AS “COLUNAS DE ATUALIDADES”
UM GÊNERO DO DISCURSO

Mariana Morais de Oliveira (UERJ)

O objetivo deste estudo foi, com base na teoria dos gêneros do discurso proposta por Bakhtin, comprovar, através da descrição de características, a existência de um gênero do discurso que aqui convencionamos chamar “Colunas de Atualidades”.

As referidas colunas vêm servindo a um estudo que privilegia, não apenas a questão do gênero, mas também aborda a lexicologia, a semântica e a expressividade. Aqui, nos detivemos a apresentar um pouco de nossas reflexões e elegemos o aspecto que tange, especificamente, aos gêneros do discurso.

Um grande interesse pelo estudo da linguagem como processo de interação, alicerce fundamental do conceito de gênero, foi outro fator motivador para que discorrêssemos aqui sobre este assunto. É importante definirmos, desde já, que seguiremos aqui os princípios teóricos expostos por Bakhtin, o precursor desse estudo. Uma vez que nossa intenção é a descrição das características do gênero que utilizamos como corpus, consideramos irrelevante apresentar diferentes posicionamentos acerca da questão da conceituação de gênero. Há divergentes correntes de análise, é fato. Entretanto, a intenção não é esgotar uma discussão conceitual e teórica. Assim sendo, orientar-nos-emos pelas noções bakthinianas, que rapidamente traçamos a partir de então.

Sobre os Gêneros do Discurso.

Perceber a utilização da língua como um processo com variadas, heterogêneas e múltiplas maneiras de realização, é fundamental para a compreensão do ponto de partida proposto por Bakhtin para conceituar gênero do discurso. Para o autor, o ser humano em quaisquer de suas atividades vai servir-se da língua e a partir do interesse, intencionalidade e finalidade específicos de cada atividade, os enunciados lingüísticos se realizarão de maneiras diversas. A estas diferentes formas de incidência dos enunciados, o autor denomina gêneros do discurso, já que “...cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados”.(Bakhtin, 1992: 277)

É válido comentarmos que essa “relativa estabilidade”, que é inerente a um dado gênero, chama a atenção e deve ser compreendida como algo passível da alteração, aprimoramento ou expansão. Em se tratando de linguagem, que é atividade verbal, modificações podem ocorrer em função de desenvolvimento social, de influência de outras culturas, ou de outros tantos fatores com que a língua tem relação direta, até mesmo com o próprio passar do tempo. Ciente do caráter inesgotável das atividades humanas e seu constante processo de crescimento e evolução, torna-se impossível definir quantitativamente os gêneros, que se diferenciam e se ampliam. É o uso que acarreta a possibilidade de transformação.

Um dos aspectos mais marcantes dos gêneros, que alude de forma direta à questão do “uso” é o fato de que devemos considerar o gênero como um meio social de produção e de recepção do discurso. Para classificar determinado enunciado como pertencente a dado gênero, é necessário que verifiquemos suas condições de produção, circulação e recepção. E, ainda, é de extrema relevância observar que o gênero, como fenômeno social que é, só existe em determinada situação comunicativa e sócio-histórica. Caso modifiquemos tais condições é possível que um mesmo enunciado passe a pertencer a outro gênero.

Bakhtin, então, com sua proposta de conceituação para os gêneros do discurso veio suprir a necessidade de se compreender os enunciados como fenômenos sociais, resultantes da atividade humana, caracterizados por uma estrutura pilar básica, suscetível a determinadas modificações. Um gênero do discurso é parte de um repertório de formas disponíveis no movimento de linguagem e comunicação de uma sociedade. Desse modo, só existe relacionado à sociedade que o utiliza.

Indissociável da sociedade e disponível em sua memória lingüística, o domínio de um gênero permite ao falante prever quadros de sentidos e comportamentos nas diferentes situações de comunicação com as quais se depara. Conhecer determinado gênero significa ser capaz de prever regras de conduta, seleção vocabular e estrutura de composição utilizadas, é a competência sócio-comunicativa dos falantes que os leva à detecção do que é ou não adequado em cada prática social. E ainda, quanto mais competente - e experiente - for o indivíduo, mais proficiente ele será na diferenciação de determinados gêneros e na facilidade de reconhecimento das estruturas formais e de sentido que o compõe.

A vivência das situações de comunicação e o contato com os diferentes gêneros que surgem na vida cotidiana exercitam a competência lingüística do falante/ouvinte produtor de enunciados. A saber: competência lingüística é um conceito aprofundado, que possui certa complexidade, mas que aqui será recortado no sentido de que todos nós somos aptos, temos uma estrutura interna que, aliada ao social, faz com que consigamos perante determinada estrutura e contexto, definir a que categoria um dado enunciado pertence. Essa competência é inerente ao ser humano social, que interage, comunica, cria e recria. Na medida em que um indivíduo avança em grau de escolaridade, ele tende a tornar-se cada vez mais proficiente na operacionalização de variadas categorias textuais. Da mesma maneira experiência de vida e cultura geral fazem evoluir lingüisticamente os falantes.

Sendo assim, é fundamental percebermos o gênero como um produto social e como tal, heterogêneo, variado e suscetível a mudanças.

Devido à extrema heterogeneidade dos gêneros do discurso, resultado da infinidade de relações sociais que se apresentam na vida humana, Bakhtin optou por dividir os gêneros em dois tipos: Gênero Primário (simples) e Gênero Secundário (complexo). A heterogeneidade lingüística é o que determina a subdivisão que se faz entre os gêneros.

Os chamados gêneros primários são aqueles que emanam das situações de comunicação verbal espontâneas, não elaboradas. Pela informalidade e espontaneidade, dizemos que nos gêneros primários temos um uso mais imediato da linguagem (entre dois interlocutores há uma comunicação imediata). Há essa imediatização da linguagem nos enunciados da vida cotidiana: na linguagem oral, diálogos com a família, reuniões de amigos, etc.

Nos gêneros secundários existe um meio para que seja configurado determinado gênero. Esse meio é normalmente a escrita. Logo, se há meio, dizemos que há relação mediata com a linguagem, se há meio, há uma instrumentalização. O gênero, então funciona como instrumento, uma forma de uso mais elaborada da linguagem para construir uma ação verbal em situações de comunicação mais complexas e relativamente mais evoluídas: artística, cultural, política. Esses gêneros chamados mais complexos absorvem e modificam os gêneros primários.

Os gêneros primários, ao se tornarem componentes dos gêneros secundários, transformam-se dentro destes e adquirem uma característica particular: perdem sua relação imediata com a realidade existente e com a realidade dos enunciados alheios... (Bakhtin, 1992: 281)

Para melhor compreensão do fenômeno de absorção e transmutação dos gêneros primários pelos secundários, Bakhtin traz como exemplo uma carta ou um diálogo cotidiano. Uma carta ou um fragmento de conversação do dia-a-dia, quando inseridos em um romance se desvinculam da realidade comunicativa imediata, só conservando seus significados no plano de conteúdo do romance. Ou seja, não se trata mais de atividades verbais do cotidiano, e sim de uma atividade verbal artística, elaborada e complexa. É importante lembrarmos que a matéria dos gêneros primário e secundário é a mesma: enunciados verbais, fenômenos de mesma natureza. O que os diferencia é o grau de complexidade e elaboração em que se apresentam.

São três os elementos principais em que devemos nos fundamentar para verificar o gênero a que pertence determinado enunciado:

- Conteúdo Temático;

- Plano Composicional;

- Estilo.

O conteúdo temático é o assunto de que vai tratar o enunciado em questão, a mensagem transmitida. Já o plano de composição alude à estrutura formal propriamente dita. Por fim, o estilo leva em conta questões individuais de seleção e opção: vocabulário, estruturas frasais, preferências gramaticais.

Consideremos, ainda, que as três características aqui arroladas como principais nada representam se o enunciado não for analisado levando-se em consideração todo um contexto. Ou seja, os enunciados pertencem a determinada esfera da atividade humana, são devidamente localizados em um tempo e espaço (condição sócio-histórica) e dependem de um conjunto de participantes e suas vontades enunciativas ou intenções.

Podemos concluir então que as três características que definem um gênero - plano composicional, estilo verbal e conteúdo temático - “...fundem-se no todo do enunciado e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação” (Bakhtin, 1992: 277)

Descrição do gênero “Coluna de Atualidades”

Foram utilizadas em nosso corpus de análise três colunas, cada qual veiculada em um jornal de grande circulação no Rio de Janeiro. Devido à grande semelhança estrutural e observando que o conteúdo temático encontrado nas três colunas era basicamente o mesmo, elas foram classificadas como pertencentes ao mesmo gênero: “Colunas de Atualidades”.

Nosso material de análise são colunas de publicação diária: a coluna “Ancelmo Góis”, assinada pelo próprio (Jornal O Globo) , a coluna “Boechat”, também assinada pelo próprio (Jornal do Brasil) e a coluna “Informe do Dia” assinada por Arnaldo César (O Dia). Para o fim de enumeração de características, traçaremos, em linhas gerais, o que foi observado na análise do corpus.

A fim de iniciar a caracterização das nossas “Colunas”, convém estabelecermos quais foram os seus modos de produção, circulação e recepção.

Uma vez que estamos diante de textos jornalísticos, sabemos que há todo um processo próprio de elaboração: seleção de conteúdos, consecução do texto, editoração, diagramação e revisão. Todo esse processo já nos indica que se trata de um gênero secundário, mais complexo e elaborado, cuja relação com a linguagem é mediata. O gênero é um meio, um instrumento para a realização da situação comunicativa.

Em se tratando de circulação, os enunciados são partes constitutivas dos mais importantes jornais de nosso estado. Assim sendo, podemos estabelecer uma relação do gênero como um instrumento através do qual a linguagem se presta a determinada situação de comunicação.

Com relação à recepção, que entendemos como a relação do ouvinte com o enunciado, podemos inferir que haja uma expectativa de obtenção de informação, uma vez que é um texto de jornal. Porém, ao deparar-se com as referidas colunas, o leitor espera receber as informações de forma superficial e irreverente, pois é essa a característica mais marcante dos enunciados que analisamos.

Delimitados esses aspectos importantes, passemos a descrever, de modo geral, as três características - seguindo a teoria bakhtiniana - que compõem o processo de análise e definição de um gênero.

Com relação à estrutura, ou plano composicional, alguns aspectos das nossas colunas são fundamentais para defini-las como gênero específico. Principalmente porque consideramos que das três características, esta é a mais significativa, visto que estrutura é evidente, e formato é visual e impactante. Primeiramente, devemos estabelecer que há dois tipos de linguagem presentes nas colunas: verbal e visual. A linguagem visual se apresenta sob a forma de fotografias ou desenhos caricaturais. É impossível dissociar intencionalidade de apresentação, sendo assim, convém ressaltarmos que, em se tratando de colunas cuja intenção é ironizar, satirizar a realidade e divertir o leitor, a interlocução com o visual é importante, trazendo maior informalidade à notícia transmitida.

A parte verbal propriamente dita se compõe de textos bem diminutos, com títulos jocosos que aludem ao conteúdo informacional. Os títulos são grafados em negrito e essa forma de apresentação, aliada ao caráter chistoso da significação, aguçam a curiosidade e provocam interesse no leitor.

O espaço ocupado é algo que deve também ser observado, uma vez que o trabalho de diagramação em um jornal é bastante complexo. As colunas ocupam posições bem destacadas, de meia página a página inteira no caderno principal dos referidos periódicos. É evidenciado, ganhando destaque especial, o nome do colunista principal, no caso de O Globo e Jornal do Brasil, o próprio colunista assina e dá nome à coluna. No que tange à assinatura, observamos ainda que outros colaboradores também assinam as colunas, às vezes, mais de um por coluna, fato comum em jornais, vários profissionais atuando sob a supervisão de um editor chefe. Há ainda, uma assinatura eletrônica, um endereço de e-mail, para que leitores possam estabelecer contato se assim o desejarem.

Outro aspecto estrutural relevante que devemos comentar é com relação à organização sintática dos enunciados que se apresentam. Os textos são concisos, o que implica diretamente outra característica observada: a economia e a simplicidade no uso de conectivos, às vezes até a omissão deles. Não há estruturas longas, nem períodos com muitas orações, o conteúdo informacional é passado de forma rápida, eficaz e carregada de ironia. Estruturas elaboradas prejudicariam o efeito imediatista desejado.

Vale agora tecermos considerações acerca do tema. O conteúdo temático já se evidencia no título que demos ao nosso gênero: “Colunas de Atualidades”. As colunas versam sobre assuntos que estão em voga no momento, notícias das mais variadas áreas de interesse: política, economia, televisão, turismo, moda, amor, esportes, ecologia, criminalidade, etc. O curioso é que são enfocados detalhes e minúcias pertinentes a cada área. Curiosidades, “fofocas”, mal-entendidos, falências, enfim, tudo aquilo que corrobore com a intenção primordial que é de fornecer informação e descontração.

A última característica proposta por Bakthin para descrever um gênero seria o estilo. Desprezando questões pessoais e individuais, um dos aspectos que desejamos ressaltar sobre o estilo seria a questão da criatividade lingüística. Observamos, durante nosso processo de seleção do corpus, que é recorrente a incidência da linguagem conotativa. Os colunistas usam e abusam da criatividade nas metáforas e comparações; o aspecto polissêmico das palavras é bastante explorado; a ironia também é freqüente. A utilização de neologismos é ponto que também merece destaque, são termos que buscam sempre resgatar expressividade, ironizando e satirizando. Sabendo que a neologia se dá, não apenas pela sintaxe com composição e derivação de novos vocábulos, mas também pela semântica, determinados exemplos inusitados da citada conotação, podem ser considerados casos de neologia semântica..

A utilização de abreviações, abundância de onomatopéias, presença de gírias, recorrente uso de perguntas retóricas e outros recursos que visam a estabelecer interlocução com o leitor.

O que pretendemos neste trabalho não foi esgotar teoricamente a discussão conceitual sobre os gêneros do discurso e nem enumerar todas as características que nos fazem classificar nosso corpus como o gênero “Colunas de Atualidades”, já que tais pretensões, sabemos, levariam à exaustiva pesquisa e inesgotáveis páginas. Privamo-nos, pelo mesmo motivo, de explicitar exemplos datados, coletados do corpus. Julgamos de maior praticidade apenas apresentar os resultados, aguçando sua curiosidade e reflexão.

Julgamos relevante finalizar nos remetendo ao conceito de gênero do discurso e sua aplicabilidade. Conhecer determinado gênero torna um indivíduo capaz de, estando diante dele, reconhecer sua estrutura, prever o conteúdo temático e identificar um estilo familiar. Então, uma vez diante de uma “Coluna de Atualidade”, mesmo que seja uma publicação inédita, em jornal recém-inaugurado, o indivíduo falante já concerne em sua memória lingüística e comunicativa, um modelo pré-concebido, assim, já espera encontrar irreverência, criatividade e curiosidades.

Referências Bibliográficas

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