ANÁLISE DO DISCURSO NA CANÇÃO BUARQUEANA
O Discurso Poético
e sua relação com outros Discursos

Dith Jones Baptista Soares (UENF)

A Linguagem tem princípios que a torna fundamental para todo e qualquer ser. Desde os primórdios, o homem tinha a necessidade de estabelecer relações, de exprimir sentimentos, sensações, e estes atos eram feitos através da linguagem, como são feitos até hoje.

A Linguagem está sempre a nossa volta, pronta para envolver nossos pensamentos e ações, é ela que nos acompanha por toda vida.

Já dizia Rousseau (p. 137): “a palavra distingue os homens e os animais; a linguagem distingue as nações entre si. Não se sabe de onde é um homem antes que ele tenha falado”. Desta forma, temos a certeza de que sem a linguagem não haveria meios de estabelecer relações, pactos. A história talvez não existiria, assim como não existiria o próprio processo de comunicação. Pois “desde que o homem foi reconhecido por um outro ser sensível e semelhante a si próprio, o desejo e a necessidade de comunicar seus pensamentos fizeram-no buscar meios para isto.”(Rousseau, p. 137). A linguagem é significativa quando comunica, quando há um processo de compreensão. Sabe-se que o meio social e cultural são fatores que influenciam na linguagem, e se o homem tem a necessidade de se comunicar, ele é o maior criador de recursos que auxiliam na produção da linguagem, e seu maior recurso para a comunicação é a palavra. Segundo Marilena Chauí:

A linguagem é um instrumento do pensamento para exprimir conceitos e símbolos, para transmitir e comunicar idéias abstratas e valores. A palavra, (...) é uma representação de um pensamento, de uma idéia ou de valores, sendo produzida pelo sujeito pensante que usa sons e letras com essa finalidade. O pensamento puro seria silencioso ou mudo e formaria, para manifestar-se, as palavras. Duas provas poderiam confirmar essa concepção de linguagem: o fato de que o pensamento procura e inventa palavras; e o fato de que podemos aprender outras línguas, porque o sentido de duas palavras diferentes em duas línguas diferentes é o mesmo e o tal sentido é a idéia formada pelo pensamento para representar ou indicar coisas. (CHAUÍ, 1995: 142).

Com a junção de palavras podemos ter a formação de um texto, e sabe-se que “toda palavra precisa de alguém que a assuma, de outro que a ouça e tem por finalidade persuadir” (Baccega, 35), sensibilizar, criticar... Assim, se temos um conjunto de idéias formado por palavras, podemos ter um discurso, que segundo Maria Aparecida Baccega...

É uma manifestação textual das formações ideológicas/formações discursivas, não é apenas uma cadeia de enunciados, frases ou palavras que se justapõem. Ele tem que supor o conjunto das relações sociais que o constituem e que estão inscritas na palavra, matéria-prima de que ele se utiliza.

Para que o discurso tenha um fundamento, é preciso haver condições mínimas de entendimento. Se não houver, o ato de comunicação não se efetivará, e o discurso cairá no vazio. Ou, como dizem os que trabalham com linguagem, os discursos se “desqualificam”.

Para Bakhtin (1998: 225) o “Discurso não reflete uma situação, ele é uma situação. Ele é uma enunciação que torna possível considerar a performance da voz que o anuncia e o contexto social em que é anunciado.”

A Análise do Discurso é uma importante ferramenta para as diversas relações que desejamos fazer em textos diversificados. Com ela e através dela, temos subsídios suficientes para elaborarmos um trabalho coerente e consistente. Para exemplificar melhor esta questão, o pensamento de Orlandi (2000: 15 e 39) nos proporciona uma visão mais clara a respeito de papel da análise discursiva, o autor diz que a Análise do Discurso

...não trata da língua, não trata da gramática, ela trata do Discurso. O discurso é uma palavra em movimento, é uma prática de linguagem. Não há começo absoluto ou ponto final para o discurso. Um dizer tem relação com outros dizeres realizados, imaginados ou possíveis.

Segundo Maria Aparecida Baccega, o discurso poético tem por objetivo a construção de uma “realidade estética”.

A realidade estética significa problematização da realidade objetiva, seja ela qual for; a literatura visaria, então, não apenas colocar a presença das coisas, mas a interrogar essa presença, a colocá-la em questão; e uma das qualidades do texto literário está justamente na força deste questionamento. (FREITAS, 1986: 42)

No discurso Poético como no discurso social, a palavra ganha atribuições reais e irreais que permitem que uma mesma palavra possa atribuir ou sugerir significados sempre novos. Dentro do discurso poético, que é envolvente, abrangente e dinâmico, encontramos algumas relações ideológicas e culturais que podem representar o homem e a sociedade através de seu cotidiano.

[...] a imediaticidade e o pensamento manipulador estão entre as características da vida cotidiana, o útil é o verdadeiro em razão do critério de eficácia; o critério de validez é o da funcionalidade [...] A vida cotidiana não é o lugar da alienação, embora as diversas formas de dominação e controle procurem transformá-la no lugar privilegiado de alienação, no espaço ideal para que ela se instale. No cotidiano estão os homens, portadores da objetividade social, construtores e transmissores de uma dada estrutura social. (Ficção e História; imprensa e construção da realidade. São Paulo, ECA-USP, 1992. p. 107,111, e 112)

Assim sendo, o poético tem a possibilidade de trabalhar com o cotidiano. Para Bakhtin (1998: 293 e 294), dentro do discurso poético, a “palavra é o limite da cultura, cada ato cultural usa a palavra de modo diferente. O discurso poético não é a emanação de um Eu lírico individual e soberano.” Já para Aristóteles (Poética, IX, 145b) o “discurso poético deixa você em profunda impressão. O gênero poético não trata do real e nem do irreal, mas do possível.” No sentindo aristotélico da palavra, o discurso poético dirigi-se à imaginação, à construção de uma fantasia.

Já o discurso social, trabalha com as dificuldades e diferenças sociais que podem gerar conflitos e tentam manipular o pensamento do homem. Deste modo, o discurso social entra em choque com discursos da história e da própria poética, muitas vezes, o discurso social trapaceia a própria realidade. Embora o discurso poético siga o caminho de rupturas e contestações, muitas vezes ele se apresenta preso ao sistema de domínio da própria sociedade.

Todos os homens, qualquer que seja a sua posição na hierarquia social, vivem as cotidianidades. Nela colocam-se ‘em funcionamento’ todos os seus sentidos, todas as suas capacidades intelectuais, suas habilidade manipulativas, seus sentimentos, paixões, ideais, ideologias. (HELLER, 1989: 17)

Em muitos casos a vida cotidiana está no centro do acontecer literário. O homem usa uma trama de histórias para representar a “sua” própria realidade. O discurso poético é o jogo de possibilidades, é o jogo de poder e satisfazer. Apesar de diferente de outros discursos, se interpenetra com outros contextos, já que ambos se alimentam da palavra, o grande agente da interação verbal; e ambos se apresentam com uma variedade de conhecimentos e idéias que podem ser trabalhados com o princípio da intertextualidade.

Entrando na questão do uso da palavra, tomaremos como instrumento de análise a obra de Chico Buarque de Hollanda. Com uma prática poética, o compositor consegue criar canções-poemas que nos levam a identificar uma (inter) relação com vários discursos, principalmente o social, o poético e o histórico-cultural. Em uma parte de sua obra, conseguimos identificar a construção de perfis femininos que são cantados e decantados pelo autor de Atrás da Porta. Chico consegue tematizar a figura feminina usando uma voz feminina, e em alguns casos, usando a voz masculina. Ao se colocar com um pensamento de mulher, consegue revelar os desejos e insatisfações da condição feminina; e quando utiliza como recurso a voz masculina, consegue moldar as personagens a um discurso masculinizado, fazendo com o universo feminino seja restrito a idéias patriarcais.

Para mostrar a importância do discurso poético e de sua relação com outros discursos, como foi citado anteriormente, tomaremos como princípio a canção de Chico Buarque, intitulada: “Tira as Mãos de Mim”.

Ele era mil

Tu és nenhum

Na guerra és vil

Na cama és mocho

Tira as mãos de mim

Põe as mãos em mim

E vê se o fogo dele

Guardado em mim

Te incendeia um pouco

Éramos nós

Estreitos nós

Enquanto tu

És laço frouxo

Tira as mãos de mim

Põe as mãos em mim

E vê se a febre dele

Guardada em mim

Te contagia um pouco.

Analisando de forma superficial esta letra, tem-se a idéia de que uma mulher fala com um homem sobre um outro homem que não é ele (o ouvinte). Assim, temos a 1ª, 2ª e 3ª pessoa do discurso. Tem uma voz do discurso que tece a história, uma voz feminina. O texto é construído com antíteses: “Tira/Põe”, “Mil/Nenhum”, com metáforas, que se apóiam em uma semelhança ou comparação conotativa: “Éramos nós, estreitos nós”. Desta forma temos a idéia de que a pessoa do discurso que fala e de quem se fala (nós), estavam sempre juntas, excluindo a pessoa com quem se fala (tu).O 1º ‘nós’,(ele e eu) ,é um pronome pessoal do caso reto, é metáfora de ‘nós’ substantivo, ou seja, o 2º ‘nós’, que é plural de nó (substantivo). Ao fazer esta relação com palavras semelhantes na escrita, mas com sentidos diferentes e classes gramaticais diferentes, percebemos que o autor joga com as palavras, e temos a oportunidade de perceber os diferentes significados que ela vai adquirindo, comprovando o que foi falado anteriormente a respeito do discurso poético. Chico então construiu uma figura de linguagem chamada: Antanaclase. Observamos que esta análise teria uma relação com a concepção que Baccega e Bakhtin fazem a respeito da análise do discurso.

A partir desta análise do discurso poético, que é muito utilizado pela literatura e pelas manifestações artísticas que utilizam a linguagem como recurso, podemos fazer uma outra análise que esta canção também contém: um discurso histórico. Para iniciar este processo de interpretação, voltaremos ao período histórico do Brasil.

No século XVII, o Brasil sofreu invasão Holandesa, O Brasil ainda era colonizado. Em meio a esta invasão, se destacou um mulato alagoano chamado Domingos Fernandes Calabar, casado com Bárbara. amavam-se e lutavam, juntos, pelos seus ideais. O Brasil vivia um grande desenvolvimento no cultivo da cana-de-açúcar, despertando os interesses de outras nações, principalmente a Holanda. Isso fez com que os holandeses invadissem o Nordeste. Em uma dessas invasões, no Arraial do Bom Jesus, começou a aparecer a figura de “Calabar”, defendendo o seu lugar e mais tarde lutando ao lado dos Holandeses, o que lhe custou um título de traidor da pátria brasileira, a história foi contada pelos portugueses, que na época tinham o poder sobre a terra brasileira.

Voltando-se para Bárbara, mulher de Calabar, teve o poder de despertar o desejo em um amigo de Calabar, Sebastião Souto, que foi quem entregou o seu “amigo” para os portugueses. Cometeu este ato, com o simples desejo de possuir Bárbara.

Tomando como princípio o texto de José Luiz Meurer, temos a idéia de que o indivíduo tem a capacidade de “produzir, reproduzir ou desafiar a realidade social na qual vive” (Uma dimensão crítica do estudo de gêneros textuais. Pág.18), uma grande contribuição que o texto poético também nos oferece. A partir da Análise Crítica do Discurso, (1) produz e reproduz conhecimentos e crenças por meio de diferentes modos de representar a realidade; (2) estabelece relações sociais; e (3) cria, reforça ou reconstitui identidades. Temos, através da idéia tríplice, a informação de que através desta canção, Chico Buarque reproduziu conhecimentos a respeito da história de Calabar e do período de colonização, da lingüística, da linguagem e sua estruturação textual, e da literatura, utilizando o jogo de palavras e a literariedade. Usando a tríplice, ele estabeleceu relações sociais e apresentou ou criou identidades, principalmente a identidade feminina, na pessoa de Bárbara.

Observemos:

Ele era mil (Calabar)

Tu és nenhum (Souto)

Na guerra és vil (Souto)

Na cama és mocho (Souto)

Tira as mãos de mim (Bárbara)

Põe as mãos em mim (Bárbara)

E vê se o fogo dele (Calabar)

Guardado em mim (Bárbara)

Te incendeia um pouco (Souto)

Éramos nós (Bárbara e Calabar)

Estreitos nós (Bárbara e Calabar)

Enquanto tu (Souto)

És laço frouxo (Souto)

Tira as mãos de mim (Bárbara)

Põe as mãos em mim (Bárbara)

E vê se a febre dele (Calabar)

Guardada em mim (Bárbara)

Te contagia um pouco. (Souto)

Neste texto, temos um estereótipo feminino não muito comum. Uma mulher que usa de pressão psicológica para atingir o homem que entregou o seu marido. Ela se entrega a ele, vive com ele, e o martiriza fazendo comparações com a pessoa que ele traiu. Ela, Bárbara, é a narradora, e as ações narradas por ela têm uma idéia natural, comum. Através da atitude da narradora, temos a percepção de diferentes concepções a respeito da vida social, de valores e ações humanas. A relação discursiva se mostra através do poder que Bárbara exerce sobre Souto, ela se mostra autoritária pelo simples fato de saber da traição de Sebastião e saber do sentimento que o mesmo nutre por ela. Ela utiliza o discurso direto: “Tira as mãos de mim, põe as mãos de mim”, temos a idéia de poder através do verbo no modo imperativo: “Tira/Põe”. Uma idéia de aceite por parte de Sebastião é vista, que ouve tudo calado e não contesta.

As principais identidades são Bárbara (a narradora), Calabar (o marido) e Sebastião Souto (o traidor). A relação social neste discurso se apresenta através da omissão de Souto, que aparenta ser uma pessoa menos esclarecida, ou então submetido ao remorso de ter traído o seu amigo, assim, não questiona, não contesta o comportamento severo de Bárbara, que tem como característica, uma mulher esclarecida, ciente de seu desejo de vingança e de seu poder de persuasão, desta forma, ocorre um equilíbrio entre poder e se submeter.

Esta pequena tentativa de análise do discurso permite observar a variedade de interpretações que somos capazes de fazer, graças aos recursos da linguagem. Através da dinamicidade do discurso poético e da sua relação intertextual com outros discursos, somos capazes de encontrar signos, de reformular, produzir ou formular idéias relacionadas com pensamentos sociais, históricos, políticos e culturais.

Todo e qualquer discurso se relaciona com as posições de seus agentes, de acordo com a posição que eles assumem no campo das lutas sociais e ideológicas, ou seja, através do discurso, o agente manterá ou não a sua posição a respeito dos assuntos que o cerca. Tudo dependerá do diálogo que ele manterá com os outros discursos. E como lembra Bakhtin (1998: 123), “diálogo não significa apenas a comunicação entre duas pessoas; refere-se ao amplo intercâmbio de discursos, tanto na dimensão sincrônica como diacrônica, manifestados pela sociedade”.

Devemos ver estes discursos como “momentos’, onde percebemos a manifestação de conhecimentos e um grande processo de transformação de uma sociedade. Não é possível, então, isolar os atos de comunicação, a linguagem, os discursos. Ambos estão interligados a uma cadeia que tem significado efêmero, que dependendo de um dado histórico, político, econômico ou cultural, pode tomar outras significações. E o homem é o personagem principal destas possíveis transformações, que junto com a poética, que é “o discurso da existência humana”, poderão reescrever todo e qualquer discurso que venha surgir dentro do mundo real ou irreal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BACCEGA, Maria A. História e Literatura: aproximações e distanciamentos. São Paulo: [s/e. e s/d.?].

CARVALHO, Antônio Pinto de. Arte Retórica e Arte Poética em Aristóteles. Rio de Janeiro: Ediouro, [s/d.].

CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1995.

CLARK, Katerina. Mikhail Bakhtin. São Paulo: Perspectiva, 1998.

FREITAS, Maria Teresa. Literatura e História; o romance de André Malraux. São Paulo: Atual, 1986.

HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. 3ª ed. Trad. de Carlos N. Coutinho e Leandro Konder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

KAYSER, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária; introdução à ciência da literatura. Coimbra: Armênio Amado, 1967, 2 v.

LYRA, Pedro W. Literatura e Ideologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993.

SOUZA, Roberto A. Teoria da Literatura. São Paulo: Ática, 2000.