PETRARCA E A IGREJA DE SEU TEMPO

Veridiana Aderaldo Skocic (UERJ)

 

A transformação política e territorial que pôde ser verificada na Itália setentrional durante o século XIV não ocorreu na região centro-meridional da península graças a existência de duas fortes monarquias: o Estado Pontifício e o Reino de Nápoles.

Em Roma, entretanto, Cola di Rienzo fundou em 1347 uma república anti-aristocrática, aproveitando também a ausência do Papado o qual havia sido transferido para Avignon em 1305.

É neste contexto que Petrarca graças não às suas qualidades pessoais, mas sobretudo aos seus méritos literários, engaja-se , diretamente, em uma das mais importantes questões da Idade Média ocidental: O Cisma da Igreja. Assim, pretendemos, neste breve trabalho, apresentar algumas considerações sobre este importante personagem da Itália medieval - Francesco Petrarca - e sua relação com uma das mais importantes instituições do mundo ocidental : a Igreja.

Francesco Petrarca sempre esteve profundamente ligado às questões de seu tempo, fossem elas do âmbito literário ou não. A questão religiosa, por exemplo, é um elemento fundamental não na obra (observa-se a poesia religiosa do Canzoniere), mas também na vida do grande poeta.

Com a eleição do papa Benedito XII houve um movimento favorável ao retorno da sede papal (então em Avignon) à Roma (sua antiga sede). Deste movimento tomou parte Petrarca o qual escrevera duas epístolas ao pontífice eleito. Duas outras correspondências foram enviadas, respectivamente, em 1342 a Clemente VI e em 1366 a Urbano V. Uma das idéias recorrentes nestes escritos era , exatamente, o retorno do papado para Roma, cidade que, segundo o poeta, deveria abrigar os representantes dos dois poderes: o espiritual e o temporal, uma vez que Petrarca vislumbrava o retorno dos princípios do Império Romano. De acordo com este conceito sobre os direitos de Roma, Petrarca concordava com Cola di Rienzo (importante personagem da história política romana) o qual aproveitando-se da ausência do papado, fundou em 1347 uma república anti-aristocrática cujo objetivo era restituir a dignidade ao povo romano. Com efeito, a correspondência entre Cola e Petrarca foi muito intensa, onde o poeta exprime a sua indignação contra Avignon, a qual, segundo ele, havia usurpado os direitos de Roma. Ainda dentre as várias cartas enviadas a Cola, o poeta faz referências à ligação da sede de Avignon com a corrupção da Igreja. Para tanto, Petrarca utiliza-se de duas imagens: Babilônia e o labirinto. Para o poeta, Babilônia era sinônimo de confusão, mas o principal motivo pelo qual ele denomina desta forma a cidade francesa é a desonestidade e a frivolidade dos religiosos que ali se encontravam. Petrarca menciona também o vício da avareza, entendida no sentido dantesco como a avidez por riquezas obtidas sob quaisquer formas e por quaisquer meios. A segunda imagem, isto é, o labirinto, alude aos segredos da política papal e suas intrigas; o poeta imagina Avignon como os antigos labirintos, os quais possuíam um fio que reconduzia à luz, à saída; assim, na sede francesa também havia um meio de se vencer os obstáculos, de “encurtarcaminhos: o ouro; era, em suma, um emaranhado político que prejudicava os interesses honestos e incentivava a corrupção.

Para Petrarca Avignon era quase uma morada infernal, repleta de mentira, soberba e libidinagem; todo o mal estava concentrado ali. Neste sentido, pode-se observar que o poeta ( talvez de uma forma um tanto exagerada) tendia a considerar nas pessoas ligadas ao ambiente papal, somente elementos de negatividade, descartando qualquer qualidade que estas , eventualmente, pudessem apresentar.

É interessante observar que não obstante a posição extremamente radical de Petrarca perante a Igreja de Avignon, a sua relação com a cúria fora muito boa. Com efeito, bispos, arcebispos e cardeais dentre os quais Egidio de Albornoz, Guido de Bologne e Bertrando du Poyet sempre demonstraram uma enorme estima e respeito pelo poeta. Se Petrarca, então, era admirado e respeitado pela Igreja de seu tempo, como explicar o comportamento do poeta? Vimos nas inventivas petrarquescas o desabafo do italiano que não quer a influência francesa no governo da Igreja e censura a lentidão da administração eclesiástica; muito provável é que por trás de seus ferozes desabafos se encontrem a paixão política e a aversão à França.

Nota-se que o desafeto de Petrarca com relação à cúria começaram em 1340 e tornaram-se cada vez mais freqüentes após o movimento encabeçado por Cola di Rienzo. Neste período, o poeta tem um acesso de furor ascético, representado no Secretum, momento no qual reacenderam-se as paixões políticas, enquanto a religião ganhava cada vez mais espaço em sua alma. Fruto do misticismo ao qual une-se o amor pela pátria, foram os sonetos contra Avignon – momento de exaltação e celebração da vida monástica.

Em tom profético, Petrarca em várias ocasiões exorta o pontífice a retornar à Roma e a este recorda que a vida é breve e que um dia ele também estará perante ao tribunal de Cristo para ser julgado como servo e não como chefe. Esta linguagem, própria dos místicos coroa a idéia comum de grande parte dos reformadores religiosos: reconduzir a Igreja aos antigos costumes, resgatando o seu caráter irrepreensível de um dia e, para isso, o poeta acreditava ser fundamental o retorno da sede papal à Roma.

Concluí-se, finalmente, que Petrarca, não obstante todos os seus escritos de reprovação contra a Igreja não pode ser considerado um rebelde, na medida em que a sua não era uma cega”, mas permeada de racionalismo e senso crítico.Bastaria, assim, considerar os desabafos do poeta aos sacerdotes para compreender o que realmente almejava: presenciar a reforma de uma instituição que considerava corrupta e decadente.