UM RITO DE PASSAGEM POÉTICO

Delia Cambeiro (UERJ e UFRJ)

Uma rápida mirada na poética de Petrarca

Celebrar os 700 anos de nascimento de Francesco Petrarca (Arezzo, 1304-1374) é realçar a inserção de uma cultura de marcas renascentistas, no mundo histórico da Idade Média. Em meio aos mil anos de consciência religiosa - para muitos, fonte de infelicidade, morte e indignação - despontava um lírico rito de passagem que não desejava negar os questionamentos da vida interior e/ou contemplativa. Observadas pela ótica de uma busca humanística, as indagações do poeta aretino já se abriam para o fascinante mundo da felicidade terrena, dos prazeres do amor.

A transformação realizada por Petrarca, eternizada em sua poesia, sugere o contraste do espírito humano envolvido em sentimentos antagônicos de apelo à vida ativa e à solidão interior. Em sua lírica, ficaram uma sugestiva atmosfera, um suave desejo de que o homem alcançe a verdade e o autoconhecimento por caminhos do espírito e da matéria.

Considerado um precursor dos humanistas do quatocentos, muito se comenta sobre sua irriquieta natureza de inveterado viajante. Não desprezando as alegrias que o mundo lhe oferecesse, foi preocupado com o contraste entre o fugacidade do tempo terreno e o infinito tempo divino. Em um momento, sugestionado por Santo Agostinho, em profunda crise interior, busca a verdade na famosa obra Il segreto. O título sugere o que realmente contém o texto escrito em latim: intensa confissão espiritual, manifestando agudo desejo de compreender seus próprios tormentos, suas insatisfações. Na obra, que lembra as formas alegóricas da Idade Média, aparece a figura da Verdade, acompanhada de Santo Agostinho. Durante o diálogo entre poeta e santo, Petrarca considera seus sofrimentos de amante e de filósofo.

É importante marcar o valor dessa confissão como uma forma de testemunho complexo e rico. O tema já sinaliza uma idade moderna literária, ao mesmo tempo revelando a beleza do mundo e do amor, também suas dores. Além disso, aponta um despertar romântico “avant la lettre”, da poesia do sentimento, do eu interior, do melancólico estado de alma. A sutil transformação da lírica medieval, herdeira da Provença, faz-se arte representativa da manifestação do eu profundo, graças à nova direção dada por Petrarca no reino da criação poética.

Lutavam em seu espírito um equilibrado humanista e um sentimental melancólico. Talvez por isso, o poeta tenha-se eternizado como mestre incomparável da expressão artística da dor amorosa, da aflição humana de sentir-se só no meio do mundo e atormentado por indefinida lembrança de paz sentimental. Tal sensibilidade funde-se, no poema, em extrema delicadeza de linguagem, que permite suave atmosfera introspectiva e atribui, no século XIV, nova perspectiva à expressão essencialmente lírica.

Na história da psicologia poética, sem dúvida, Petrarca inaugurou, com o Canzioniere uma perspectiva capaz de apontá-lo como o primeiro dos românticos. Deve-se entender tal termo, porém, no sentido da perquirição íntima, do ouvir as vozes íntimas, do transformar liricamente a vivência do eu: ou seja, converter através do processo mimético sentimentos pessoais em matéria de alto caráter estético.

Deve-se sublinhar que, até o século XV, na história da crítica, o renome de Petrarca assinalou, em especial, o escritor em latim, o estudioso e “descobridor” dos clássicos, além de o poeta culto. Em mutante clima cultural, intelectuais da importância de Pietro Bembo, no século XVI, apontam a obra de Petrarca, em língua vulgar, como o mais alto modelo da tradição poética italiana.

A segunda metade do século XIX lança um outro olhar para a sua poesia, objetivando maior agudeza crítica. Tal revisão reconhecia a modernidade de Petrarca e sublinhava o débito da Europa para com o iniciador do Humanismo. Em observações generalizadas, de marca mais filológica do que poética, os críticos, porém, viam no cantor de Laura uma das expressões do individualismo, já ressaltando, em seu tempo, valores modernos, após o longo ascetismo medieval.

Surge, então, na segunda metade do século XX, uma crítica mais apurada. Na tentativa de superar a visão bipartida de Petrarca como autor em língua latina ou como autor em língua vulgar, os estudos foram conduzidos de forma totalizadora, colocando-o na via de um poeta por excelência. Tal visão fragmentadora, se comentada à luz da concepção teórica de Harold Bloom, reafirmaria que “os críticos, no fundo do coração, adoram as continuidades, mas quem vive apenas com a continuidade não poderá jamais ser poeta” (BLOOM, 1991: 114). Continuidade deverá ser entendida como repetição de modelos, contrária, portanto, à renovação criativa. Nesse caso, Petrarca, sob a definição do citado crítico, seria um “poeta forte”, seria o que esvazia, renova os elos com o passado histórico literário e, em busca de sua identidade, recria os dados recebidos da tradição. Por isso, ao salientar-se a marca de precursor do poeta de Laura, convém sublinhar, sob a perspectiva do mesmo crítico, que Petrarca procedeu ao desvio - ou seja, ao clinamen - em relação a seus antecessores, recebendo a tradição, mas desviando-se dos modelos, também influenciando muitos outros que o sucederam, o que é normal, pois, “os poetas devem se deixar encontrar por uma abertura no precursor” (Ibidem , p. 133).

A grande influência de Petrarca, na literatura ocidental, não se compara a nenhuma outra, pois, só na Itália, vai exercer seu domínio até Leopardi e Carducci; na França, vai de Ronsard até Lamartine, além de todo o restante da Europa culta.

Convém ressaltar que o reinado do dolce Stil novo como expressão do sentimento amoroso, foi declinando no século XIV, persistindo apenas em alguns esparsos exemplos já decadentes. Já a influência de Petrarca, porém, estendeu-se e durou muito mais, por ter representado, sem dúvida, um valor eterno humano - qual seja, o amor - com melhor equilíbrio entre realidade e ideal. De fato, a figura da mulher-anjo, cujo perfil fora sendo traçado desde os poetas provençais, pouco a pouco perdeu força no imaginário coletivo.

Foi Petrarca o criador de uma figura feminina diversa, perfeita, idealizada, sim, mas portadora de formas mais humanas. Sua glória não é só de lírico escultor, ela deve-se ao modo como expressou o sentimento que tal figura é capaz de provocar. Ele criou um tipo eterno de expressão do sentimento e um estilo poético personalíssimo, talvez o único de toda a literatura.

Os Trionfi e a nova perspectiva do Canzoniere
A herança de Petrarca em Pierre de Ronsard

Quando o poeta aretino decidiu organizar o material poético já disponível, entendeu que deveria fazê-lo de modo a sugerir uma espécie de diário de sua experência sentimental. Outros tipos de composições, porém, vieram enriquecer e reelaborar um conjunto incansavelmente trabalhado, em constante desejo de perfeição estilística, interrompido pela morte em 1374.

O Canzoniere é a história do amor de toda uma vida, perpetuando-se depois da morte de Laura. Essa figura feminina, mesmo já pertencente à instância imaterial, deu vida à melancólica manifestação da falta do objeto amoroso. O Canzomiere, em substância, obedece, em ordem cronológica e psicológica, essa vivência sentimental e amorosa nutrida pela figura de mulher amada.

O Canzoniere é tradicionalmente dividido em duas partes: Rime in vita e Rime in morte di madonna Laura, que, segundo os críticos, talvez essa divisão não tenha sido imaginada pelo poeta. Na obra, é marcante o tema do amor, que enseja a criação de imagens provocadas pelo sentimento e pela fantasia amorosa. Sente-se a tendência de o Eu poético esconder-se em sítios ermos, solitários, afastados dos olhares humanos, para melhor introjetar-se em sua consciência, em sua melancolia. A atmosfera amorosa tem a tristeza como nota complementar, também o sentido da brevidade da vida, o fluir do tempo e o esmorecimento da beleza física.

A poesia petrarquesca tem profundas raízes na existência, sendo a vida amorosa a mais autêntica razão da vida sentimental e moral, por isso, revela-se em implicações tanto de conotações ideiais, como sentimentais. Na obra, o poeta desenvolve a introspecção e a projeção de inquieta e incessante busca de resposta para questões materiais e espirituais.

A cada releitura dos poemas constantes do Canzoniere, é inegável a experiência solitária de um ser sozinho frente a si mesmo e a seu destino, constituindo o tema da solidão um dos mais significativos e recorrentes em toda a obra. Esse é um tipo de poesia em que a experência sentimental é passada por constante e intensa reflexão filosófica, associada a uma criativa transcrição literária. Talvez aqui esteja o equilíbrio dessa renovadora poesia, que tenta fluir movida por sentimento e inteligência, estado de ânimo e disciplina literária. Em tais preceitos fundamenta-se a primeira transcrição lírica do desassossego e da solidão do homem moderno.

Quando se estuda a obra de Petrarca, encontra-se o tema do amor por Laura ainda em um longo poema intitulado Triunfi de estrutura didático-alegórica, lembrando composições medievais, escrito também em vulgar. Dividido em seis partes, ou seja, em seis triunfos, é constituído de tercetos, o mesmo metro utilizado por Dante Alighieri na Commedia.

Nos Trionfi, o poeta narra uma série de visões alegóricas, como já se comentou, representando, da mesma forma que o Canzoniere, um itinerário do destino humano, da experiência amorosa e do mundo espiritual.

Na obra assiste-se à passagem de um carro com o deus Amor em triunfo, seguido por uma multidão de personagens conhecidos - à maneira da Commedia. No meio da multidão está Laura, a quem se junta o poeta, seguindo ao reino de Vênus, onde fica preso sob o domínio do amor.

Segue-se o Triunfo do Pudor, em que celebra sua musa Laura e outras figuras femininas exemplares por sua conduta; Triunfo da Morte, em que Laura, voltanto à cidade natal de Avignon, vai de encontro à Morte, a grande triunfadora sobre os mortais; Triunfo da Fama, de cujo cortejo participam personagens célebres, que conseguiram ultrapassar os confins da breve existência humana; Triunfo do Tempo, no qual se desenvolve o melancólico tema da fugacidade da vida e a inexorável força do tempo, que tudo destrói e, finalmente, tem-se o Triunfo da Eternidade, parte em que o poeta imagina ver-se longe do mundo terreno e conhecer um outro, utopicamente cheio de beleza, fora do tempo, ou seja, antevê o mundo da eternidade. Nesse instante, seu mais forte e puro pensamento vai até Laura, que contempla e idolatra, na instância celeste.

A opinião crítica com relação à obra manifesta-se quanto a incertezas estruturais do poema, mas, não se pode negar que, no texto, estão reforçadas a perspectiva da concepção alegórica do destino mortal do homem, a visão sobre a existência, a constante diferença entre fé nos valores eternos e materiais, a sobrivência do amor após a morte e a fugacidade da vida.

Uma leitura desatenta dos Trionfi talvez chegue a um desmerecimento dessa obra em relação ao Canzoniere. Em verdade, os motivos deste se repetem na alegoria dos Trionfi, cuja característica é bem diversa. A vasta estrutura e a trama de personagens exemplares constituem a razão e a medida estrutural e artística da obra. Ainda que tal marca não apague completamente uma certa carga lírica, Trionfi e Canzoniere possuem essência diversa: este último contendo motivos essencialmente líricos, aquele contendo uma certa atmosfera narrativa. Entretanto, a análise dos temas que se destacam nas duas composições indica a permanênncia do amor insatisfeito, a fugacidade do tempo e da vida humana, bastante encontrados nas obras do poeta.

Demonstrando sua força e importância no universo da poesia, o petrarquismo transmitiu, na França, uma forma fixa - o soneto - e reforçou a voga de um tema - o amor - que buscam, agora, em contraste com a lírica francesa da Provença, recursos em um certo número de imagens e de procedimentos utilizados pelo aretino.

Tais são alguns dos aspectos citados por historiadores da literatura francesa, como os mais evidentes na herança petraquista. No entanto, o tema desenvolvido com particular sutileza na poesia francesa do Renascimento é, deve-se repetir mais uma vez, o do amor e o da fugacidade do tempo.

Pierre de Ronsard (1524-1585) - unanimemente reconhecido por seus contemporâneos como “Príncipe dos poetas”, apesar de desprezado por Malherbe e acusado por Boileau de falar grego e latim em francês - foi o autor de abundante e variada produção lírica. Estabelecendo-se uma analogia entre sua vida e a de Petrarca, é interessante salientar a existência da musa Cassandra Salviati, filha de um banqueiro florentino, instalado na França. Da mesma forma que Laura não empresta importância à lírica apenas como figura histórica, também Cassandra deve ultrapassar possíveis dados biográficos: os dois nomes simbolizam a dynamis instigadora da transformação mimética.

Os poemas constantes de Les amours, de 1552, são de tom claramente petrarquista, cantando a paixão idealizada por um ser incomparável. A partir desse título, outros apareceram, tais como, uma nova edição dos Amours, além de Continuation des amours e de outras. Ronsard evoca inicialmente Cassandra e após Marie, Hélène, cujos perfis poéticos traçados pelo poeta ultrapassam, como já se afirmou, possíveis mulheres em realidade, portanto, universalizando e eternizando o tema.

Nessas composições, o Eu lírico luta entre a admiração petrarquista pela mulher amada e os amargos sentimentos em que deplora a velhice, a crueldade da ação do tempo no corpo e na alma. Os poemas de Ronsard sugerem que, dos grandes males humanos, o mais temido e difícil de suportar é a velhice, verdadeira maldição a que o homem está irremediavelmente fadado. Esse tema de reflexão inspira alguns de seus mais belos poemas, em que se opõem inalterabilidade da natureza e decrepitude do homem.

Tal obsessão pelo tempo fugidio, colore, da mesma forma que em Petrarca, as relações do poeta francês com o mundo e, em particular, com a mulher. Tanto no poeta aretino quanto no francês, sente-se longínqua sugestão do carpe diem horaciano, que conduz ao reconforto na natureza, refúgio do amante petrarquista. A natureza é um espaço de possível alívio para os desacordos sociais ou morais de quem se afasta do convívio social e se encontra na solidão silvestre. Portanto, também para Ronsard, a natureza e tudo o que ela repesenta possuem um valor estético e ético. Assim, em Ronsard, tal qual em Petrarca, a evocação da natureza, nos poemas de angústia amorosa ou existencial, é estratégia poética geradora de atmosfera rústica propícia à solitária meditação de cunho filosófico e à produção artística.

Como se vê, através dessa breve reflexão comparatista, não se pode negar nem esquecer, portanto, na celebração dos 700 anos de nascimento de Francesco Petrarca, sua importância e sua herança poéticas. Para os críticos franceses, Petrarca e seu novo estilo lírico, de fato, foi admirado e imitado pela posteridade. Afirmam que desde o século XV, seus discípulos eram numerosos, sua ifluência irradiava-se por toda a Europa. Sublinham ainda esses especialistas que a poesia lírica do Canzoniere, plena de refinadas expressões do amor insatisfeito, de dolorosas e angustiadas emoções, tornaram-se puros clichês em medíocres imitadores. Mas exaltam a transformação do petrarquismo em Maurice Scève (1500-1560), em Joachim du Bellay (1522-1560), em Agrippa d’Aubigné (1552-1630), que, além de Pierre de Ronsard, engrandeceram a expressão lírica do sentimento amoroso trabalhado ora de forma veemente, ora em melancólica introspecção e subjetividade do eu.

Não se pode deixar, finalmente, de citar Luis Vaz de Camões, o poeta de língua portuguesa que, em sua lírica amorosa, sob a influência da técnica da imitação, seguiu magistralmente os passos da poesia de Petrarca, transformando, recriando o material recebido.

Confirma-se, finalmente, serem todos esses citados no trabalho típicos representantes de uma geração inquieta, herdeira de Francesco Petrarca. Tal geração, situada entre Idade Média e Renascimento, pressagiava, portanto, novos tempos que, por sua vez, sinalizavam um novo mundo estético, em verdadeiro rito de passagem poético.

BIBLIOGRAFIA

BLOOM, Harold. A angústia da influência. Uma teoria da poesia. Trad. A. Netroviski. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

NADONE, Jean-Luc. Petrarque et le pétrarquisme. Paris: PUF, 1998.

VIANEY, Joseph. Le pétrarquisme en France. Genève: Slatkine Reprints, 1969.