prazer, hábito, uma necessidade virtual para o mundo de hoje ou um instrumento para a apropriação de outros mundos? Pretende-se apresentar algumas implicações dessas questões suscitadas neste trabalho ao apresentar a leitura por meio da expressão corporal.

Para responder a essas questões e tentar resolver esses problemas, faz-se necessário inicialmente retomar os Parâmetros Curriculares Nacionais, que orientam atualmente a lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/96). Na orientação da lei, o ensino da literatura e da educação física estão amplamente conhecidos como área das linguagens, inseparáveis no desenvolvimento de habilidades e competências do alunato. Julga-se necessário retomá-las a fim de tornar transparentes os princípios, os pressupostos e a metodologia em que se fundamenta o presente trabalho para responder às questões formuladas. Assim, buscam-se as interferências dessas linguagens no processo de aquisição da leitura na escola, distinguindo-se, para tornar o trabalho mais explícito, duas faces dessas linguagens nesse processo: a apresentação da linguagem não-verbal e o desenvolvimento da literatura na utilização do corpo para a interação dessas linguagens.

No campo dos sistemas e linguagem, podemos delimitar a linguagem verbal e não verbal e seus cruzamentos verbo-visuais, audio-visuais, audio-verbo-visuais etc. A estrutura simbólica da comunicação visual e/ou gestual como da verbal constitui sistemas arbitrários de sentido e comunicação. A organização do espaço social, as ações dos agentes coletivos, normas, os costumes rituais e comportamentos institucionais influem e são influenciados na e pela linguagem, que se mostra produto e produtora da cultura e comunicação social (PCN’s, 1999, p. 126).

A partir da retomada de uma concepção da área da linguagem configurando relações pedagógicas entre a Educação Física e a Língua Portuguesa pelos seus aspectos interdisciplinares, ancora-se a proposta desta monografia à tentativa de responder às perguntas acima formuladas, apresentando, sobretudo, a prática pedagógica de alguns professores[1] que se orientam e controlam o ensino e a aprendizagem literária nas suas ações. Com essa consideração, os PCN’s orientam os professores da área das linguagens para que exerçam suas ações nesta direção:

Podemos assim falar em linguagens que se confrontam, nas práticas sociais e na história, e fazem com que a circulação de sentidos produza formas sensoriais e cognitivas diferenciadas. (id. Ibid., 1999, p.126).

Todos os professores que atuam na área das linguagens na escola devem considerar a interferência de aspectos dos estudos da linguagem no ensino e na aprendizagem de textos, discursos verbais e não-verbais aqui destacados para a apropriação da leitura.

No que se refere ao processo de apropriação literária, a linguagem corporal na aquisição desta transforma o conceito de leitor fragmentado, que se apropria do texto por associação, para um leitor ator, autor e co-autor que atua com e sobre a leitura, buscando compreender um texto ou uma obra literária, levantando hipóteses sobre ela, submetendo à prova essas hipóteses pela expressão corporal. O processo que rege essa orientação é a escrita do texto em forma de dança – uma coreografia que conduzirá o aluno progressivamente a uma prática de sucessivas correspondências entre o não-verbal e o escrito nas seqüências de movimentos que suscitam os sentidos do texto, sentidos esses que sugerem novas possibilidades de leituras.

O aluno agindo e interagindo com um texto, experimentando corporalmente, ousando descrevê-lo, fazendo uso de técnicas corporais e testando hipóteses entre o gestual e o escrito por meio de seus discursos motores organizando e comparando as estruturas narrativas a fim de tornar sua narração semanticamente interpretada.

As dificuldades enfrentadas pelos alunos nesse processo são consideradas como uma prática refletida e, para isso acontecer, as expressões corporais são dinamizadas com exercícios, técnicas corporais que associam texto ao discurso motor. Nesse processo de apropriação literária, as expressões corporais são consideradas constitutivas, sinalizadoras no processo de apropriação e construção de um texto, que o aluno vivencia, revelando sua escrita por intermédio da sua atuação, identificando-se com a leitura.

Como apresentar o livro para os alunos? – é a questão central deste estudo neste trabalho de curso, dando seqüência ao tema “a formação do leitor em questão”, proposta de trabalho construída, considerando-se o projeto pedagógico e as questões postas pelo curso ministrado pela professora Elizabeth Chaves.

 

EXPERIMENTANDO O CORPO COMO LINGUAGEM
A HISTÓRIA DOS CORPOS HUMANOS

Procurando compreender a linguagem corporal na formação do leitor, pode-se começar na esfera pré-histórica do sistema da linguagem, pois o começar de tudo remete aos atos de leitura dos nossos antepassados. Iser (1999), por exemplo, atribui a estética da recepção à capacidade de ler que os seres humanos dispõem. A capacidade de traçar lacunas ocultas entre discursos a previsões futuras, parte da mobilidade que permite o ser humano ler uma realidade de acordo com o seu contexto social e histórico. Nesse sentido, a teoria da laguna no ato de ler, desde o momento da formação humana, estaria sinalizada nas escrituras corporais da espécie humana.

Assim, a formação da leitura parte de uma trajetória sócio ontológica. Desde a pré-história, o homem reuniu pistas, conhecimentos indiciários que o transformaram num leitor do mundo. O homem pré-histórico construiu sua formação humana no seu modo de ler a natureza para transformá-la e domesticá-la. Por uma série de experiências corporais, o homem como leitor afrontou mistérios, descobriu e criou coisas e se constituiu leitor que agiu, interagiu no mundo e desvelou a linguagem humana.

Segundo Paulo Freire (1986), aprender a ler é, antes de mais nada, aprender a ler o mundo; compreender uma realidade, interagir num espaço social, a partir da relação linguagem e ação. O processo de leitura se realiza no movimento dinâmico de ler o mundo e flui no corpo humano carregado de significação existencial: uma “prática refletida” – a tradução de leitura do ser humano. Do ponto de vista da Educação Física, pode-se dizer que ler o corpo é estudar a humanidade: sua construção histórica, cultural e social no seu discurso motor. Como instância da linguagem corporal, a dança é objeto do corpo de conhecimento da Educação Física, disciplina que a analisa, interpreta e explica, como resultante da cultura. Assim, ler por meio da dança é uma prática de leitura. É pelo uso do corpo em movimento que o homem se produz, se humaniza e se realiza na produção de uma cultura técnica que determina o tipo de leitura que produzimos.[2]

No livro A importância do ato de ler, Paulo Freire reconhece o seu mundo da infância pela leitura. Ele revivia o seu quintal, lembrando objetos, conhecimentos, sentidos e sabores. O modo como ele lia o seu mundo, precedia a leitura da palavra: ler é viver, conhecendo-se, construindo o seu mundo em permanente interação. Dessa forma, o sentido das disciplinas da linguagem precisam considerar um leitor do mundo que se interroga, interpreta, pensa e captura recortes do mundo nas suas experiências corporais. Ao propor a dança para a apropriação da leitura, busca-se dar visibilidade à condição de ler necessariamente implicada no corpo dos sujeitos que dançam uma escrita coreográfica que a literatura atravessa.

 

Experimentando a dança como linguagem

A dança como objeto da linguagem estuda o corpo virtual, resultante das obras de artes dos homens. A dança é uma prática usada, de natureza cultural, para dar movimento ao viver-fazer artístico do homem. O ato de ler o homem se reflete também no território da dança, o que nos possibilita definir metaforicamente o corpo como uma escrita virtual de uma obra literária.

Assim, entender a leitura do ponto de vista corporal é interpretá-la como um mundo virtual, a partir da produção técnica de um sistema de ações que caracterizam as danças coreográficas. O caráter da dança nos possibilita entendê-la como um sistema de ações que leva à criação de objetos técnicos e que encontra no corpo seu espaço para se expressar.

A linguagem corporal é considerada importante e fundamental na apropriação da leitura. Basta considerar que a dança é, na sua maioria, baseada em situações que dependem prioritariamente de encenações corporais sobre conteúdos literários. Em uma proposta interessante de pesquisa sobre leitura, Foucault (1987), a partir da obra: “Las Meninas”, de Velásquez, procura investigar a integração da informação sígnica na leitura visual do quadro, no qual autor, personagens e cenário são integrados como prova da própria obra de arte. Ao pesquisar aspectos estruturais, visuais em um quadro de pintura, Foucault admite a dificuldade de ler e dos cuidados que devemos ter com a leitura devido à enorme polissemia sígnica enviada pelo texto do autor. Rousseau (apud Darnton, 1986) também menciona a leitura de Jean-Jacques por trás dos textos, para o reconhecimento das faces e da descrição corporal dos autores, o que rompe as barreiras que separam o escritor do leitor e sugere em seu livro Émile ir além daquilo que pode ser apenas posto na escrita (p. 301). Essa tendência rosseauniana nos estudos passados sobre a leitura examinou autobiografias, depoimentos, expressões corporais, em que leitor e escritor se comunicam, cada um deles assumindo a forma ideal imaginada nos textos (p. 318).

Se a comunicação entre o leitor e o escritor é seguramente real e provavelmente possível (Darnton, 1986), a leitura não se reduz à mera introspecção ou a um texto vazio, mas ao compartilhar com outros. Assim, a leitura guarda no seu bojo literário características e especificidades corporais numa relação dinâmica entre a comunicação, a linguagem e as artes, que não tem sido pedagogicamente explorada nos programas de leitura ou na educação formal. O que se pode ler na experiência de dizer pelo próprio corpo? Qual o papel da linguagem corporal na construção do conhecimento literário no interior da escola?

Na concepção de leitura rousseauniana identifica-se a comunicação discursiva, ecológica e experimental com uma atenção explícita na construção e na divulgação da leitura relacionada à imagem e à dinâmica sócio cultural do leitor. Suas propostas teóricas e metodológicas orientam-se fundamentalmente para a pesquisa sobre a leitura coletiva, em voz alta, na família, em reuniões sociais, enfim em contextos naturalmente diferenciados, com a elaboração do imaginário individual, por meio da relação leitor/escritor.

Iser (1999) nos adverte para o desenvolvimento de “instrumentos interpretativos” do ato de ler, pelos quais diferentes estruturas de constituição de sentido são examinadas e, logo, decodificadas –, ou seja, o analista deve fornecer uma certa interpretação para um determinado texto (p. 11). Ele propõe a estética da recepção, referindo-se a um esforço heurístico que podemos conceber na leitura de um texto, percebendo sinais, conceituando fatos para organizar modos de interpretação, caracterizados na experiência de ler, que não se restringe apenas a um funcionamento estrutural indicado pelo texto. Pelo contrário, na abordagem iseriana, almeja-se um sistema de referências no âmbito do qual as realizações de leituras adquiram sua especificidade. Não se trata de elaborar métodos particulares de interpretação, mas de mapear as disposições mais básicas no interior as quais o ato interpretativo se torna concebível e necessário.

 

Jogando e aprendendo com as linguagens

No processo de inserir os aparatos de referência teórica e metodológica, faz-se necessário apresentar o material empírico, com entrevistas e análise de aulas em situações literárias, registradas em um contexto de dança na escola, no qual a literatura foi tematizada e apresentada por intermédio do corpo. Procura-se aqui investigar o desenvolvimento da leitura na dança, enfocando as relações de ensino e aprendizagem de textos literários representadas na dança-educação. Colheram-se os dados da literatura em entrevistas e filmagens em três escolas , com três professoras de dança, em horários previamente combinados. Sendo assim, as práticas corporais a partir da dança foram pensadas e postas em ação, uma vez que correspondiam aos interesses de mostrar a apropriação e a apresentação da leitura pelo corpo.

A discussão sobrecomo ler” mostrou, de uma forma geral, uma certa concordância com a necessidade da transformação da leitura escolar. As professoras com que se estabeleceu diálogo tinham muito claro o que é um novo paradigma de leitura e mostraram o seus saberes sobrecomo fazer leitura na escola de uma forma diferente

Esse foi o ponto de partida, ou seja, a leitura com os seus conhecimentos corporais e os seus diferentes modos de apreender um livro e as possibilidades de ampliação, transformação da leitura. Tomou-se a dança nas leituras vividas, como o fio condutor dos encontros, tecido pelo modo de se olharem as diferentes práticas de leitura no cotidiano escolar.

As discussões travadas ao longo dos encontros sobre suas práticas e suas possibilidades de despertar o gosto da leitura pela dança se basearam em perguntas abertas sobreum diferente modo de lerque as professoras buscavam responder, e daí surgiram práticas interessantes com coreografias e leituras. Eis as questões: como apresentar um outro tipo de leitura para o aluno? Como fazer diferente? Como fazer diferente e o aluno se apropriar do gosto de ler? Como garantir que cada aluno tenha as oportunidades de se expressar corporalmente? Como construir uma ação pedagógica em que o corpo seja reconhecido no ato de ler? Como criar espaço na escola para a leitura corporal? As ações das professoras na condução do processo de leitura pela dança mostrou assim a literatura orientada para traduzir os possíveis significados coreográficos na produção de várias leituras.

A preocupação com a inclusão de entrevistas e filmagens como forma de registro remontou a literatura pelos gestos capturados como leitura, substituindo o objeto livro no percurso da coreografia. A sucessão de movimentos elaborados, de imagens corporais ganha nova materialidade na leitura e o sólido conhecimento do texto é dissolvido na ação corporal. Essa forma de leitura considera uma especificidade de lembrar e capturar o texto. Certos jogos corporais falam as formas de transcrever o texto, de análise, de leitura e de interpretação dos atos corporais No trabalho de dirigir a coreografia, a professora e os alunos têm a intenção de prescrever as minuciosidade dos movimentos técnicos a partir do texto, de estudar a coreografia e o cenário. No trabalho de sentir o texto, busca-se captar e distinguir o enfoque literário, os ditos corporais com música no fundo. Numa nova abordagem da fita de vídeo, trabalha-se com as possibilidades de significação dos alunos, o que buscava dar relevo, realce e destaque à obra literária. O detalhe do movimento vira um acontecimento; o que é invisível no texto se torna tema, narrado apenas no corpo.

Em uma outra forma de exercício literário, a professora Arabel Issa apresentou a dança sem música. Registra-se o corpo dos alunos conduzidos pelos recortes dos textos literários, buscando falar corporalmente, na cena, os movimentos e as ações dos alunos que dançam, interagem entre eles, sentam, levantam, correm, aproximam-se do público, apontam para o cenário e usam segmentos corporais para dizer alguma coisa. Em alguns momentos houve a observação do cenário, dos elementos do palco e dos materiais disponíveis e percebe-se a possibilidade da leitura de uma história. Na movimentação dos alunos, alguns sinais corporais indicaram um tema em andamento. As atenções dirigem-se para os corpos dos alunos que os nossos olhos também focalizam como forma de leitura, modos de dançar, de falar corporalmente que imprimem a relevância do tema. São seus modos de significação literária. O dizer corporal orienta e restringe a leitura e o olhar do público. O cenário limita a leitura do público.

Depois, inicio-se outra forma de leitura com uma pergunta: Como surge um determinado espaço na dança?[3] Fala-se do espaço? Como é que se fala do espaço corporalmente? Perto, longe, dentro, fora...como se aprende a pensar o espaço e representá-lo? Nomear o espaço, conhecê-lo, marcá-lo e registrá-lo corporalmente são objetivos na leitura de uma obra de arte na dança. Como o corpo demarca, circunscreve, se situa no palco, ordena, organiza, refere-se a algo. Nas formulações corporais de um grupo de dança contemporânea, identifica-se o espaço marcado na dança. As marcas de um desenho geométrico socialmente constituído foram vivenciados nos corpos dos alunos forjando os conceitos de limitação espacial, de pausas nos traços e linhas do desenho, dando ao público a possibilidade de leitura dos desenhos ortogonais da obra de Mondrian pela dança.

O espaço, como tema e modo de ler pela recepção visual de uma dança, incorpora na atuação coreográfica o espacial, inscrevendo outros modos de leitura. O espaço produzido corporalmente traz uma referência fundamental às atividades artísticas. São outras formas culturais de registro que também deixam marcas de leituras para o público, o espaço marcado pela dança, conduzido como linguagem. O corpo transformado e constituído pelos modos de fazer leituras, de agir e pensar por meio de fontes artísticas. Essa forma de uso da linguagem insiste e persiste na busca da leitura.

Nesse sentido, analisaram-se caminhos diferenciados de leituras, dos quais podem advir constructos teóricos distintos, com intervenções concretas que estão relacionadas com a constituição do sujeito leitor. Da identificação e da discussão dessas questões foram surgindo caminhos pedagógicos de produção e organização da leitura no espaço escolar; sobre a constituição da literatura corporal.

O trabalho parte desse quadro pedagógico interpretativo como um todo, tratando do intercâmbio entre a linguagem corporal, a literatura e os estudos da linguagem, buscando compreender e conceituar modos de elaboração e transmissão literária nas práticas corporais, principalmente no contexto escolar. Entendendo a linguagem corporal como atividade sígnica e constitutiva da experiência estética, da cultura, patrimônio histórico e artístico, analisaram-se situações corporais vivenciadas pela literatura, enfocando a dança como expressão prática interativa entre o fictício e o imaginário do aluno.

Propõe-se, neste trabalho, uma concepção pedagógica em que a leitura precisa ser apropriada como vivência, como experiência necessária importante, lúdica, com envolvimento prático. É a ação da leitura que mais interessa como atribuição de significados de ordem corporal, tentando-se entendê-la como narrativa, como relato para um grupo e que seja praticada como algo que possa ser realizado e ao mesmo tempo vivido e assim supere o caráter utilitário da leitura escolar.

A leitura utilitária é aqui denunciada como uma leitura em fragmentos, em que os textos para leitura são incompletos, curtos: mensagens, trechos, resumos e informações. São partes inacabadas, sem sentido, que marcam o ato de ler em pedaços freqüentemente interrompidos pelo aluno, que não consegue estabelecer com o texto a fruição, o divertimento e a interlocução. Este tipo de leitura se caracteriza pela falta de espaço de leitura na escola. Falta espaço para o contato com textos, obras literárias e práticas corporais que incentivem a leitura como vivência. Eis o problema. Apesar de se falar muito sobre leitura na escola e muitas propostas serem apresentadas, cabe indagar que tipo de livros são lidos pelos alunos. Existem livrarias em todos os bairros e municípios brasileiros? Qual o modo mais freqüente de o aluno obter um livro? Existem bibliotecas em todas as escolas? Além do paradoxo, as novas tecnologias com sua modernidade e a quantidade de informações e estímulos que chegam aos alunos estão cada vez mais afastando estes da experiência corporal.

A leitura corporal impressiona de um modo diferente quem . Ela move as idéias, ações, valores e sentimentos que nos são afetados corporalmente, quando a praticamos. Levar essa prática para o contexto escolar é o desafio que se lança aos professores. Essa prática, por considerar o processo de apropriação da leitura como vivência, engendra atos, técnicas e formas como uma prática refletida, fundamental para a leitura compartilhada com o escritor, professor e alunos.

Compreender a leitura a partir desse olhar superador tem implícito o reconhecimento da importância da leitura como vivência na escola, movimenta o que pode-se fazer com e sobre os livros e textos, trocando saberes e refletindo corporalmente. A professora Luiza Lagoas diz que sempre partiu dos livros para criar situações corporais de contos, poesias por meio da dança, partilhando sentimentos e reflexões junto com seus alunos, representando para o leitor a arte narrada corporalmente. Segundo a referida professora: “O que traz vida para a leitura é entrar numa prática que a leitura pode ser partilhada com os seus interlocutores, tanto para quem quanto para quem pode proporcionar a leitura, coreografando a literatura, a poesia, os textos com uma dimensão artística de clássicos literários, diferentes gêneros e estilos.”

O modo de realização dessa forma de leitura é capaz de inserir uma prática refletida no momento em que acontece e se situar em qualquer espaço da escola onde se pode concretizar situações em que o grupo assume o caráter de narrar corporalmente uma história construída coletivamente, uma música, registrar ações de personagens ou grupos que foram lidos por aqueles que coreografam, seja uma autobiografia, relatos, sejam histórias de vida. Isso chama-se de vivência da leitura, a leitura em ação, real e corporal permitindo fazer e refazer o processo de ler, sistematizando e suavizando-a por meio da dança.

Nesse sentido, ler significa representar, interferir no processo de apropriação, deixar as marcas corporais nos traços da escrita. Dançar textos e histórias interpretadas pela própria experiência corporal, singular e coletiva, engendra novos sentidos para a superação da dureza da leitura instrumental.

É preciso lembrar que, no âmbito da rede eletrônica, os jovens têm outros modos e lugares de ler. Lê-se nos jogos eletrônicos, nas aventuras do RPG, nos blogs, na Internet, em toda uma produção atual que faz uso de meios tecnológicos que favorecem os que lêem e escrevem. Essa é uma prática de leitura experimentada que a escola precisa reconhecer e também com ela aprender.

A proposta dessa monografia se insere na linguagem como ação e se caracteriza no discurso motor. Iser, Rosseau, Austin, Vygotyky e Fish são os que mais ostentam as dimensões da linguagem constitutiva, social, enunciativa e performativa do ser e têm investigado esta como atividade social, coletiva, motivada e contextualizada, pelos quais o discurso não-verbal pode intervir como educação e cultura. Desse modo, esses autores ressaltam a “linguagem como ação”, destacando o uso da enunciação geral que tem como principal finalidade a comunicação social e histórica do ser. Eles estão atentos à produção de sentidos em fatos e eventos, entendendo que as idéias significativas expostas nos panoramas comunicativos dentro da linguagem humana devem ter algum modo de leitura ou representação social que se alicerça na performance cultural de quem as usa.

Iser (1999), ao falar da teoria da recepção, sugere a leitura perceptiva do leitor com relação direta com suas bagagens culturais ou autobiográficas. O autor diz que a formação do “eu” do leitor está no encontro de várias vozes e nas suas representações sociais. Ele também menciona que os efeitos da recepção na ficcionalidade devem ter algum tipo de efeito na realidade sócio-psicológica do sujeito.

Essa direção fundamenta a relação entre a ficção, a realidade psicológica do sujeito, a linguagem e a literatura. Nesse sentido, as questões relacionadas aos modos da construção literária, da leitura, da instância ficcional buscam diversas possibilidades pedagógicas para a produção da leitura, espaços e tempos singulares para a construção literária e variados contextos para a linguagem ficcional se manifestar.

Tais possibilidades surgem tanto no texto, quanto das disposições peculiares do leitor: o texto permite diferentes opções, as tendências próprias do leitor, diferentes insights. E como não sentido específico no texto, essa aparente deficiência é, na verdade, a matriz produtiva que torna o texto significativo, que lhe permite fazer sentido em diversos contextos históricos. (Iser, 1999, p. 33)

Nesse sentido, é possível argumentar que, analisando os movimentos corporais em forma de dança, dentro de uma perspectiva literária, pode-se ler corporalmente o funcionamento de um texto coreográfico e também estabelecer elos entre a literatura e a linguagem corporal.

A maneira como Vygotsky fala do funcionamento do signo e o modo educacional de se interpretar a interação semiótica na história social do sujeito sugere que a dimensão sígnica não pode estar ausente das questões de ordem literária no interior da escola. A realidade inter e intrapsicológica do sujeito são de natureza histórica e social, fundamentalmente mediadas e construídas por signos. As atividades corporais expressas pela dança têm uma significação social, constituiem-se em atos específicos na linguagem educacional, de modo que a corporeidade do sujeito, sua história de vida, suas leituras de mundo tornam-se possíveis no seu discurso motor. Assim, a cultura do sujeito, construída significativamente pelos signos, apresenta um caminho específico para a compreensão de ler as escrituras corporais do ser humano.

O uso de signos conduz os seres humanos a uma estrutura específica de comportamento que se destaca do desenvolvimento biológico e cria novas formas de processos psicológicos enraizados na cultura. (Vygotsky, 1991, p.45)

Compreendendo que os signos são representações mentais que substituem os objetos do mundo real, pode-se considerar o corpo como um elemento mediador do livro, do texto, da escrita, da palavra, com uma ação para significar algo, como atividade constitutiva coreográfica de um evento literário. Concebe-se, assim, a dança como um modo de ler situado, contextualizado, em que se pode analisar versões de fatos literários com efeito estético corpóreo e expressivo, compreendendo a leitura como produção cultural de signos e sentidos. É então em relação à leitura assim entendida em interação com os processos de significação corporal dos alunos que se quer experimenta-la. Os pressupostos teóricos dos signos, os autores da linguagem e da estética da recepção cooperam para o nosso estudo.

A conclusão a que chegamos, pois, é que todos os objetos são construídos e não descobertos e que são construídos através das estratégias interpretativas que colocamos em funcionamento. Isto, no entanto, não implica a subjetividade, pois os meios através dos quais os objetos são construídos são sociais e convencionais. Ou seja, o ‘eu que realiza o trabalho interpretativo, que vida a poemas, indicações de leituras e listas é um eu público e não um indivíduo isolado. Ninguém acorda de manhã e (à moda francesa) reinventa a poesia ou elabora um novo sistema educacional ou decide rejeitar a série em favor de uma outra forma de organização totalmente original (Fish, 1993, p. 162)

É assim que a leitura atua na cultura, desenvolvendo em nós formas cada vez mais complexas de interpretação de fatos e eventos, transformando assim a leitura em construção coletiva. O efeito da dança é semelhante a um ato de leitura, cria a transmissão de experiências, implementa um grande número de signos visuais complexos e convencionais e abre inúmeros tipos de leituras para o ‘eu realizar o trabalho interpretativo. Desse modo, assumir pedagogicamente a idéia de mediação semiótica leva-nos a uma posição educacional entre leitura, dança e as artes em de que o fenômeno da leitura é humano, social, coletivo e ao mesmo tempo individual.

Da dança passa-se à leitura. Parte do esforço de significação que o leitor faz ao querer interpretar as construções artísticas na apropriação e utilização de recursos semióticos que este dispõe na sua vida cultural. As suas condições sociais são determinantes e vão se constituindo em categorias que organizam diferentes modos de ler. Nessa pressuposição de significação, Fish (1993) apresenta o olhar como um valor significativo no ato de ler:

De fato estas categorias são a própria forma do ato de ver, no sentido de que como se imaginar um fundamento perceptual mais básico do que aquele que elas oferecem. Ou seja, não como se imaginar um momento em que os meus alunosapenas vejam’ uma configuração física de átomos e então atribuam a esta configuração uma significação, de acordo com a situação em que eles se encontrem. Estar em uma situação (esta ou em qualquer outra) significa ‘ver com os olhos dos interesses, objetivos, valores, normas e práticas estabelecidas desta situação, e significa, portanto, conferir significação ao ver e não depois de ver. (p. 163).

Pode-se ver, nos corpos dos sujeitos que dançam, indícios das obras de artes, inscrevendo-se nos seus corpos os produtos de estruturas de pensamento sociais e culturais: poesias, textos, desenhos, rituais e pinturas (Fish, 1993, p. 162). Pode-se observar o público apropriando-se ativamente daquilo que os seus corpos transmitem. Ele vêem, apontam, discutem as práticas motrizes. Além do sistema da leitura, apresentando uma configuração física de textos literários e desenhos, o sistema da escrita funciona como forma de registro coreográfico e auxílio para a representação corporal. As leituras do público são interiorizadas à medida que vão presenciando os atos motores dos alunos, interagindo com eles, para ler seus corpos. Pode-se ler pela escritura corporal do outro o que ainda não se conhece, pode-se vir a saber o que ainda não se sabe pelo corpo do outro. Público, dança e saberes se interpenetram então na elaboração coletiva da leitura pela transmissão artística inserida em um livro, na pintura, nas palavras e objetos.

Mas se os ‘eus são constituídos por formas de ver e de pensar que são inerentes às organizações sociais, e se esteseus’ constituídos, por sua vez, constituem textos de acordo com estas mesmas formas, então não pode haver relação de adversidade entre textos e ‘eus porque ambos são produtos correlatos das mesmas possibilidades cognitivas. (Fish, 1993, p. 165).

A possibilidade de conhecimento de algo pela leitura, em uma determinada situação depende da ajuda dos signos. O uso de signos permite ao leitor ampliar seueu’, mediar suas leituras. Atuando externamente ao homem, os signos realizam a constituição do ‘eu’ a partir da mediação semiótica (a mediação pelos signos) que acontece no nível intrapsicológico do sujeito, isto é, no nível cognitivo, revelando assim a sua leitura humana.

Nesse sentido, a leitura exige como recurso constitutivo do ‘eu’ os signos como instrumento que fundam uma nova maneira de se compreender o funcionamento das formas mais complexas de leitura do ser humano, que medeia, regula, transforma-se e constitui uma atividade meramente humana. A relevância fundamental das práticas corporais da leitura parte da constituição das funções psicológicas superiores do ‘eu’, que se organizam e regulam as condutas simbólicas dos que dançam, cujo efeito se manifesta no jogo sedutor que as práticas corporais constituem entre os interlocutores. Segundo Luria (1987) um aspecto importante da cognição é o sentido que o leitor elabora e vive: “O sentido é o elemento fundamental da utilização viva, ligada a uma situação concreta efetiva por parte do sujeito.” (p. 46)

Os sentidos do dizer corporal se transformam em leitura significativa, aprofundam a busca ativa do ler, mudam os modos de elaborar a leitura, operam com signos para estabelecer relações e interlocuções. A intenção se transforma em texto e a atenção em leitura, emergindo na cognoscitividade o poder de constituição do seueu’. Serão os signos motores que apontarão para o leitor os objetos culturalmente significativos e que dirigirão sua leitura com gestos literários. Será por meio da interação com os outros, com o livro ou com outro objeto significativo, que o sujeito poderá desenvolver seueu’. “As relações sociais ou relações entre as pessoas estão na origem de todas as funções psíquicas superiores.” (Vygotsky, 1991 p.163) As práticas corporais humanizam a leitura, tornando-a mais visceral e sedutora, lúdica por excelência, e possibilitam o planejamento literário / coreográfico, agindo no plano concreto interpsicológico e se tornando intrapsíquicas quando forjam o posicionamento do leitor.

Por essas considerações, pode-se dizer que os temas literários tratados na escola podem expressar um sentido/significado em que dança e literatura se interpenetram disciplinarmente. As atividades literárias podem dar oportunidades para que o aluno reconheça a possibilidade de usar o seu corpo como forma de expressão e comunicação, o que sugere o estabelecimento de situações pedagógicas de construção de textos corporalmente. Essas situações em que a expressão corporal se apresenta como um dizer textual, como desejo de ser lido, e seus destinatários, os leitores buscam descobrir as propostas, os temas de leitura que foram para eles, apresentados.

Nas atividades de leitura de diferentes obras literárias de Clarice Lispector, Drummond e Nelson Rodrigues pela companhia de dança “Vacilou, Dançou”; a professora Carlota Portella, propõe uma produção coletiva em que as obras sejam construídas corporalmente entre os alunos e o professor. Segundo a professora, para a construção de textos nos moldes corporais, os atores sociais devem se guiar por atividades de avaliação e interpretação. São atividades em que os alunos e o professor discutem as características de gênero do texto que serão trabalhados, se o dizer corporal tem consonância com o texto, se há coerência no desenvolvimento das idéias expressas no corpo, se o nível do conteúdo literário corresponde às bagagens culturais do leitor escolhido, se os recursos corporais são utilizados de forma que possam se apropriar do texto, se a obra literária pretendida é adequada à classe, aos objetivos interdisciplinares, às situações de interlocução professor/aluno. A professora Arabel Issa concorda também que essas atividades devam ser discutidas coletivamente entre professores, alunos e texto e que a revisão da obra literária e da coreografia são procedimentos pertinentes para a reflexão e a apreensão da prática da leitura.

Para Carlota Portella, o contato com a coreografia na produção do texto parte de uma análise criteriosa do texto coletivamente (alunos e professor), dos problemas e dificuldades enfrentados pelo grupo na construção da coreografia. Isso permitirá possíveis caminhos pedagógicos de estruturação da dança, o uso de outros recursos de articulação dança/texto, de orientação na comunicação e exercícios para a construção corporal coreográfica: exercícios para apreensão da leitura, experimentar e produzir o texto com o corpo. O exercício de experimentar diferentes tipos de espaços apresentado na mostra de dança do CCBB (descrição do espaço e do ambiente com o corpo), segundo a professora Arabel Issa é um bom exemplo de atividade de construção de um texto, é um exercício de leitura para aprender a estruturar num texto relações espaciais e temporais (conceitos como antes, depois, aqui, agora, longe e perto), usando o corpo como instrumento de leitura. Assim, a professora assevera: “Ao lado dos exercícios corporais, que são de extrema importância na produção do texto, devemos levar o aluno às formas mais elaboradas do texto, ao domínio das normas cultas, das características de um texto escrito, fazer menção ao gênero do texto”.

Iser (1993) faz menção aos exercícios estruturantes do texto, faz menção à co-autoria que o leitor deve ter como responsabilidade social quando busca os recursos de coesão, de identificação e preenchimento de lacunas de informatividade do texto, da estruturação e de variedades de registros. Tais lacunas vão sendo preenchidas por meio de aproximações sucessivas do sujeito que pensa com o texto, se envolve com o texto, pode representá-lo e mediá-lo nas suas ações corpóreas.

Na escola, essa concepção de leitura pode orientar o horizonte dos educadores comprometidos com a formação plena do aluno, dos que buscam uma prática consubstanciada em teorias nas áreas dos estudos da linguagem, da literatura e das práticas corporais significativas. Desse modo, para organizar sua ação pedagógica, partindo da construção coreografica/literária, é preciso que os professores estabeleçam bem as relações entre dança e literatura, compreendam as práticas corporais como caminhos possíveis de representação literária, sejam capazes de identificar a variedade artística impressas num texto e, assim, prever a polissemia de significados que os alunos enfrentarão de acordo com as suas bagagens culturais, mas também com a intervenção que orienta para a ação de preencher lacunas nos indivíduos, que comporta alguns momentos interativos, conforme menciona Iser:

Em princípio, as lacunas organizam os segmentos num campo de mútua projeção interativa, que conduz a uma estrutura do tipofigura e fundo’. Cada segmento lido pode ser visto como figura contra o fundo do segmento lido antes, e o fundo, por sua vez, necessariamente molda a figura. Essa interação latente atualizada durante o processo de leitura, leva a uma instabilidade que se encerra com a produção de uma gestalt [4]” (1993, p. 30).

Por outro lado, é necessário que os educadores conheçam o processo sígnico da aprendizagem de um texto literário. Esse conhecimento deve estar associado à compreensão das relações entre a literatura e a dança, permitindo ao professor orientar as coreografias literárias, o que pode ser dito corporalmente, identificando qual o processo de leitura que o aluno se encontra, interpretando hipóteses com que os alunos estão operando, levá-los a confrontar as hipóteses com a experiência corporal, com as convenções literárias, os gêneros, etc.

Desse modo, a seqüência de idéias que se forma na mente do leitor com base na estruturação prefigurada do texto, isto é, nas suas operações estruturantes previamente determinadas, é a maneira pela qual o texto é traduzido na imaginação do leitor (Iser, 1993. P. 31).

Além disso , para definir a ação pedagógica na direção e orientação da apropriação da leitura literária pelos alunos, o professor precisa compreender e assumir a linguagem como ação, de leitura como atividade coletiva, precisa ter clareza da expressão corporal, do que é arte, o que é uma coreografia. Precisa compreender os princípios que falam das relações escritor/leitor, texto/leitor e precisa conhecer as peculiaridades de diferentes gêneros literários, os níveis de tratamento pedagógico de diferentes textos.

 

Conclusão

Urge a necessidade de uma mudança significativa na concepção dura de leitura e é o que vem ocorrendo desde o século XVII, e é interessante que essa mudança também deva chegar às escolas, sobretudo às escolas públicas do ensino de jovens. Todavia, as respostas que este trabalho tentou dar às questões, no início do estudo, parecem deixar clara a função social que tem a escola na orientação do processo de apropriação da leitura, conduzindo os alunos da exploração corporal dos textos à leitura, com a dança levando-os a conhecer melhor a literatura para a interlocução e a expressão cultural.

É importante ressaltar que a concepção de leitura que aqui se defende se faz presente em algumas manifestações artísticas em nível nacional, especialmente naquelas integradas no quadro de novos caminhos para a arte contemporânea neste momento, ensinando a arte, a literatura, a dança como as professoras mencionadas que deram uma direção e algumas orientações pedagógicas que podem ser exercidas se fundamentadas em uma teoria segura e um processo sólido para a formação do leitor. Possivelmente, a socialização deste trabalho fornecerá os elementos de base para a construção de uma perspectiva pedagógica de formação do leitor pela dança que supere a dureza das práticas de leitura fragmentadas e que venha responder aos desafios para o desenvolvimento do gosto pela leitura nos nossos dias.


 

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[1] Entrevistamos a professora Arabel Issa, professora da FAETEC e a professora Luiza Lagoas do Instituto Abel. Todas as duas, são professoras de dança do Ensino Fundamental e possuem um conhecimento acumulado sobre literatura e dança construídos em práticas de leituras com sentido para jovens na escola.

[2] O corpo é um território revelador, porque nada pode esconder. Porque ele é o lugar da vida, cultura e circulação, é o lugar das relações sociais, do trato entre os indivíduos, do letramento e da manifestação total do ser. (LOPES, L. P. M. Discurso, corpo e identidade: masculinidade hegemônica com comunidade imaginada na escola in: Revista Gragoatá – revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense, Niterói, pp. 207-226, 2 sem. 2001, UFF organizada pelas professoras Elizabeth Chaves e Solange Vereza)

[3] Uma série de espetáculos de dança vem sendo mostrado no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) no mês de abril de 2004, com uma programação variada sobre os conceitos de espaços em que as coreografias são feitas para influenciar na leitura de temas especiais a partir da dança contemporânea com o tema: “O espaço que nos inspira”.

[4] Pedagogicamente, a teoria gestalt supõe atividades de diferentes naturezas em que o sujeito possa falar do seu mundo, ser espontâneo, mostrar a sua situação psicológica e social, e assim atuar com o seu mundo, buscando a compreensão de si mesmo e, ao mesmo tempo, sendo acompanhado por um professor facilitador da sua aprendizagem.

 


 

[1] O curso “O leitor em questão: entre o texto e a leitura” foi desenvolvido pela disciplinaAnálise da Interação” da Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense – UFF, de setembro de 2003 a fevereiro de 2004 com a orientação e dinamização da Profa. Maria Elizabeth Chaves de Mello.