A análise de discurso
e a apreensão de universos simbólicos
Uma referência
para o entendimento da linguagem subjetiva
do poeta e letrista Vinícius de Moraes

Manuela Chagas Manhães (UENF)
Sérgio Arruda
(UENF)

INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho é demonstrar como a ANÁLISE DE DISCURSO serve como base para outras ciências humanas com o estudo do universo simbólico, que difere de sociedade para sociedade, e forma uma estrutura sólida para a produção de representações sociais e para a construção social da realidade por meio de atribuições de significados.

Partindo do pressuposto de que o indivíduo, para manter-se no organismo social, necessita de um instrumento-base, que é a linguagem, faz-se necessária a apreensão de sistemas de sinais, possibilitando a sua atuação - a sua interação social. Por isso, é de fundamental importância o estudo da semiologia possibilitando o entendimento da construção social da realidade.

Conseqüentemente, o sujeito, em seus distintos grupos, através de universos simbólicos, valores sociais, morais, culturais e políticos, permitindo que ele se mantenha coeso ao organismo social e produza uma realidade de acordo com esses universos simbólicos e com o conhecimento apreendido.

O estudo da linguagem, através da análise de discurso, é uma teia de significados que interliga(m) a realidade com as diversas formas de comunicação produzidas pela sociedade. Por meio da análise de discurso é possível ultrapassar o cerco das palavras e encontrar, em outros sistemas de análises, a química que forma os diversos sentidos das representações sociais no organismo social. Ela possibilita a descrição e análise da dimensão representativa, ou seja, estruturação dos signos, dos objetos, dos processos ou fenômenos inter-relacionados à formação e apreensão do conhecimento humano e consequentemente à construção social da realidade.

DESENVOLVIMENTO

O Ato de Linguagem
Instrumento de Comunicação entre os atores sociais

O mundo da vida cotidiana não é somente tomado como uma realidade certa pelos membros da sociedade, na conduta subjetivamente dotada de sentido que caracteriza suas vidas, mas é também um mundo que se origina do ato de os indivíduos se comunicarem por meio da linguagem, demonstrando seus pensamentos e afirmando-os em suas ações como reais. Logo, o fundamento de apreensão de conhecimento na vida cotidiana designa objetivações de processos e significações subjetivas, graças às quais constrói a realidade social.

A aquisição de conhecimento na vida diária de cada membro da sociedade estrutura-se em termos de conveniências. Os seus interesses e os grupos em que o agente social interage permitem um cruzamento entre as diversas conveniências - o que, consequentemente, favorece a diversificação de significados e uma pluralidade de conhecimento.

Contudo, o conhecimento é socialmente distribuído e diferentemente apropriado por diversos indivíduos e tipos de indivíduos. Isso contribui para a ampliação dos sistemas de signos e suas múltiplas representações, com seus significados culturais e sociais. Assim, pode-se dizer que vivemos inseridos num universo simbólico que pressupõe a reflexão teórica por parte dos atores sociais, compartilhando entre si os diversos sistemas de signos.

A Linguagem e o Universo Simbólico:
Formação de Representações Sociais

A interação social não é repleta apenas de objetivações, pois o indivíduo está constantemente envolvido por objetos que pré-determinam as intenções subjetivas de seus semelhantes. Entretanto, a objetivação é de suma importância pois ela remete à significação - à produção humana de sinais. Os sinais, por sua vez, agrupam-se em um certo número de sistemas. Assim, há sistemas de sinais gesticulatórios, de movimentos corporais, etc. Os sinais e os sistemas de sinais são objetivações no sentido de serem acessíveis além da expressão de intenções subjetivas. De todos eles, o mais eficiente é a língua: a vida cotidiana é sobretudo a vida com a linguagem verbal e é por meio dela que se pode compreender, de modo mais amplo, a realidade social e cultural em que se vive.

Isso se deve, principalmente, à capacidade de a linguagem verbal expressar continuamente a realidade da vida cotidiana. Qualquer tema significativo que abrange as esferas da realidade pode ser representado por um símbolo e o instrumento com que se realiza esta representação pode ser chamado de linguagem simbólica. Segundo Beger & Luckman (2002), nos campos semânticos construídos, a experiência pode ser conservada e acumulada. A acumulação é seletiva, pois os campos semânticos determinam o que será retido e o que será "esquecido", como parte da experiência total do indivíduo e da sociedade. Em virtude dessa acumulação, constitui-se um acervo de conhecimento transmitido de uma geração para outra e utilizável pelo indivíduo na sua vida cotidiana, conduzindo à sua conservação. Dessa forma, o acervo de conhecimento inclui a localização dos indivíduos no organismo social, determinando as representações sociais que os membros da sociedade vão absorver. Portanto, conforme os autores Beger & Luckman ( 2002: 99):

Os significados objetivados da atividade institucional são concebidos com conhecimento e transmitidos como tais. Uma parte deste conhecimento é julgada para todos, enquanto outra parte só interessa a certos tipos. Toda a transmissão exige alguma espécie de aparelho social. Isto é, alguns tipos são designados como transmissores, outros como receptores do conhecimento tradicional. O caráter particular deste aparelho variará naturalmente de uma sociedade para outra. Haverá também procedimentos para a passagem da tradição dos conhecedores aos não conhecedores.

Este acúmulo de conhecimento constitui uma dinâmica motivadora da conduta social do indivíduo. Define as áreas da sociedade e designa todas as situações que se localizam dentro dessas áreas. Define os papéis sociais que devem ser desempenhados e controla e prediz todas estas condutas - conhecimento socialmente objetivado como tal, como um corpo de verdades universalmente válidas sobre a realidade em diversos setores comuns e específicos do organismo social. Da mesma forma, o universo simbólico é construído também por meio das objetivações sociais. No entanto, sua capacidade de atribuição de significações excede de muito o domínio da vida social, de modo que o indivíduo se localiza dentro deste universo de acordo com o papel social desempenhado.

Assim, ainda com Beger & Luckman (2002: 135), o universo simbólico ordena a história, pois:

Localiza todos os acontecimentos coletivos numa unidade coerente, que inclui o passado, o presente e o futuro. Com relação ao passado, estabelece uma memória que é compartilhada por todos os indivíduos socializados na coletividade. Em relação ao futuro estabelece um quadro de referência comum para a projeção das ações individuais. Assim, o universo simbólico liga os homens como seus predecessores e seus sucessores numa totalidade dotada de sentido, servindo para transcender a finitude da existência individual e conferindo um significado à morte individual. Todos os membros de uma sociedade podem agora conceber-se como pertencendo a um universo que possui um sentido que existia antes deles terem nascido e continuará a existir depois de morrerem.

Portanto, o universo simbólico cristaliza-se na sociedade da mesma forma como se dá a acumulação de conhecimento. Isto é: os universos simbólicos são produtos sociais e culturais que têm sua história influenciando diretamente no comportamento dos atores sociais e na maneira em que se dá a legitimação das representações sociais desde a crise da racionalidade no final do século XIX para o início de século XX.

A análise de discurso e a Significação
Construção Social da Realidade

É fato que para se entender a realidade da vida diária dos indivíduos é necessário levar em consideração as diversas atribuições de significados e interpretações dos sistemas de sinais. A investigação dos fundamentos do conhecimento da vida cotidiana realizada por meio da linguagem constrói as objetivações dos processos de significados e o mundo intersubjetivo individual e coletivo. A realidade sempre é apresentada com uma dialética que tem como característica principal a objetividade e a subjetividade que os símbolos e a própria linguagem têm dentro do organismo social. Isso se deve ao fato de existir na vida cotidiana uma continua interação e comunicação, em que há compreensão das objetivações e subjetivações da organização social.

A realidade da vida diária aparece com campos infinitos de significações de modo geral mas limitada quando comparada a outras realidades. Dentro desta relação, a linguagem aparece como meio de interpretação, comunhão de conhecimento e fornece à realidade uma distinção entre os grupos que, juntos, formam a estrutura da sociedade.

Isso se deve ao fato de a análise de discurso permitir a tradução das experiências que pertencem à vida diária e suas diversas relações sociais ordenadas e organizadas, dentro de um campo de apropriações de significados em que se tem a linguagem verbal como principal instrumento de comunicação entre todos os membros do organismo social.

Vinícius de Moraes um marco na linguagem subjetiva:

Vinícius sabia perseguir o tempo sem perder o passo. Ninguém poderia imagina-lo por exemplo, tomando o chá das cinco, engravatado e triste, na Academia Brasileira de Letras. Teve porém, um pacto fechado com a imortalidade, em cada um de nós. Drummond disse certa vez: "Vinícius é o único poeta brasileiro que viveu como um poeta". Ele vivia intensamente e era de sua vida que arrancava a poesia. Quanto mais veloz era a vida, mais numerosos os parceiros, mais envolventes as mulheres, melhor sua poesia. Essa multiplicidade emprestava ao poeta e letrista aquela imagem de que ele não acabaria nunca. Uma força, e uma coragem impar de sua alma. A imortalidade.

Vinícius, segundo Castello (1994), se levarmos em consideração o temperamento dionisíaco e extremamente "quente" do compositor, percebe-se que os aspectos emocionalmente contidos da bossa nova não se harmonizam com sua imagem de boêmio e apaixonado por todas as informações que vêm dos mais diferentes redutos, dos refinados aos populares, ao trocar o status de poeta erudito pela condição de letrista popular, o que faz desde os anos 50, quando passa a ter mais contato com os músicos populares, Vinícius não busca um meio- termo; aliás, a moderação não é percebida em sua personalidade nem em seus discursos como pessoa pública e como eterno apaixonado pela vida. Procura, pelo contrário, entrar em profunda comunhão com a linguagem e a companhia pouca "elevada", dos sambistas, se comparadas com o mundo da diplomacia, onde atuava, e o dos poetas livrescos.

Vinícius de Moraes se tornou um marco, não só como poeta que é, mas no grande letrista que se transformou, enriquecendo a música popular brasileira, com seu lirismo. Seguia sua intuição arrisca. Para ele, poetas não deviam temer a sua intuição, sob pena de trair aquilo mesmo que os constitui. Poetas não devem evitar esses estados de contemplação gratuita em que, à sua revelia e muitas vezes contra seus próprios pensamentos, muitas sentimentalidades e miragens transcendentes sobre o amor e sobre a vida, passam.

Logo, percebe-se que Vinícius sabia respeitar a sua própria cegueira, às vezes quase estupidez, que deu lastro a tantas de suas criações. Ia pelo faro, e o seu instinto fundido a sua sensibilidade aguçada lhe dizia que: "de repente não mais que de repente (...)" a poesia não estava mais nos livros, mas em barzinhos apertados, em rodas de violão, em esquinas, apartamentos, e por que não no meio da rua e na beira-mar, onde rapazes e moças até então desconhecidos se deixavam guiar pelo coração, resplandecendo as emoções únicas que o ato de amar, apaixonar favorecia para que o lirismo, o ser amante se legitimasse dentro do organismo social.

Em suas composições, com toda sutiliza de poeta, é perceptível algumas contradições, favorecidas pelos mitos e folclores da diferença que vestem os gêneros. Por isso, podemos encontrar em Vinícius vários momentos em que o poeta encontra-se em desafio com ele mesmo. São diferentes os prismas que colocam o amor em diversas instâncias de superioridade, ampliando-a ao conceito de poesia, retirando a restrição que havia nos gêneros literários para que a poesia seja o mundo real. A amplitude de Vinícius tem estar em fazer a conexão entre a fraqueza humana e aos mistérios majestosos guardados nas miudezas do cotidiano, de seu apelo as emoções (Cf LYRA, 1983).

Para o homem Vinícius a poesia era tão vital que ela seria o retrato de sua vida. Como todo indivíduo, ele está envolvido por instituições, regras sociais e morais que definem o comportamento, o ato de pensar e até mesmo os sonhos, e todos nós, sem exceção, crescemos acreditando como certo, são os valores que interiorizamos e em paradoxo desejos e fantasias que não fazem parte da matemática social. Era o poeta da encruzilhada e o poeta nas encruzilhadas (Cf CASTELO, 1994).

Vinícius de Moraes
Uma significação objetivada - A Poesia Viva

Todo indivíduo, segundo Beger & Luckman (2002), passa por dois processos de socialização: primário (valores institucionais apreendidos na infância) e o secundário que requer indagação e a atividade social em diversos grupos em que há formação de estilo de vida, desenvolvimento da percepção críticas subjetiva e objetiva do sujeito inserido no organismo social se transformando em membro da sociedade.

Segundo Castello (1994), Vinícius foi um homem que viveu para se ultrapassar, para se entregar totalmente as emoções e aos momentos, para compartilhar sentimentalidades, momentos e palavras, para jogar com as ilusões e com a credulidade. Um ser apaixonado e, por isso, um indomável pelas regras sociais. Pode-se perceber a tamanha relação que existe o homem Vinícius com suas experiências no percurso que ele mesmo traça para si. Este sujeito ativo é considerado um marco na alta-modernidade, transbordando vivacidade e emoções nos versos; sua identidade é formada, a partir do momento, que ele, com toda sua singularidade, entende a importância dos diferentes significados que ele apreende com as relações que ele mantém nos grupos que passa a pertencer - com toda sua necessidade de viver intensamente cada pessoa, sentimento e palavra - durante o processo de socialização secundária.

Assim, em princípio, uma ação e seu sentido podem ser apreendidos a partir do desempenho individual e dos vários processos subjetivos que a eles se associam. Dessa forma, Vinícius teve a sociedade como uma realidade subjetiva e objetiva, que apresentara o seguinte significado: estar em sociedade é participar da dialética da sociedade e foi isso que ele fez durante sua vida.

Dele disse Carlos Drumond de Andrade in Castello (1994):

Vinícius é o único poeta brasileiro que ousou viver sob o signo da paixão. Quer dizer, da poesia em estado natural (...) eu queria Ter sido Vinícius de Moraes.

Quando deixa a poesia de gabinete em segundo plano e abandona a diplomacia, ele passa a ser considerado como o grande letrista e fundador do estilo musical, que é conhecido hoje, como MPB. Além disso, passa a Ter a vida como grande aliada para estar borboleteando entre amores e viagens, parcerias e madrugadas, dor e saudade, boêmia, muitos e diversificados amigos e algumas doses de uísque. Experiências que iriam fomentar a sua inspiração e transformá-lo no primeiro letrista que expressara em suas linhas, a poesia em forma de música, que tem uma singular característica, a existência de homens e mulheres claramente definidos e que estão em sintonia com a expressão amorosa independentemente dos atributos dos papéis sociais. O amor era a única instituição verdadeiramente universal.

CONCLUSÃO

Há, entre as realidades, uma que se apresenta como sendo a realidade por excelência: a da vida cotidiana, onde os signos e sistemas de sinais apreendidos são dotados de significados para o sujeito que participa ativamente ou como observador da interação social.

A vida cotidiana é, sobretudo, a vida com linguagem, e é por meio desta que se torna possível a interação social e consequentemente a formação das diversas representações sociais. A compreensão e desmistificação da apreensão da linguagem a priori verbal e seus significados é feita através da análise de discurso.

A linguagem, como instrumento de comunicação entre os atores sociais, intensifica a interação social e, de certa forma, dispõe - para a objetivação das experiências vivenciadas pelos indivíduos - uma sedimentação de conhecimento que é, em todos os instantes, interpretado de acordo com tais experiências, extraindo diferentes significações. Desse modo, a linguagem é decisiva para que se possa interpretar e dar sentido as objetivações apresentadas - de acordo com as experiências vivenciadas.

Sendo os universos simbólicos produtos históricos da atividade humana, eles são construídos segundo uma cultura e podem vir a ser modificados através de ações dos seres humanos. Este fato se deve à realidade social e culturalmente definida por sistemas de sinais e seus respectivos significados.

A formação da identidade social se processa a partir das representações sociais. A identidade pode ser considerada como um produto derivado da dialética do indivíduo com a sociedade em que vive. Deduz-se que a diversidade de identidade é provocada pelo vasto universo simbólico, base da realidade sócio-cultural. Dessa forma, a teoria sobre a formação da identidade social e de sua apropriação de significação está relacionada com o universo simbólico por meio da linguagem.

Para Vinícius de Moraes a realidade é pura poesia; por isso percebe-se que os seus limites são ultrapassados pelas palavras dotadas de significações que tratam da subjetividade humana e que demonstram a relação que o indivíduo mantém entre o mundo de suas emoções implícitas com a sua vida cotidiana.

A dialética entre o indivíduo e o mundo socialmente construído está sempre em transformação, na qual o ser humano é sujeito ativo, pois produz a realidade social por meio da linguagem e suas diferentes conotações - com as diversas significações apreendidas na e pela construção social da realidade. Vinícius de Moraes, nesse processo, torna-se um desbravador que utiliza a poesia como instrumento de trabalho para desmistificar as atribuições de papéis sociais, a partir das experiências que ele compartilha com as diversas relações que mantém durante a sua vida, dentro do seu contexto sócio-cultural.

 

BIBLIOGRAFIA

BEGER & LUCKMAN. A construção social da realidade. 22ª ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

CASTELLO, J. Vinícius de Moraes uma geografia poética. Rio de Janeiro: Relume-Dumará; Prefeitura, 1996.

CASTELLO, J. Vinícius de Moraes: o poeta da paixão - Uma Biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

CASTRO, Ruy. Chega de saudade: a história e as histórias da Bossa Nova. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

LUKÁCS, Georg. Narrar ou descrever?. In: Ensaios sobre Literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, p. 43-94.

MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária: enunciação, escritor, sociedade 2ª ed. Tradução de Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 2000. Coleção Leitura e Crítica.

MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. 5ª ed. São Paulo: Cultrix, 1988.

MORAES, Vinícius de. Poesia. Ed. organizada por Pedro Lyra. Rio de Janeiro: Agir, 1983. Coleção Nossos Clássicos, v. 109.

MORIN, Edgar. Cultura de massa no século XX, volume 1 e 2: O espírito do tempo I: Neurose. 9ª ed. Tradução de Maura Ribeiro Sardinha. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.

A análise de discurso
e a apreensão de universos simbólicos
Uma referência
para o entendimento da linguagem subjetiva
do poeta e letrista Vinícius de Moraes

Manuela Chagas Manhães (UENF)
Sérgio Arruda
(UENF)

INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho é demonstrar como a ANÁLISE DE DISCURSO serve como base para outras ciências humanas com o estudo do universo simbólico, que difere de sociedade para sociedade, e forma uma estrutura sólida para a produção de representações sociais e para a construção social da realidade por meio de atribuições de significados.

Partindo do pressuposto de que o indivíduo, para manter-se no organismo social, necessita de um instrumento-base, que é a linguagem, faz-se necessária a apreensão de sistemas de sinais, possibilitando a sua atuação - a sua interação social. Por isso, é de fundamental importância o estudo da semiologia possibilitando o entendimento da construção social da realidade.

Conseqüentemente, o sujeito, em seus distintos grupos, através de universos simbólicos, valores sociais, morais, culturais e políticos, permitindo que ele se mantenha coeso ao organismo social e produza uma realidade de acordo com esses universos simbólicos e com o conhecimento apreendido.

O estudo da linguagem, através da análise de discurso, é uma teia de significados que interliga(m) a realidade com as diversas formas de comunicação produzidas pela sociedade. Por meio da análise de discurso é possível ultrapassar o cerco das palavras e encontrar, em outros sistemas de análises, a química que forma os diversos sentidos das representações sociais no organismo social. Ela possibilita a descrição e análise da dimensão representativa, ou seja, estruturação dos signos, dos objetos, dos processos ou fenômenos inter-relacionados à formação e apreensão do conhecimento humano e consequentemente à construção social da realidade.

DESENVOLVIMENTO

O Ato de Linguagem
Instrumento de Comunicação entre os atores sociais

O mundo da vida cotidiana não é somente tomado como uma realidade certa pelos membros da sociedade, na conduta subjetivamente dotada de sentido que caracteriza suas vidas, mas é também um mundo que se origina do ato de os indivíduos se comunicarem por meio da linguagem, demonstrando seus pensamentos e afirmando-os em suas ações como reais. Logo, o fundamento de apreensão de conhecimento na vida cotidiana designa objetivações de processos e significações subjetivas, graças às quais constrói a realidade social.

A aquisição de conhecimento na vida diária de cada membro da sociedade estrutura-se em termos de conveniências. Os seus interesses e os grupos em que o agente social interage permitem um cruzamento entre as diversas conveniências - o que, consequentemente, favorece a diversificação de significados e uma pluralidade de conhecimento.

Contudo, o conhecimento é socialmente distribuído e diferentemente apropriado por diversos indivíduos e tipos de indivíduos. Isso contribui para a ampliação dos sistemas de signos e suas múltiplas representações, com seus significados culturais e sociais. Assim, pode-se dizer que vivemos inseridos num universo simbólico que pressupõe a reflexão teórica por parte dos atores sociais, compartilhando entre si os diversos sistemas de signos.

A Linguagem e o Universo Simbólico:
Formação de Representações Sociais

A interação social não é repleta apenas de objetivações, pois o indivíduo está constantemente envolvido por objetos que pré-determinam as intenções subjetivas de seus semelhantes. Entretanto, a objetivação é de suma importância pois ela remete à significação - à produção humana de sinais. Os sinais, por sua vez, agrupam-se em um certo número de sistemas. Assim, há sistemas de sinais gesticulatórios, de movimentos corporais, etc. Os sinais e os sistemas de sinais são objetivações no sentido de serem acessíveis além da expressão de intenções subjetivas. De todos eles, o mais eficiente é a língua: a vida cotidiana é sobretudo a vida com a linguagem verbal e é por meio dela que se pode compreender, de modo mais amplo, a realidade social e cultural em que se vive.

Isso se deve, principalmente, à capacidade de a linguagem verbal expressar continuamente a realidade da vida cotidiana. Qualquer tema significativo que abrange as esferas da realidade pode ser representado por um símbolo e o instrumento com que se realiza esta representação pode ser chamado de linguagem simbólica. Segundo Beger & Luckman (2002), nos campos semânticos construídos, a experiência pode ser conservada e acumulada. A acumulação é seletiva, pois os campos semânticos determinam o que será retido e o que será "esquecido", como parte da experiência total do indivíduo e da sociedade. Em virtude dessa acumulação, constitui-se um acervo de conhecimento transmitido de uma geração para outra e utilizável pelo indivíduo na sua vida cotidiana, conduzindo à sua conservação. Dessa forma, o acervo de conhecimento inclui a localização dos indivíduos no organismo social, determinando as representações sociais que os membros da sociedade vão absorver. Portanto, conforme os autores Beger & Luckman ( 2002: 99):

Os significados objetivados da atividade institucional são concebidos com conhecimento e transmitidos como tais. Uma parte deste conhecimento é julgada para todos, enquanto outra parte só interessa a certos tipos. Toda a transmissão exige alguma espécie de aparelho social. Isto é, alguns tipos são designados como transmissores, outros como receptores do conhecimento tradicional. O caráter particular deste aparelho variará naturalmente de uma sociedade para outra. Haverá também procedimentos para a passagem da tradição dos conhecedores aos não conhecedores.

Este acúmulo de conhecimento constitui uma dinâmica motivadora da conduta social do indivíduo. Define as áreas da sociedade e designa todas as situações que se localizam dentro dessas áreas. Define os papéis sociais que devem ser desempenhados e controla e prediz todas estas condutas - conhecimento socialmente objetivado como tal, como um corpo de verdades universalmente válidas sobre a realidade em diversos setores comuns e específicos do organismo social. Da mesma forma, o universo simbólico é construído também por meio das objetivações sociais. No entanto, sua capacidade de atribuição de significações excede de muito o domínio da vida social, de modo que o indivíduo se localiza dentro deste universo de acordo com o papel social desempenhado.

Assim, ainda com Beger & Luckman (2002: 135), o universo simbólico ordena a história, pois:

Localiza todos os acontecimentos coletivos numa unidade coerente, que inclui o passado, o presente e o futuro. Com relação ao passado, estabelece uma memória que é compartilhada por todos os indivíduos socializados na coletividade. Em relação ao futuro estabelece um quadro de referência comum para a projeção das ações individuais. Assim, o universo simbólico liga os homens como seus predecessores e seus sucessores numa totalidade dotada de sentido, servindo para transcender a finitude da existência individual e conferindo um significado à morte individual. Todos os membros de uma sociedade podem agora conceber-se como pertencendo a um universo que possui um sentido que existia antes deles terem nascido e continuará a existir depois de morrerem.

Portanto, o universo simbólico cristaliza-se na sociedade da mesma forma como se dá a acumulação de conhecimento. Isto é: os universos simbólicos são produtos sociais e culturais que têm sua história influenciando diretamente no comportamento dos atores sociais e na maneira em que se dá a legitimação das representações sociais desde a crise da racionalidade no final do século XIX para o início de século XX.

A análise de discurso e a Significação
Construção Social da Realidade

É fato que para se entender a realidade da vida diária dos indivíduos é necessário levar em consideração as diversas atribuições de significados e interpretações dos sistemas de sinais. A investigação dos fundamentos do conhecimento da vida cotidiana realizada por meio da linguagem constrói as objetivações dos processos de significados e o mundo intersubjetivo individual e coletivo. A realidade sempre é apresentada com uma dialética que tem como característica principal a objetividade e a subjetividade que os símbolos e a própria linguagem têm dentro do organismo social. Isso se deve ao fato de existir na vida cotidiana uma continua interação e comunicação, em que há compreensão das objetivações e subjetivações da organização social.

A realidade da vida diária aparece com campos infinitos de significações de modo geral mas limitada quando comparada a outras realidades. Dentro desta relação, a linguagem aparece como meio de interpretação, comunhão de conhecimento e fornece à realidade uma distinção entre os grupos que, juntos, formam a estrutura da sociedade.

Isso se deve ao fato de a análise de discurso permitir a tradução das experiências que pertencem à vida diária e suas diversas relações sociais ordenadas e organizadas, dentro de um campo de apropriações de significados em que se tem a linguagem verbal como principal instrumento de comunicação entre todos os membros do organismo social.

Vinícius de Moraes um marco na linguagem subjetiva:

Vinícius sabia perseguir o tempo sem perder o passo. Ninguém poderia imagina-lo por exemplo, tomando o chá das cinco, engravatado e triste, na Academia Brasileira de Letras. Teve porém, um pacto fechado com a imortalidade, em cada um de nós. Drummond disse certa vez: "Vinícius é o único poeta brasileiro que viveu como um poeta". Ele vivia intensamente e era de sua vida que arrancava a poesia. Quanto mais veloz era a vida, mais numerosos os parceiros, mais envolventes as mulheres, melhor sua poesia. Essa multiplicidade emprestava ao poeta e letrista aquela imagem de que ele não acabaria nunca. Uma força, e uma coragem impar de sua alma. A imortalidade.

Vinícius, segundo Castello (1994), se levarmos em consideração o temperamento dionisíaco e extremamente "quente" do compositor, percebe-se que os aspectos emocionalmente contidos da bossa nova não se harmonizam com sua imagem de boêmio e apaixonado por todas as informações que vêm dos mais diferentes redutos, dos refinados aos populares, ao trocar o status de poeta erudito pela condição de letrista popular, o que faz desde os anos 50, quando passa a ter mais contato com os músicos populares, Vinícius não busca um meio- termo; aliás, a moderação não é percebida em sua personalidade nem em seus discursos como pessoa pública e como eterno apaixonado pela vida. Procura, pelo contrário, entrar em profunda comunhão com a linguagem e a companhia pouca "elevada", dos sambistas, se comparadas com o mundo da diplomacia, onde atuava, e o dos poetas livrescos.

Vinícius de Moraes se tornou um marco, não só como poeta que é, mas no grande letrista que se transformou, enriquecendo a música popular brasileira, com seu lirismo. Seguia sua intuição arrisca. Para ele, poetas não deviam temer a sua intuição, sob pena de trair aquilo mesmo que os constitui. Poetas não devem evitar esses estados de contemplação gratuita em que, à sua revelia e muitas vezes contra seus próprios pensamentos, muitas sentimentalidades e miragens transcendentes sobre o amor e sobre a vida, passam.

Logo, percebe-se que Vinícius sabia respeitar a sua própria cegueira, às vezes quase estupidez, que deu lastro a tantas de suas criações. Ia pelo faro, e o seu instinto fundido a sua sensibilidade aguçada lhe dizia que: "de repente não mais que de repente (...)" a poesia não estava mais nos livros, mas em barzinhos apertados, em rodas de violão, em esquinas, apartamentos, e por que não no meio da rua e na beira-mar, onde rapazes e moças até então desconhecidos se deixavam guiar pelo coração, resplandecendo as emoções únicas que o ato de amar, apaixonar favorecia para que o lirismo, o ser amante se legitimasse dentro do organismo social.

Em suas composições, com toda sutiliza de poeta, é perceptível algumas contradições, favorecidas pelos mitos e folclores da diferença que vestem os gêneros. Por isso, podemos encontrar em Vinícius vários momentos em que o poeta encontra-se em desafio com ele mesmo. São diferentes os prismas que colocam o amor em diversas instâncias de superioridade, ampliando-a ao conceito de poesia, retirando a restrição que havia nos gêneros literários para que a poesia seja o mundo real. A amplitude de Vinícius tem estar em fazer a conexão entre a fraqueza humana e aos mistérios majestosos guardados nas miudezas do cotidiano, de seu apelo as emoções (Cf LYRA, 1983).

Para o homem Vinícius a poesia era tão vital que ela seria o retrato de sua vida. Como todo indivíduo, ele está envolvido por instituições, regras sociais e morais que definem o comportamento, o ato de pensar e até mesmo os sonhos, e todos nós, sem exceção, crescemos acreditando como certo, são os valores que interiorizamos e em paradoxo desejos e fantasias que não fazem parte da matemática social. Era o poeta da encruzilhada e o poeta nas encruzilhadas (Cf CASTELO, 1994).

Vinícius de Moraes
Uma significação objetivada - A Poesia Viva

Todo indivíduo, segundo Beger & Luckman (2002), passa por dois processos de socialização: primário (valores institucionais apreendidos na infância) e o secundário que requer indagação e a atividade social em diversos grupos em que há formação de estilo de vida, desenvolvimento da percepção críticas subjetiva e objetiva do sujeito inserido no organismo social se transformando em membro da sociedade.

Segundo Castello (1994), Vinícius foi um homem que viveu para se ultrapassar, para se entregar totalmente as emoções e aos momentos, para compartilhar sentimentalidades, momentos e palavras, para jogar com as ilusões e com a credulidade. Um ser apaixonado e, por isso, um indomável pelas regras sociais. Pode-se perceber a tamanha relação que existe o homem Vinícius com suas experiências no percurso que ele mesmo traça para si. Este sujeito ativo é considerado um marco na alta-modernidade, transbordando vivacidade e emoções nos versos; sua identidade é formada, a partir do momento, que ele, com toda sua singularidade, entende a importância dos diferentes significados que ele apreende com as relações que ele mantém nos grupos que passa a pertencer - com toda sua necessidade de viver intensamente cada pessoa, sentimento e palavra - durante o processo de socialização secundária.

Assim, em princípio, uma ação e seu sentido podem ser apreendidos a partir do desempenho individual e dos vários processos subjetivos que a eles se associam. Dessa forma, Vinícius teve a sociedade como uma realidade subjetiva e objetiva, que apresentara o seguinte significado: estar em sociedade é participar da dialética da sociedade e foi isso que ele fez durante sua vida.

Dele disse Carlos Drumond de Andrade in Castello (1994):

Vinícius é o único poeta brasileiro que ousou viver sob o signo da paixão. Quer dizer, da poesia em estado natural (...) eu queria Ter sido Vinícius de Moraes.

Quando deixa a poesia de gabinete em segundo plano e abandona a diplomacia, ele passa a ser considerado como o grande letrista e fundador do estilo musical, que é conhecido hoje, como MPB. Além disso, passa a Ter a vida como grande aliada para estar borboleteando entre amores e viagens, parcerias e madrugadas, dor e saudade, boêmia, muitos e diversificados amigos e algumas doses de uísque. Experiências que iriam fomentar a sua inspiração e transformá-lo no primeiro letrista que expressara em suas linhas, a poesia em forma de música, que tem uma singular característica, a existência de homens e mulheres claramente definidos e que estão em sintonia com a expressão amorosa independentemente dos atributos dos papéis sociais. O amor era a única instituição verdadeiramente universal.

CONCLUSÃO

Há, entre as realidades, uma que se apresenta como sendo a realidade por excelência: a da vida cotidiana, onde os signos e sistemas de sinais apreendidos são dotados de significados para o sujeito que participa ativamente ou como observador da interação social.

A vida cotidiana é, sobretudo, a vida com linguagem, e é por meio desta que se torna possível a interação social e consequentemente a formação das diversas representações sociais. A compreensão e desmistificação da apreensão da linguagem a priori verbal e seus significados é feita através da análise de discurso.

A linguagem, como instrumento de comunicação entre os atores sociais, intensifica a interação social e, de certa forma, dispõe - para a objetivação das experiências vivenciadas pelos indivíduos - uma sedimentação de conhecimento que é, em todos os instantes, interpretado de acordo com tais experiências, extraindo diferentes significações. Desse modo, a linguagem é decisiva para que se possa interpretar e dar sentido as objetivações apresentadas - de acordo com as experiências vivenciadas.

Sendo os universos simbólicos produtos históricos da atividade humana, eles são construídos segundo uma cultura e podem vir a ser modificados através de ações dos seres humanos. Este fato se deve à realidade social e culturalmente definida por sistemas de sinais e seus respectivos significados.

A formação da identidade social se processa a partir das representações sociais. A identidade pode ser considerada como um produto derivado da dialética do indivíduo com a sociedade em que vive. Deduz-se que a diversidade de identidade é provocada pelo vasto universo simbólico, base da realidade sócio-cultural. Dessa forma, a teoria sobre a formação da identidade social e de sua apropriação de significação está relacionada com o universo simbólico por meio da linguagem.

Para Vinícius de Moraes a realidade é pura poesia; por isso percebe-se que os seus limites são ultrapassados pelas palavras dotadas de significações que tratam da subjetividade humana e que demonstram a relação que o indivíduo mantém entre o mundo de suas emoções implícitas com a sua vida cotidiana.

A dialética entre o indivíduo e o mundo socialmente construído está sempre em transformação, na qual o ser humano é sujeito ativo, pois produz a realidade social por meio da linguagem e suas diferentes conotações - com as diversas significações apreendidas na e pela construção social da realidade. Vinícius de Moraes, nesse processo, torna-se um desbravador que utiliza a poesia como instrumento de trabalho para desmistificar as atribuições de papéis sociais, a partir das experiências que ele compartilha com as diversas relações que mantém durante a sua vida, dentro do seu contexto sócio-cultural.

 

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