UM BEIJO DADO MAIS TARDE
(RE)LENDO E (RE)ESCREVENDO O
MUNDO

Eloísa Porto Corrêa (UERJ)

 

Introdução

Um beijo dado mais tarde, projeto estético revolucionário e ousado de Maria Gabriela Llansol, entre muitas outras questões, problematiza e polemiza, sem intenções de esgotar, vários conceitos relacionados ao processo comunicativo entre os seres, como língua e linguagem, texto e contexto, leitura e escrita, entre outros.

O primeiro conceito a ser problematizado é o da própria Língua, em seguida e em conseqüência dele, inúmeros outros conceitos também serão questionados. A língua humana, na narrativa, aos poucos é rebaixada de seu posto hegemônico de sistema de linguagem mais completo e complexo, revelando-se falho, arbitrário e incapaz de expressar com exatidão as necessidades de cada falante.

Paralelamente a este fato, outras linguagens não convencionais vão sendo experimentadas e se mostrando capazes de exprimir mensagens com bastante propriedade, ainda que de cunho mais subjetivo, estético ou plástico. De maneira que estas linguagens, ora desprestigiadas e relegadas a um injusto segundo plano, revelam-se eficientes complementadoras e aliadas da língua na dificílima e ingrata tarefa de expressar.

Assim, a língua deixa de ser um sistema tão fechado, excludente e auto-suficiente para se abrir aos encantos e contribuições que outras linguagens possam dar ao processo comunicativo. A parceria ora selada entre língua e linguagens implica num enriquecimento e também numa fatal amplificação do conceito de texto. Este deixará de se resumir a um conglomerado de palavras, para ganhar outras imagens, outros sons, cheiros, gostos, etc... Enfim, transforma-se o mundo num grande texto, cheio de mensagens em linguagens várias, aguardando apenas para serem lidas.


 

(Re)ler o mundo

Na obra de Maria Gabriela Llansol, ler não é simplesmente percorrer com a vista o que está escrito, proferindo ou não as palavras, mas conhecendo-as (FERREIRA, 1999, s.v.), conforme define o dicionário da língua portuguesa Novo Aurélio Século XXI e como se costuma empregar o termo na contemporaneidade.

Ler ganha uma abrangência muito maior em Llansol, porque rompe com as fronteiras do papel e da linguagem verbal, como se viu, para ganhar o mundo e explorar as infinitas linguagens não-verbais com que este pode transmitir mensagens. Concepção que não se restringe a Um beijo dado mais tarde, mas se observa em toda a sua obra, como nos Apontamentos da Rua de Namur (ARN).

I ––––––––––– o encontro inesperado do diverso é assistir o belo a comunicar com o silêncio; a fraccionar a imagem nas suas diversas formas; ajudá-las a levantar o véu para que se mostrem mutuamente na beleza própria, e fechar os olhos para que se não rompa a delicada tela desta vida,

ou então falar.

Talvez assim:

Uma cena erótica simples em que a luz dos pinheiros se proteja sobre a Presença. Tal uma sensação de pânico posta à raiz do prazer que eu tenho em encontrá-la; e em ser levada por ela desta terra –––––––––––– para uma terra não queimada pelas palavras;

(...)

porque sinto,

porque quero,

e porque crio em linguagem, ou em outro sinal, o pensamento do fulgor que estava criado. (ARN, p. 135)

A necessidade de incluir, ao lado da língua humana, outras linguagens não-verbais, torna em possível expressão (aguardando para ser percebida) tudo. Desta forma, em princípio, o mundo é texto potencial esperando ser decodificado para que comunicações se efetivem:

Esses objetos transpostos agora para o nada desconhecido, eram som, eram obediência, eram certamente potencialidades de texto vivo, ultrapassada a língua morta em que sonhavam. (UBDMT, p. 99)

Certamente, nenhuma das definições trazidas pelo Novo Aurélio Século XXI (FERREIRA, 1999, s.v.) para o verbetetexto” é capaz de abarcar a amplitude de significação e de possibilidades propostas no excerto anterior para a palavra:

Texto (ês) [Do lat. textu, ‘tecido’] S. m. 1- conjunto de palavras, frases escritas (...) 2- obra escrita considerada na sua redação original (...) 3- palavras bíblicas que o orador sacro cita (...) 4- Página ou fragmento de obra característica de um autor (...) 5- Texto manuscrito ou impresso (...) 6- qualquer texto destinado a ser dito ou lido em voz alta (...) 7- excerto de língua escrita ou falada (...) 8- Toda e qualquer expressão, ou conjunto de expressões, que a escrita fixou (...) (Novo Aurélio Século XXI, p. 1956)

A consideração de um universo muito maior de textos em diferentes linguagens: visuais, olfativas, gustativas, táteis, auditivas, implica a necessidade de aguçar os sentidos para recebê-las, vindas de todas as direções:

2 --- Lá, onde estás, não ouves.

      , onde estás, podes ler sinais nos meus lábios. Presta atenção. Mesmo os mortos, continuam a viver. Nestes textos que te estou a ler,

soletrando,

deixo cair imagens.

Sim, sim, podem ler-se. Não te vou dizer quais, ou talvez, longe, acabe por –––––– (UBDMT, p. 101)

Essa concepção, que transforma o mundo em um enorme texto ou num mosaico contenedor de infinitos microtextos, acaba por dilatar o conceito de texto e de leitura, como também fizera Paulo Freire (FREIRE, 1983: 25-41) em suas reflexões sobre a educação.

Ler deixa de se restringir à decodificação de textos escritos em linguagem verbal, para ganhar uma dimensão ilimitada de possibilidades. Torna-se, pois, possível ler um objeto, uma casa, uma obra de arte (como um quadro, uma música ou a estátua de Ana e Miriam) e até um outro ser vivo, como um cão ou uma árvore, por exemplo:

Todos os objetos, na casa, devem estar à volta deste, obedecer o livro aberto nos joelhos, e à tranqüilidade ainda sem escrita – da criança que os . (UBDMT, p. 25)

Foi então que a árvore, partindo do arvoredo, veio à minha casa falar comigo, ou seja, pediu-me que a acolhesse ininterruptamente para aprender a ler; (...) Ela viu, no pinhal, um animal desta casa que está doente. Ela afirma que um sopro de vida é leitura. (UBDMT, p. 111-112)

Infausta pede ao velho que lhe encontre uma nota de laranja escondida nesta sala; o velho, que é Aossê se tivesse vivido até aos noventa anos, traz-lhe um gomo musical do seu texto – uma faixa real de poesia. (UBDMT, p. 88)

Íamos então fazer cópias da noite, abrindo a porta da sala de jantar onde se encontravam os quadros; enquanto ela contava, eu levantava os olhos para as telas que faziam descer uma noite passiva das paredes; primeiramente não víamos nada , véus de branco; depois, o que ela dizia ia seguindo o percurso de uma imagem e, elevando-se da voz, ficava representado em espaços limitados na parede. (UBDMT, p. 104)

Essa leitura amplificada (dirigida a um universo textual muito maior) beneficia tanto o “objeto lido” quanto o leitor ou legente, ambos crescem e são iluminados pela luz do conhecimento, porque se familiarizam, adquirem conhecimento ou ampliam-no:

–––––––– é um entardecer singular quando Miriam e Ana têm a luz, que as ilumina apagada; porque, ao crepúsculo, elas estão sempre num contexto de claridade, lendo; (...) (UBDMT, p. 82)

“Acende-lhe a vela da inteligência louca”, respondeu-me. Obedeci-lhe. E pus-me com a luz apagada a meio do texto –––––– que entrou na claridade.

– “Quero lê-lo de fim para o princípio. Ajuda-me”. – Sem nada ver, comecei a encontrar-me comigo mesma, levada para os confins do quarto. Ana beijou-me a face e convidou-me a sorrir: “Senta-te ao Sol”, e mandou-me adormecer. (UBDMT, p. 86)

Entretanto, o conhecimento adquirido pelas partes envolvidas no processo de leitura surge não como uma verdade única e inquestionável, mas como maleável, plural, cumulativa e em processo de busca contínua, infinita:

(...) Temia lhe oferece o e. (UBDMT, p. 94)

Vão partir para outro lugar do meu entresser. Dei-lhes em troca gomos da verdade e, agora, as imagens do seu suco vesperal: uma verdade móvel. Se vier mais tarde visitar-me, terá de ser outra, porque os objectos que conheceu, eu os despi das suas artes de assédio fixo. (UBDMT, p. 104)

Além de desestabilizar esse conhecimento que sucede à leitura, valoriza o conhecimento de mundo que a precede e leva em conta a fase (cognitiva, afetiva, histórica, etc...) em que se encontra o leitor, respeitando-a e aproveitando-a ao máximo:

E principiou a ler:

“––––––––––––– é a cegonha que transporta a jarra no seu corpo; porque há uma jarra com uma cegonha em relevo; a cegonha anuncia que telhados, e chuva, sobre a cidade. Pára sobre telhados do nosso prédio e, como alguém vai nascer agora, desprende a jarra do seu peito ficando, no entanto, gravada nela; a jarra torna-se preta, e explode no momento em que o meu pequeno irmão desaparece da vida. Reencontro-a mais tarde sobre o contador da água e amo-a, por causa da cegonha imersa no seu vôo de luto; desde o primeiro instante, esta jarra atraía o meu olhar e, no escuro do corredor, mal se distinguia.” (UBDMT, p. 65)

Para tanto, assimila e abarca a emoção, a intuição e a imaginação criadora, relegadas a um injusto segundo plano (senão rejeitadas) por aquela concepção esquemática e tecnicista de leitura amarrada à decodificação do texto verbal escrito.

(...) Sempre o afecto me pareceu o caminho que me levaria ao íntimo do mundo –––––––––– desejo, inteligência, corpo, (...) (ARN, p. 135)

Além do mais, leituras realizadas no passado (na infância, na adolescência, etc...) para fatos, obras, objetos ou seres não são desprezadas (diminuídas, sobrepostas ou menosprezadas) em prol de novas leituras mais amadurecidas. Pelo contrário, (re)leituras ilimitadas podem ser feitas em diversas direções e sentidos, somando-se democrática e igualitariamente às anteriores, sem que se bloqueie em hipótese alguma as novas (e infinitas) possibilidades de (re)leituras para o mesmotexto”, “porque Temia lhe oferece o e” (p. 94).

Com tudo isso, modifica-se radicalmente a postura do “ledor”, tornado em ativo, criativo, irreprimível e irrequieto legente, bem como amplia-se o conceito de leitura. Amplificação esta, proposta pela obra Llansoliana, que, na verdade, consiste numa retomada e alargamento da definição etimológica da palavra: ler se dizia em latim legere, que significava 'colher', segundo Evanildo Bechara (www.redacao.com.br/id/05/artigo1.htm), que veio sofrendo severo estreitamento com o passar dos tempos.

Assim, tudo comunica, tudo passa mensagens, o meio é composto de textos em linguagens simultaneamente visuais, auditivas, olfativas, táteis e gustativas: as paisagens (citadinas ou naturais) e cenas (cotidianas ou não), um quadro, uma música, o canto alegre de um pássaro, um cão triste, uma árvore seca clamam para serem entendidos, cuidados, amados, respeitados, mas nem sempre (ou quase nunca) são lidos. Ao contrário do que possa parecer, entretanto, o processo de leitura é iluminador, mas interminável, presenteia as partes com o conhecimento, que é mutável, mas tão recompensador que se torna uma eterna busca inquieta para o legente.

 

(Re)escrever o mundo

Da mesma forma que o verbo ler ganha uma amplificação de sentido na obra de Llansol, o ato de escrever também não se restringe à conceituação que figura no dicionário:

Escrever. [Do lat. scribere.] V. t. d. 1- Representar por meio de escrita (...) 2- Redigir ou compor (obra literária, científica, etc.) (...) 3- Exprimir-se por escrito (...) 4- Descrever ou narrar por escrito (...) 5- Lançar multa (...) 6- Inform. Comunicar ou introduzir (informações) em alguma parte da memória (...) 7- gravar, insculpir, inscrever (...) (FERREIRA, 1999, s.v.)

Face à escrita exclusiva e discriminatória humana-verbal que, como já foi dito, não se abre para outras linguagens, para outros vivos, para minorias, para o mundo, só resta a esta “escritora” (aqui se referindo à escritora ficcional, ou seja, a narradora que escreve o livro e problematiza o processo de escrita), que se pretende inclusiva, abrir a sua escrita e a si própria para novas possibilidades lingüísticas e representativas.

A rapariga que temia a impostura da língua ainda não tinha nascido, mas na sua alma em branco presenciou aquele negror, e achou-o quase igual à escrita habitual dos homens. (...) (UBDMT, p. 21)

Em Um beijo dado mais tarde, assim, é possível escrever em (uma ou várias) linguagens gestuais, visuais, auditivas, gustativas, olfativas... Linguagens estas muitas vezes manuseadas pelo artista para criar obras de arte (plástica, musical, pictórica, teatral, etc.). Entre estas linguagens, inclui-se a escrita verbal, como mais uma das possibilidades, importantíssima para a narradora, é claro, visto que se trata de seu material de trabalho, mas nunca tirana sobre as demais:

Para que a língua não fosse mais impostora, criou nos objetos uma máscara; faço deles quimeras, que ninguém sonha que palavras são.(...) (UBDMT, p. 18)

Isto porque a criança que aprende a ler em todas as linguagens possíveis, paralelamente também vai transferindo para a escrita as propriedades das outras linguagens, que se unem à língua verbal:

Ela escreveu sobre quê, ao desenhar esses gemidos que se acumulam sobre as páginas do teu bloco. São hordas, errantes que se movem vinculados a uma força primitiva, Témia, chuva miudinha de pedra com projeção de sombras gigantes. São homens inanimados, privados do mínimo livre arbítrio. São desenhos das figuras da natureza, seu traçado por escrita desenhada. A imagem de leitura para que se encaminham são a sua própria morte. (UBDMT, p. 28)

A escrita pode ser concebida, portanto, como escrita desenhada, como imagem de leitura. Assim, para quadros e esculturas não se estranha mais a existência de um escritor, se este for entendido como o artesão de tais textos. Também se torna possível o tratamento de um banquete como um texto, em que o artista (Cozinheiro/a) expressa mensagens, lidas/sentidas pelos leitores-degustadores, como ocorre em Le Festin de Babete, que também é um texto cinematográfico lido pela narradora. Sob esta perspectiva, quando Maria Adélia faz em casa uma comida ou uma arrumação ela também está construindo/escrevendo textos que podem passar mensagens para Temia, Felipe, etc....

Desta maneira, manusear uma linguagem para gerar um texto, ainda que não-verbal, é escrever. Logo, essa escrita amplificada pode conceber inúmeras formas não-convencionais de texto, como um gesto, uma música, um jardim ou um objeto.

É preciso, no entanto, ressaltar que o discurso da narradora, adulta portadora de uma escrita verbal recheada de recursos não verbaiscomo linhas retas, lacunas, quebras de sintaxes, etc. –, é construído para falar de uma escrita, em que verbal e não-verbal se misturam nos experimentos lingüísticos da criança Témia, da rapariga que temia a impostura da língua, entre outras (versões passadas da própria narradora ou não).

A potencialidade dessa escrita nem sempre verbal vai além da artesania de “textos em primeira mão” e, curiosamente, passa também por uma espécie de reciclagem, de “reedição” de textos, como nas obras de Andie Warol, que recontextualizava objetos do quotidiano, tidos por muitos como insignificantes, transformando-os em arte.

––––––––––––– é a cegonha que transporta a jarra no seu corpo; porque há uma jarra com uma cegonha em relevo; a cegonha anuncia que telhados, e chuva, sobre a cidade. Pára sobre telhados do nosso prédio e, como alguém vai nascer agora, desprende a jarra do seu peito ficando, no entanto, gravada nela; a jarra torna-se preta, e explode no momento em que o meu pequeno irmão desaparece da vida. Reencontro-a mais tarde sobre o contador da água e amo-a, por causa da cegonha imersa no seu vôo de luto; desde o primeiro instante, esta jarra atraía o meu olhar e, no escuro do corredor, mal se distinguia. (UBDMT, p. 65)

Da mesma forma que Andie, Témia neutraliza o contexto em que se insere dado objeto - no caso a jarra – e, ao recontextualizá-lo, transforma-o em um novo texto de segunda mão, ou seja, ela não destrói outras possibilidades de leitura passadas e nem futuras, mas escreve/inscreve/insculpe sobre o objeto uma nova possibilidade de leitura (com base na sua realidade daquele momento). Assim, ao mesmo tempo em que lê o objeto, escreve nele suas memórias.

A escrita na obra de Llansol, portanto, aparece como a marca de uma leitura ou de leituras efetuadas, que não eliminam novas possibilidades de leituras e ainda suscitam-nas, somando-se a elas.

– Tive desejos de vir murmurar para a cadeira de leitura.

Com uma voz mais baixa do que ler.

Com a voz de escrever – disse talvez a segunda discípula.

Com um fio de voz, e um dia de crepúsculo, no ódio e no amor que sobe esta escarpada montanha, eu vos uno para sempre. (...) (UBDMT, p. 59)

Escrever consiste em registrar leituras particulares de mundo (em papéis, objetos, paisagens, seres, cenas, etc...), que suscitarão novas leituras e (re)leituras, em novos leitores e em (re)leitores, que se ampliarão e multiplicarão em infinitas possibilidades. Leitura e escrita não se dissociam e são um cruzamento de duas vias de mão dupla, pois quem escreve está registrando leituras de mundo e quem lê está se insculpindo no lido, escrevendo-se nele e marcando-o com as suas características do momento, a cada leitura que faz.

Assim, há sempre a abertura, palavra e movimento constante em todas as direções e atos do livro: a leitora que se abre para o mundo, a escrita que se abre para qualquer novo leitor inscrever-se (com suas novas leituras) sobre ela, os objetos que se abrem para novos usos simbólicos, a casa que se abre para o exterior, tudo se dispõe, pulsa e conduz ao caminho mais louvado da obra: o desconhecido. Abertura e desconhecido são dois caminhos indissociáveis e atraentes na obra.

Ana – diz Myriam -, vamos à página seguinte e deixemos esta aberta. Há, numa outra, um jovem desconhecido que nos espera. (...) (UBDMT, p. 59)

A abertura busca o conhecimento do desconhecido, a convivência e a familiarização com ele, caminho este que conduz à sua inclusão, outra palavra-chave na escrita de Llasol. A inclusão, o acolhimento (a leitura) de todo o desconhecimento/desconhecido faz com que a criança Témia leia insaciavelmente tudo quanto lhe passe pelos sentidos. E é também essa busca de familiarização com o desconhecido, de inclusão, de acolhimento, que faz com que a menina inscreva por toda a casa o irmão, oportunizando a ele a vida, que lhe fôra negada. Uma vida móvel e diferente, mas ainda assim uma afirmação (um sim) e não a corroboração do não. Uma possibilidade afirmativa.

Escrever consiste no caminho para uma positivação dos negativos. Ou seja, após a leitura/iluminação dos pólos negativos, a escrita busca a transformação das experiências não-jubilosas em conhecimento, em sabedoria, que as tornará júbilo e, por isso, positivas agora. Assim, escrever não é simplesmente criar, mas transformar por/com/em amor:

(...) a hora da leitura, nas grades da janela abraçada à cabeça da sua própria maturação, preparando o ato de amar que era o ato de escrever (...) (UBDMT, p. 95)

Enquanto o ato de ler se apresenta como a possibilidade de criticar, de pensar o lado positivo e o negativo do que se lê, escrever se mostra um ato mais do que transformador: positivador. Ler é pensar, criticar, refletir. Escrever é agir, transformar, positivar, insubmeter-se, a partir da reflexão.

Esta vontade insubmetível de positivação inclusiva se inicia num micro-espaço, num micro-contexto que, por mais insignificante e não-convencional que possa parecer, vai se tornar hábito e vai se alastrar para níveis cada vez mais macros (da imaginação da criança, para um objeto, para a casa, para o jardim,... ... para o livro, para o mundo) até se espalhar pelo mundo, em forma de livro, que a narradora escreve.

Este potencial transformador é a condição sine qua non para que o processo educativo seja completo, segundo Paulo Freire:

Um dos saberes primeiros, indispensáveis a quem está chegando a favelas ou a realidades marcadas pela traição a nosso direito de ser, pretende que sua presença se vá tornando convivência, que seu estar no contexto vá virando estar com ele, é o saber do futuro como problema e não como inexorabilidade. É o saber da História como possibilidade e não como determinação. O mundo não é. O mundo está sendo. Como subjetividade curiosa, inteligente, interferidora na objetividade com que dialeticamente me relaciono, meu papel no mundo não é o de quem constata o que ocorre, mas também o de quem intervém como sujeito de ocorrências. Não sou apenas objeto da História, mas seu sujeito igualmente. (...) (Pedagogia da Autonomia, p. 85)

E para se chegar a este vigor transformador foi muito importante, sem dúvida, que não se reprimissem na criança (na adolescente, na mulher ou em qualquer outra fase: na pessoa) seus potenciais e seus saberes outros particulares, por mais excêntricos que pudessem parecer a um adulto ou a uma outra individualidade.

A definição etimológicasegundo Bechara: 'gravar', 'fazer uma incisão (www.redacao.com.br/id/05/artigo1.htm) é, portanto, mais abrangente do que os usos atuais que se fazem para a palavra e, não coincidentemente, a que mais se aproxima da escrita proposta em Um beijo dado mais tarde.

Assim, como a língua que renasce, renova-se na primeira página a partir da incisão sofrida, também a escrita, que é/faz incisão, pode promover renascimentos: do irmão, dos seres, da igualdade entre os vivos, do respeito às diferenças... de um outro mundo cada vez melhor, mais justo, mais positivo.

 

Conclusão

A castração da língua na primeira página do livro pode suscitar muitos problemas, dentre os quais a arbitrariedade da língua e a sua incapacidade de expressar com exatidão o ser, a tirania da língua (e do homem que a concebeu e manipula) para com outros seres e suas linguagens, bem como a tirania da língua do homem para com outros homens subalternizados, entre tantas outras possibilidades. Desta maneira, a língua erudita rebaixa a coloquial. As línguas verbais rebaixam as linguagens não-verbais. As línguas humanas rebaixam as linguagens da Natureza. A língua limita a expressão do ser. E assim por diante, refletindo o sistema de dominação que o ser (des)humano impõe ao planeta.

Estas tristes constatações, no entanto, não são apenas desencantadas conclusões ao final de uma obra, mas pelo contrário são motes, inícios ou reinícios. Conclusões que geram férteis reinícios e não estéreis finais. Problemas que buscam soluções. Soluções estas que serão beijos dados mais tarde nestes problemas. Beijos que possibilitarão beijos, porque todo problema é uma ruptura. O início do livro, assim, é um reinício. O fim de um ciclo, que não é um encerramento, mas o início (abertura) de uma trajetória, de uma busca de saídas (aberturas) e, portanto, a abertura de uma abertura.

A abertura, portanto, será um movimento perpetuado insistentemente durante toda a obra, na tentativa de desatar todos os nós, dissipar mágoas, amenizar as marcas da tirania da língua e do ser humano. Movimento este oposto à arrogância e à dominação tirana, que fecha portas, cerceia seres e se encerra sobre si mesma. Assim, gradativamente tudo se abre, tudo se amplifica. A Língua se abre a outras linguagens. O leitor se abre para outros textos. A leitura se abre ao mundo. O texto se abre e se amplia em possibilidades e em significado. O mestre se abre aos ensinamentos do discípulo. O mestre se abre para sua eterna condição de discípulo. O discípulo se abre para os ensinamentos do mundo. A escrita abre novas possibilidades de leitura. O escritor se abre para novos recursos e técnicas. O ser humano se abre aos outros seres, ao mundo e ao novo. A própria abertura assim se abre em novas aberturas infinitas.

Sendo assim, a abertura se mostra uma eficiente saída (ou o caminho para achar a saída) para a positivação de todo e qualquer problema. Todas as limitações podem ser remediadas e amenizadas pela abertura. Abertura que acolhe e inclui ilimitadamente: seres, suas linguagens, idéias... o novo e o velho, enfim tudo. Abertura que impede apenas uma coisa: o fechamento. Através da abertura nenhum processo se fecha nunca, mas transforma-se num contínuo rumo ao infinito do sempre.

 

Bibliografia

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