UM
BEIJO
DADO
MAIS
TARDE
(RE)LENDO E (RE)ESCREVENDO O 
MUNDO
Eloísa 
Porto Corrêa (UERJ)
 
Introdução
Um 
beijo 
dado 
mais 
tarde,
projeto
estético
revolucionário 
e 
ousado
de Maria Gabriela Llansol,
entre muitas outras
questões, problematiza e polemiza,
sem
intenções de
esgotar,
vários
conceitos relacionados ao
processo
comunicativo
entre os
seres,
como
língua e
linguagem,
texto e
contexto,
leitura e
escrita,
entre
outros.
O 
primeiro
conceito 
a 
ser 
problematizado é o da 
própria
Língua,
em
seguida 
e 
em
conseqüência 
dele, inúmeros 
outros
conceitos
também
serão 
questionados. A 
língua
humana, 
na 
narrativa, 
aos 
poucos 
é rebaixada de 
seu
posto
hegemônico 
de 
sistema 
de 
linguagem
mais
completo 
e 
complexo, 
revelando-se 
falho,
arbitrário 
e 
incapaz 
de 
expressar
com
exatidão 
as 
necessidades 
de 
cada
falante.
Paralelamente a este fato, outras 
linguagens não convencionais vão sendo experimentadas e se mostrando capazes de 
exprimir mensagens com bastante propriedade, ainda que de cunho mais subjetivo, 
estético ou plástico. De maneira que estas linguagens, ora desprestigiadas e 
relegadas a um injusto segundo plano, revelam-se eficientes complementadoras e 
aliadas da língua na dificílima e ingrata tarefa de expressar.
Assim, a língua deixa de ser um sistema tão 
fechado, excludente e auto-suficiente para se abrir aos encantos e contribuições 
que outras linguagens possam dar ao processo comunicativo. A parceria ora selada 
entre língua e linguagens implica num enriquecimento e também numa fatal 
amplificação do conceito de texto. Este deixará de se resumir a um conglomerado 
de palavras, para ganhar outras imagens, outros sons, cheiros, gostos, etc... 
Enfim, transforma-se o mundo num grande texto, cheio de mensagens em linguagens 
várias, aguardando apenas para serem lidas.
 
(Re)ler 
o 
mundo
Na
obra de Maria Gabriela Llansol,
ler
não é
simplesmente 
percorrer 
com a 
vista o 
que está 
escrito, proferindo 
ou 
não as 
palavras, 
mas conhecendo-as (FERREIRA, 
1999, s.v.),
conforme define o
dicionário da
língua portuguesa
Novo Aurélio 
Século XXI e
como se costuma
empregar o
termo na contemporaneidade.
Ler ganha uma abrangência 
muito maior em Llansol, porque rompe com as fronteiras do papel e da linguagem 
verbal, como se viu, para ganhar o mundo e explorar as infinitas linguagens 
não-verbais com que este pode transmitir mensagens. Concepção que não se 
restringe a Um beijo dado mais tarde, mas se observa em toda a sua obra, 
como nos Apontamentos da Rua de Namur (ARN).
I ––––––––––– o 
encontro
inesperado do
diverso é
assistir o 
belo a 
comunicar 
com o 
silêncio; a 
fraccionar a 
imagem nas
suas diversas
formas; 
ajudá-las a 
levantar o 
véu 
para 
que se mostrem 
mutuamente na 
beleza 
própria, e
fechar os 
olhos 
para 
que se 
não rompa
a 
delicada
tela 
desta 
vida,
ou então falar.
Talvez assim:
Uma 
cena 
erótica 
simples 
em 
que a 
luz dos 
pinheiros se 
proteja 
sobre a 
Presença. 
Tal uma 
sensação de
pânico 
posta à 
raiz do 
prazer 
que 
eu tenho
em 
encontrá-la; e 
em 
ser 
levada 
por 
ela desta
terra –––––––––––– 
para uma 
terra 
não 
queimada pelas
palavras;
(...)
porque sinto,
porque quero,
e 
porque crio
em 
linguagem,
ou 
em 
outro 
sinal, o
pensamento do
fulgor 
que 
já estava
criado. (ARN, 
p. 135)
A 
necessidade 
de 
incluir, 
ao 
lado 
da 
língua
humana, 
outras 
linguagens 
não-verbais, 
torna
em
possível
expressão 
(aguardando 
para
ser 
percebida) 
tudo. 
Desta 
forma,
em
princípio, 
o 
mundo 
é 
texto
potencial 
esperando 
ser 
decodificado 
para
que
comunicações 
se efetivem:
Esses 
objetos 
transpostos 
agora 
para o 
nada 
desconhecido, 
eram 
som, eram
obediência, 
eram 
certamente 
potencialidades de 
texto 
vivo, 
ultrapassada a 
língua 
morta 
em 
que sonhavam. 
(UBDMT, p. 99)
Certamente, 
nenhuma das 
definições 
trazidas 
pelo
Novo 
Aurélio 
Século 
XXI (FERREIRA, 
1999, s.v.) 
para 
o 
verbete 
“texto” 
é 
capaz 
de 
abarcar 
a 
amplitude 
de significação e de possibilidades 
propostas 
no 
excerto
anterior
para 
a 
palavra:
Texto 
(ês) [Do lat. textu, ‘tecido’] 
S. m. 1- 
conjunto 
de 
palavras,
frases
escritas 
(...) 2- 
obra
escrita 
considerada na 
sua
redação
original 
(...) 3- 
palavras 
bíblicas 
que 
o 
orador
sacro 
cita (...) 4- 
Página
ou
fragmento 
de 
obra
característica 
de 
um
autor 
(...) 5- 
Texto
manuscrito
ou
impresso 
(...) 6- 
qualquer
texto 
destinado a 
ser
dito
ou 
lido 
em
voz
alta 
(...) 7- 
excerto 
de 
língua
escrita
ou
falada 
(...) 8- 
Toda 
e 
qualquer
expressão,
ou
conjunto
de 
expressões,
que 
a 
escrita 
fixou (...) (Novo 
Aurélio 
Século 
XXI, p. 1956)
A consideração de um universo muito maior 
de textos em diferentes linguagens: visuais, olfativas, gustativas, táteis, 
auditivas, implica a necessidade de aguçar os sentidos para recebê-las, vindas 
de todas as direções:
2 --- Lá, onde estás, não ouves.
      
Lá, 
onde estás,
só podes
ler 
sinais 
nos 
meus 
lábios. Presta
atenção.
Mesmo 
os 
mortos, 
continuam a 
viver. 
Nestes 
textos
que
te 
estou a 
ler,
soletrando,
deixo cair imagens.
Sim, 
sim, podem 
ler-se. 
Não 
te vou 
dizer 
quais, 
ou 
talvez, 
lá 
longe, acabe
por –––––– (UBDMT, 
p. 101)
Essa 
concepção,
que 
transforma o 
mundo
em
um
enorme
texto
ou 
num 
mosaico 
contenedor de 
infinitos 
microtextos, acaba 
por
dilatar 
o 
conceito 
de 
texto 
e de 
leitura,
como
também 
fizera Paulo Freire (FREIRE, 1983: 25-41) 
em
suas
reflexões
sobre 
a 
educação.
Ler
deixa 
de se 
restringir 
à decodificação de 
textos
escritos
em
linguagem
verbal,
para
ganhar 
uma 
dimensão 
ilimitada de possibilidades. Torna-se, 
pois,
possível
ler
um
objeto, 
uma 
casa, 
uma 
obra 
de 
arte 
(como
um
quadro, 
uma 
música
ou 
a 
estátua 
de 
Ana 
e Miriam) e 
até
um
outro
ser
vivo,
como
um
cão
ou 
uma 
árvore,
por
exemplo:
Todos os
objetos, na
casa, devem
estar à 
volta deste,
obedecer o 
livro 
aberto 
nos 
joelhos, e à
tranqüilidade 
– 
ainda 
sem 
escrita – da
criança 
que os 
lê. (UBDMT, p. 
25)
Foi 
então 
que a 
árvore, 
partindo do 
arvoredo,
veio à 
minha 
casa 
falar 
comigo, 
ou seja, 
pediu-me 
que a 
acolhesse 
ininterruptamente
para 
aprender a 
ler; (...) 
Ela viu, no
pinhal, 
um 
animal desta
casa 
que está
doente. 
Ela afirma
que 
um 
sopro de
vida é 
leitura. (UBDMT, 
p. 111-112)
Infausta pede 
ao 
velho 
que 
lhe encontre 
uma 
nota de 
laranja 
escondida nesta 
sala; o 
velho, 
que é Aossê se 
tivesse 
vivido 
até aos 
noventa 
anos, traz-lhe
um 
gomo musical 
do 
seu 
texto – uma
faixa 
real de 
poesia. (UBDMT, 
p. 88)
Íamos 
então 
fazer 
cópias da
noite, abrindo 
a 
porta da
sala de 
jantar 
onde se 
encontravam os 
quadros;
enquanto
ela contava,
eu levantava 
os 
olhos 
para as 
telas 
que faziam
descer uma 
noite 
passiva das
paredes;
primeiramente
não víamos
nada , 
só 
véus de 
branco; 
depois, o
que 
ela dizia ia 
seguindo o percurso de uma 
imagem e, 
elevando-se da 
voz, ficava 
representado 
em 
espaços 
limitados na 
parede. (UBDMT, 
p. 104)
Essa leitura amplificada (dirigida a um 
universo textual muito maior) beneficia tanto o “objeto lido” quanto o leitor ou 
legente, ambos crescem e são iluminados pela luz do conhecimento, porque se 
familiarizam, adquirem conhecimento ou ampliam-no:
–––––––– é 
um 
entardecer 
singular
quando Miriam 
e 
Ana têm a
luz, 
que as ilumina
apagada;
porque, ao
crepúsculo,
elas estão
sempre num
contexto de
claridade, lendo; (...) (UBDMT, 
p. 82)
“Acende-lhe a 
vela da 
inteligência 
louca”, 
respondeu-me. Obedeci-lhe. E pus-me 
com a 
luz 
apagada a
meio do 
texto ––––––
que entrou na
claridade.
– “Quero lê-lo de 
fim 
para o 
princípio. 
Ajuda-me”. – 
Sem 
nada 
ver, comecei a 
encontrar-me 
comigo 
mesma, 
levada 
para os 
confins do
quarto. 
Ana beijou-me 
a 
face e 
convidou-me a 
sorrir: “Senta-te ao
Sol”, e 
mandou-me 
adormecer. (UBDMT, p. 
86)
Entretanto, o conhecimento adquirido pelas 
partes envolvidas no processo de leitura surge não como uma verdade única e 
inquestionável, mas como maleável, plural, cumulativa e em processo de busca 
contínua, infinita:
(...) Temia 
lhe oferece o 
e. (UBDMT, p. 94)
Vão 
partir 
para 
outro 
lugar do
meu entresser. 
Dei-lhes 
em 
troca 
gomos da
verdade e, 
agora, as
imagens do
seu 
suco 
vesperal:
uma 
verdade 
móvel. 
Se vier 
mais 
tarde 
visitar-me, terá de 
ser 
outra, 
porque os 
objectos 
que conheceu,
eu os despi 
das 
suas 
artes de
assédio
fixo. (UBDMT, 
p. 104)
Além de desestabilizar esse conhecimento 
que sucede à leitura, valoriza o conhecimento de mundo que a precede e leva em 
conta a fase (cognitiva, afetiva, histórica, etc...) em que se encontra o 
leitor, respeitando-a e aproveitando-a ao máximo:
E principiou a ler:
“––––––––––––– é a 
cegonha 
que transporta 
a 
jarra no 
seu 
corpo; 
porque há uma
jarra 
com uma 
cegonha 
em 
relevo; a
cegonha 
anuncia 
que há 
telhados, e
chuva, 
sobre a 
cidade. Pára
sobre 
telhados do
nosso 
prédio e,
como 
alguém vai
nascer 
agora, 
desprende a 
jarra do 
seu 
peito ficando, 
no 
entanto, 
gravada nela; a 
jarra torna-se 
preta, e 
explode no 
momento 
em 
que o 
meu 
pequeno 
irmão 
desaparece da 
vida. 
Reencontro-a 
mais 
tarde 
sobre o 
contador da
água e amo-a,
por 
causa da 
cegonha 
imersa no
seu 
vôo de 
luto; 
desde o 
primeiro 
instante, esta
jarra atraía o 
meu 
olhar e, no 
escuro do
corredor,
mal se 
distinguia.” (UBDMT, p. 65)
Para
tanto, 
assimila e 
abarca 
a 
emoção, 
a 
intuição 
e a 
imaginação 
criadora, relegadas a 
um
injusto
segundo
plano 
(senão 
rejeitadas) 
por 
aquela 
concepção 
esquemática e 
tecnicista 
de 
leitura 
amarrada à decodificação do 
texto
verbal
escrito.
(...) 
Sempre o 
afecto 
me pareceu o
caminho 
que 
me levaria ao
íntimo do
mundo 
–––––––––– 
desejo, 
inteligência, 
corpo, (...) (ARN, 
p. 135)
Além do
mais,
leituras realizadas no
passado (na
infância, na
adolescência, etc...)
para
fatos,
obras,
objetos
ou
seres
não
são desprezadas (diminuídas, 
sobrepostas 
ou 
menosprezadas) 
em
prol de
novas
leituras
mais amadurecidas.
Pelo
contrário, (re)leituras 
ilimitadas podem
ser
feitas
em diversas
direções e
sentidos, somando-se
democrática e igualitariamente às
anteriores,
sem
que se bloqueie 
em 
hipótese 
alguma as 
novas (e 
infinitas) possibilidades de (re)leituras
para o 
mesmo “texto”, 
“porque 
Temia 
lhe 
oferece o e” (p. 94).
Com
tudo
isso, modifica-se
radicalmente a
postura do “ledor”,
tornado
em
ativo,
criativo,
irreprimível e
irrequieto legente,
bem
como amplia-se o
conceito de
leitura. Amplificação esta,
proposta
pela
obra Llansoliana,
que, na
verdade, consiste numa
retomada e
alargamento da
definição
etimológica da
palavra:
ler se dizia 
em 
latim legere, 
que significava 'colher',
segundo Evanildo Bechara (www.redacao.com.br/id/05/artigo1.htm), 
que veio sofrendo severo estreitamento com o passar dos tempos.
Assim,
tudo 
comunica, 
tudo
passa
mensagens, 
o 
meio 
é 
composto 
de 
textos
em
linguagens 
simultaneamente 
visuais, 
auditivas, olfativas, táteis e gustativas: as 
paisagens 
(citadinas 
ou
naturais) 
e 
cenas 
(cotidianas 
ou
não),
um
quadro, 
uma 
música, 
o 
canto
alegre 
de 
um
pássaro,
um
cão
triste, 
uma 
árvore
seca 
clamam 
para 
serem 
entendidos,
cuidados,
amados, 
respeitados, 
mas
nem
sempre 
(ou
quase
nunca)
são 
lidos. Ao 
contrário 
do 
que 
possa 
parecer,
entretanto, 
o 
processo 
de 
leitura 
é iluminador, 
mas
interminável, 
presenteia as 
partes
com 
o 
conhecimento,
que 
é mutável, 
mas
tão
recompensador
que 
se 
torna 
uma 
eterna
busca 
inquieta 
para 
o legente.
 
(Re)escrever 
o 
mundo
Da 
mesma
forma
que 
o 
verbo
ler
ganha 
uma amplificação de 
sentido 
na 
obra 
de Llansol, o 
ato 
de 
escrever
também
não 
se restringe à 
conceituação
que
figura 
no 
dicionário:
Escrever. [Do lat. 
scribere.] V. t. d. 1- 
Representar 
por 
meio de 
escrita (...) 
2- 
Redigir 
ou 
compor (obra
literária,
científica, 
etc.) (...) 3- Exprimir-se 
por 
escrito (...) 
4- 
Descrever 
ou 
narrar 
por 
escrito (...) 
5- 
Lançar 
multa (...) 6-
Inform. 
Comunicar 
ou 
introduzir (informações)
em alguma
parte da
memória (...) 
7- 
gravar, 
insculpir, 
inscrever (...) (FERREIRA, 
1999, s.v.)
Face à escrita exclusiva e 
discriminatória humana-verbal que, como já foi dito, não se abre para outras 
linguagens, para outros vivos, para minorias, para o mundo, só resta a esta 
“escritora” (aqui se referindo à escritora ficcional, ou seja, a narradora que 
escreve o livro e problematiza o processo de escrita), que se pretende 
inclusiva, abrir a sua escrita e a si própria para novas possibilidades 
lingüísticas e representativas.
A 
rapariga
que temia a
impostura da
língua 
ainda 
não 
tinha nascido,
mas na 
sua 
alma 
em 
branco 
presenciou 
aquele negror, 
e achou-o 
quase 
igual à 
escrita 
habitual dos
homens. (...) 
(UBDMT, p. 21)
Em Um beijo dado mais 
tarde, assim, é possível escrever em (uma ou várias) linguagens gestuais, 
visuais, auditivas, gustativas, olfativas... Linguagens estas muitas vezes 
manuseadas pelo artista para criar obras de arte (plástica, musical, pictórica, 
teatral, etc.). Entre estas linguagens, inclui-se a escrita verbal, como mais 
uma das possibilidades, importantíssima para a narradora, é claro, visto que se 
trata de seu material de trabalho, mas nunca tirana sobre as demais:
Para 
que a 
língua 
não fosse
mais 
impostora, criou 
nos 
objetos uma
máscara; faço deles 
quimeras,
que 
ninguém 
sonha 
que 
palavras
são.(...) (UBDMT, 
p. 18)
Isto porque a criança que 
aprende a ler em todas as linguagens possíveis, paralelamente também vai 
transferindo para a escrita as propriedades das outras linguagens, que se unem à 
língua verbal:
Ela escreveu
sobre 
quê, ao 
desenhar 
esses 
gemidos 
que se 
acumulam 
sobre as
páginas do
teu 
bloco. 
São 
hordas, 
errantes
que se movem 
vinculados a uma 
força 
primitiva, 
Témia, 
chuva miudinha 
de 
pedra 
com 
projeção de
sombras 
gigantes.
São 
homens 
inanimados,
privados do
mínimo 
livre 
arbítrio.
São 
desenhos das
figuras da
natureza,
seu traçado
por 
escrita 
desenhada. A 
imagem de
leitura 
para 
que se 
encaminham 
são a 
sua 
própria 
morte. (UBDMT, p. 28)
A
escrita pode
ser concebida,
portanto,
como
escrita desenhada,
como
imagem de 
leitura.
Assim,
para
quadros e
esculturas
já
não se
estranha
mais a
existência de
um
escritor, se
este for
entendido
como o
artesão de
tais
textos.
Também se
torna
possível o
tratamento de
um
banquete
como
um
texto,
em
que o
artista (Cozinheiro/a)
expressa
mensagens,
lidas/sentidas
pelos leitores-degustadores,
como ocorre
em Le Festin de Babete,
que
também é
um
texto
cinematográfico lido
pela narradora.
Sob esta
perspectiva,
quando Maria Adélia faz
em
casa uma
comida
ou uma
arrumação
ela
também está construindo/escrevendo
textos
que podem
passar
mensagens
para Temia, Felipe, etc....
Desta
maneira,
manusear uma
linguagem
para
gerar
um
texto,
ainda
que não-verbal, é
escrever.
Logo, essa
escrita amplificada pode
conceber inúmeras
formas não-convencionais de
texto,
como
um
gesto, uma
música,
um
jardim
ou
um
objeto.
É
preciso, no
entanto,
ressaltar
que o
discurso da narradora,
adulta portadora de uma
escrita
verbal recheada de
recursos
não
verbais –
como
linhas
retas,
lacunas,
quebras de
sintaxes, etc. –, é
construído
para
falar de uma
escrita,
em
que
verbal e não-verbal se misturam
nos
experimentos
lingüísticos da
criança Témia, da
rapariga 
que temia a 
impostura da 
língua,
entre outras (versões
passadas da
própria narradora
ou
não).
A potencialidade dessa 
escrita nem sempre verbal vai além da artesania de “textos em primeira mão” e, 
curiosamente, passa também por uma espécie de reciclagem, de “reedição” de 
textos, como nas obras de Andie Warol, que recontextualizava objetos do 
quotidiano, tidos por muitos como insignificantes, transformando-os em arte.
––––––––––––– é a 
cegonha 
que transporta 
a 
jarra no 
seu 
corpo; 
porque há uma
jarra 
com uma 
cegonha 
em 
relevo; a
cegonha 
anuncia 
que há 
telhados, e
chuva, 
sobre a 
cidade. Pára
sobre 
telhados do
nosso 
prédio e,
como 
alguém vai
nascer 
agora, 
desprende a 
jarra do 
seu 
peito ficando, 
no 
entanto, 
gravada nela; a 
jarra torna-se 
preta, e 
explode no 
momento 
em 
que o 
meu 
pequeno 
irmão 
desaparece da 
vida. 
Reencontro-a 
mais 
tarde 
sobre o 
contador da
água e amo-a,
por 
causa da 
cegonha 
imersa no
seu 
vôo de 
luto; 
desde o 
primeiro 
instante, esta
jarra atraía o 
meu 
olhar e, no 
escuro do
corredor,
mal se 
distinguia. (UBDMT, p. 65)
Da mesma forma que Andie, 
Témia neutraliza o contexto em que se insere dado objeto - no caso a jarra – e, 
ao recontextualizá-lo, transforma-o em um novo texto de segunda mão, ou seja, 
ela não destrói outras possibilidades de leitura passadas e nem futuras, mas 
escreve/inscreve/insculpe sobre o objeto uma nova possibilidade de leitura (com 
base na sua realidade daquele momento). Assim, ao mesmo tempo em que lê o 
objeto, escreve nele suas memórias.
A escrita na obra de Llansol, 
portanto, aparece como a marca de uma leitura ou de leituras efetuadas, que não 
eliminam novas possibilidades de leituras e ainda suscitam-nas, somando-se a 
elas.
– Tive 
desejos de
vir 
murmurar 
para a 
cadeira de 
leitura.
– 
Com uma 
voz 
mais 
baixa do
que 
ler.
– 
Com a 
voz de 
escrever – disse 
talvez a
segunda 
discípula.
Com 
um 
fio de 
voz, e 
um 
dia de 
crepúsculo, no
ódio e no
amor 
que 
sobe esta 
escarpada
montanha,
eu
vos
uno
para
sempre. 
(...) (UBDMT, p. 59)
Escrever consiste em 
registrar leituras particulares de mundo (em papéis, objetos, paisagens, seres, 
cenas, etc...), que suscitarão novas leituras e (re)leituras, em novos leitores 
e em (re)leitores, que se ampliarão e multiplicarão em infinitas possibilidades. 
Leitura e escrita não se dissociam e são um cruzamento de duas vias de mão 
dupla, pois quem escreve está registrando leituras de mundo e quem lê está se 
insculpindo no lido, escrevendo-se nele e marcando-o com as suas características 
do momento, a cada leitura que faz.
Assim, há sempre a abertura, 
palavra e movimento constante em todas as direções e atos do livro: a leitora 
que se abre para o mundo, a escrita que se abre para qualquer novo leitor 
inscrever-se (com suas novas leituras) sobre ela, os objetos que se abrem para 
novos usos simbólicos, a casa que se abre para o exterior, tudo se dispõe, pulsa 
e conduz ao caminho mais louvado da obra: o desconhecido. Abertura e 
desconhecido são dois caminhos indissociáveis e atraentes na obra.
– 
Ana – diz 
Myriam -, vamos à 
página 
seguinte e 
deixemos esta 
aberta. Há, 
numa 
outra, 
um 
jovem 
desconhecido
que 
nos 
espera. (...) (UBDMT, p. 
59)
A abertura busca o 
conhecimento do desconhecido, a convivência e a familiarização com ele, caminho 
este que conduz à sua inclusão, outra palavra-chave na escrita de Llasol. 
A inclusão, o acolhimento (a leitura) de todo o desconhecimento/desconhecido faz 
com que a criança Témia leia insaciavelmente tudo quanto lhe passe pelos 
sentidos. E é também essa busca de familiarização com o desconhecido, de 
inclusão, de acolhimento, que faz com que a menina inscreva por toda a casa o 
irmão, oportunizando a ele a vida, que lhe fôra negada. Uma vida móvel e 
diferente, mas ainda assim uma afirmação (um sim) e não a corroboração do não. 
Uma possibilidade afirmativa.
Escrever consiste no caminho 
para uma positivação dos negativos. Ou seja, após a leitura/iluminação dos pólos 
negativos, a escrita busca a transformação das experiências não-jubilosas em 
conhecimento, em sabedoria, que as tornará júbilo e, por isso, positivas agora. 
Assim, escrever não é simplesmente criar, mas transformar por/com/em amor:
(...) a 
hora da 
leitura, nas
grades da
janela 
abraçada à 
cabeça da
sua 
própria 
maturação, preparando o 
ato de 
amar 
que 
era o 
ato de 
escrever (...) (UBDMT, p. 
95)
Enquanto o ato de ler se 
apresenta como a possibilidade de criticar, de pensar o lado positivo e o 
negativo do que se lê, escrever se mostra um ato mais do que transformador: 
positivador. Ler é pensar, criticar, refletir. Escrever é agir, transformar, 
positivar, insubmeter-se, a partir da reflexão.
Esta vontade insubmetível 
de positivação inclusiva se inicia num micro-espaço, num micro-contexto que, 
por mais insignificante e não-convencional que possa parecer, vai se tornar 
hábito e vai se alastrar para níveis cada vez mais macros (da imaginação da 
criança, para um objeto, para a casa, para o jardim,... ... para o livro, para o 
mundo) até se espalhar pelo mundo, em forma de livro, que a narradora escreve.
Este potencial transformador 
é a condição sine qua non para que o processo educativo seja completo, 
segundo Paulo Freire:
Um dos 
saberes 
primeiros,
indispensáveis 
a 
quem está 
chegando a 
favelas 
ou a 
realidades 
marcadas 
pela 
traição a
nosso 
direito de
ser, pretende 
que 
sua 
presença se vá tornando
convivência, 
que 
seu 
estar no 
contexto vá 
virando 
estar 
com 
ele, é o
saber do 
futuro 
como 
problema e
não 
como 
inexorabilidade. É o 
saber da 
História
como 
possibilidade e 
não 
como 
determinação. 
O 
mundo 
não é. O
mundo está 
sendo. 
Como 
subjetividade 
curiosa,
inteligente, 
interferidora na 
objetividade
com 
que 
dialeticamente 
me relaciono,
meu 
papel no 
mundo 
não é 
só o de 
quem constata 
o 
que ocorre,
mas 
também o de
quem intervém
como 
sujeito de 
ocorrências.
Não sou 
apenas 
objeto da
História,
mas 
seu 
sujeito 
igualmente. 
(...) (Pedagogia 
da 
Autonomia, p. 
85)
E para se chegar a este vigor 
transformador foi muito importante, sem dúvida, que não se reprimissem na 
criança (na adolescente, na mulher ou em qualquer outra fase: na pessoa) seus 
potenciais e seus saberes outros particulares, por mais excêntricos que pudessem 
parecer a um adulto ou a uma outra individualidade.
A
definição
etimológica –
segundo Bechara: 'gravar', 
'fazer uma 
incisão (www.redacao.com.br/id/05/artigo1.htm) 
– é,
portanto,
mais abrangente do
que os
usos
atuais
que se fazem
para a
palavra e,
não coincidentemente, a
que
mais se aproxima da
escrita
proposta
em
Um 
beijo 
dado 
mais 
tarde.
Assim, como a língua que 
renasce, renova-se na primeira página a partir da incisão sofrida, também a 
escrita, que é/faz incisão, pode promover renascimentos: do irmão, dos seres, da 
igualdade entre os vivos, do respeito às diferenças... de um outro mundo cada 
vez melhor, mais justo, mais positivo.
 
Conclusão
A
castração da
língua na
primeira
página do
livro pode
suscitar
muitos
problemas,
dentre os
quais a
arbitrariedade da
língua e a
sua
incapacidade de
expressar
com
exatidão o
ser, a
tirania da
língua (e do
homem
que a concebeu e manipula)
para
com
outros
seres e
suas
linguagens,
bem
como a
tirania da
língua do
homem
para
com
outros
homens subalternizados,
entre tantas outras possibilidades. Desta
maneira, a
língua
erudita rebaixa a
coloquial. As
línguas
verbais rebaixam as
linguagens não-verbais. As
línguas humanas rebaixam as
linguagens da
Natureza. A
língua limita a
expressão do
ser. E
assim
por
diante, refletindo o
sistema de
dominação
que o
ser (des)humano impõe ao
planeta.
Estas
tristes
constatações, no
entanto,
não
são
apenas desencantadas
conclusões ao
final de uma
obra,
mas
pelo
contrário
são
motes,
inícios
ou
reinícios.
Conclusões
que geram férteis
reinícios e
não estéreis
finais.
Problemas
que buscam
soluções.
Soluções estas
que
serão
beijos 
dados 
mais 
tarde nestes
problemas.
Beijos
que possibilitarão
beijos,
porque
todo
problema é uma
ruptura. O
início do
livro,
assim, é
um
reinício. O
fim de
um
ciclo,
que
não é
um encerramento,
mas o
início (abertura) 
de uma
trajetória, de uma
busca de
saídas (aberturas) 
e,
portanto, a 
abertura de uma
abertura.
A abertura, portanto, 
será um movimento perpetuado insistentemente durante toda a obra, na tentativa 
de desatar todos os nós, dissipar mágoas, amenizar as marcas da tirania da 
língua e do ser humano. Movimento este oposto à arrogância e à dominação tirana, 
que fecha portas, cerceia seres e se encerra sobre si mesma. Assim, 
gradativamente tudo se abre, tudo se amplifica. A Língua se abre a outras 
linguagens. O leitor se abre para outros textos. A leitura se abre ao mundo. O 
texto se abre e se amplia em possibilidades e em significado. O mestre se abre 
aos ensinamentos do discípulo. O mestre se abre para sua eterna condição de 
discípulo. O discípulo se abre para os ensinamentos do mundo. A escrita abre 
novas possibilidades de leitura. O escritor se abre para novos recursos e 
técnicas. O ser humano se abre aos outros seres, ao mundo e ao novo. A própria 
abertura assim se abre em novas aberturas infinitas.
Sendo
assim, a
abertura se
mostra uma
eficiente
saída (ou o caminho 
para achar a saída) para a positivação de todo e qualquer problema. Todas as 
limitações podem ser remediadas e amenizadas pela abertura. Abertura que 
acolhe e inclui ilimitadamente: seres, suas linguagens, idéias... o novo e o 
velho, enfim tudo. Abertura que impede apenas uma coisa: o fechamento. Através 
da abertura nenhum processo se fecha nunca, mas transforma-se num contínuo rumo 
ao infinito do sempre.
 
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