ENTENDEU E ENTENDE
- MARCAS DE PONTO DE VISTA
NA CONVERSA INFORMAL

Sandra Bernardo (UERJ e PUC-Rio)

Introdução

Analiso, aqui, as formas entendeu e entende, cuja oposição Pretérito-Presente pode estar relacionada ao domínio em que o enunciado é construído, revelando diferentes enquadres de Ponto de Vista, os quais evidenciam a relação entre os aspectos cognitivo e interacional do discurso.

Proponho que o entendeu é empregado quando o falante se refere a uma porção do discurso concluída, deslocando, assim, o Ponto de Vista; já o uso de entende não sinaliza mudança de domínio, não assinala ou desencadeia qualquer deslocamento ou reorientação discursiva, como se o falante ainda estivesse alinhando seu Ponto de Vista.

Em termos interacionais, ao utilizar o entendeu, o falante pode estar abrindo espaço para intervenções dos interlocutores, enquanto o entende pode sinalizar uma tentativa de manter a posse do turno, a fim de continuar buscando a maneira mais adequada de verbalizar um conteúdo.

Pressupostos teóricos e metodológicos

A análise da oposição Pretérito-Presente das formas entendeu e entende foi elaborada com base em Doiz-Bienzobas (1995), segundo o qual uso do Pretérito Perfeito envolve a presença de um Ponto de Vista coincidente com o ponto de referência do discurso, ou seja, situações codificadas em Pretérito Perfeito são conceptualizadas no domínio da realidade do falante; logo, ancoradas em um Ponto de Vista PRESENTE criado a partir de uma Base comum.

Com base no pressuposto de que o tempo é uma categoria dêitica, considerei a oposição temporal de entende e entendeu como marcas de sinalização da construção conjunta de um PV. Subjaz a essa postulação a concepção de que o discurso é “uma ação conjunta, conduzida por pessoas, atuando em coordenação umas com as outras” (Clark, 1996: 3), na qual a linguagem convencional desempenha um papel proeminente.

Os lugares onde as pessoas desempenham tarefas com a linguagem são denominados arenas de uso da linguagem. No centro das arenas, pessoas desempenham papéis de falante e ouvinte, sem agir independentemente, coordenando reciprocamente suas ações. Os participantes não apenas agem em relação uns com os outros, mas coordenam essas ações a partir de uma base comum: “grande massa de conhecimentos, crenças e suposições que interlocutores acreditam partilhar” (op. cit.: 12).

A “base comum é uma forma de autoconsciência, autoconhecimento, autocrença, auto-assunção em que há pelo menos uma outra pessoa envolvida com uma autoconsciência análoga” (op. cit.: 94), descrita a partir da representação mental de uma base partilhada para o acesso a uma parte dessa base comum.

Essas arenas podem ser compostas de camadas de ação, “como palcos teatrais construídos uns sobre os outros” (op. cit.: 16), que representam diferentes domínios de usos da linguagem criados sobre o cenário base - a realidade. Segundo Clark (1996: 17), “camadas mais altas representam outros domínios, freqüentemente hipotéticos, criados para o momento, envolvendo diferentes papéis que lhes dão suporte”.

Cada camada representa um domínio de ação caracterizado por seus participantes, seus papéis, lugar, tempo, traços relevantes da situação, possíveis ações, entre outros aspectos. Tais domínios são co-ocorrentes e recursivos, porém as ações conjuntas das duas camadas possuem enquadres dêiticos próprios.

Nesse sentido, pode-se perceber uma aproximação estreita entre a teoria dos espaços mentais (Fauconnier, 1994/1997; Cutrer, 1994; Dinsmore, 1991) e os postulados de Clark (op. cit.), já que naquela são apresentadas ferramentas teóricas para a ligação entre os domínios cognitivos que se realizariam através das camadas de ação, tornando possível uma abordagem sociocognitiva. Em última análise, as camadas de ação seriam representadas em espaços mentais.

Toda atividade conjunta requer uma coordenação entre seus participantes, implicando uma hierarquia de ações conjuntas, dadas as seqüências de pequenas ações necessárias à sua execução. Uma condição básica para tal realização é a crença, partilhada pelos participantes engajados na mesma atividade, acerca de seus limites e as partes de que se compõem, pois toda atividade conjunta apresenta um início, um desenvolvimento e uma saída. Logo, o que

torna uma ação conjunta é, em última análise, a coordenação de ações individuais realizadas por duas ou mais pessoas. Há coordenação tanto de conteúdo, o que os participantes pretendem realizar, como de processos, os sistemas físicos e mentais que eles selecionam para produzir tais intenções (Clark, 1996: 59).

Ao coordenar ações em conjunto, as pessoas estabelecem uma base partilhada que pode ser de dois tipos: base comum pública e base comum pessoal. A primeira envolve categorizações sobre aspectos comunitários, tais como: tudo que diz respeito à natureza humana; léxico comum (jargões); fatos históricos, normas, procedimentos (scripts). A segunda está relacionada a experiências pessoais: diário pessoal, eventos autobiográficos e léxico pessoal.

O cerne dos atos comunicativos é o significado, obtido através de sinais naturais (natural signs) ou indícios (symptoms), quando se trata do uso da linguagem. Assim, um ato comunicativo é conceituado como o ato conjunto sinalizado por uma pessoa, cujo significado é reconhecido por outra pessoa: “sinalização e reconhecimento são atos participativos em ações comunicativas” (op. cit.: 130), constituem duas partes naturais em que se dividem os atos comunicativos.

Se concebido de forma autônoma, “um sinal é um ato através do qual um falante significa algo. Visto como parte de atividades conjuntas é um ato pelo qual os participantes coordenam o próximo passo na atividade em andamento” (op. cit.: 132). Clark (op. cit.) postula três métodos de sinalização:

(i) Descrição ― ativação da mesma regra para cada símbolo usado por falante e ouvinte;

(ii) Indicação ― localização de entidades no contexto da atividade;

(iii) Demonstração ― representação mental da maneira como entidades se apresentam, em termos de suas aparências.

Conversações são intencionais (purposive), porém não-planejadas. Os indivíduos alcançam, na maioria das vezes, o que pretendem significar nos projetos conjuntos, sejam amplos ou menores, com os quais estão comprometidos, quando estabelecem propósitos conjuntos. Com intuito de completar tais intentos, é preciso trabalhar em nível de projetos mínimos através dos quais negociam propósitos mais amplos. Conversas só parecem planejadas e objetivamente orientadas retrospectivamente; na verdade, são criadas oportunisticamente, pedaço por pedaço, à medida que os participantes negociam propósitos conjuntos e tentam atingi-los ― visão oportunística da conversação (Clark, 1996: 319).

Com base nessa visão, a estrutura hierárquica da conversação é uma propriedade emergente oriunda dos princípios que governam qualquer atividade conjunta bem-sucedida. Durante as interações, os falantes emitem pistas das etapas das ações em curso, sinalizando, indicando ou demonstrando seus propósitos. Trabalham juntos para completar os níveis de execução e atenção, apresentação e identificação, sinalização e construção, propósito e realização. Uma vez que tais princípios são aplicados, pares adjacentes, partes de conversas ou conversas inteiras simplesmente surgem.

A conversa analisada foi gravada durante um jantar, em 1988, com participação, nos trechos aqui analisados, de três pessoas: Wilton (27 anos; carioca), Isalmir (30 anos; carioca) e Célia (23 anos; carioca), responsável pela gravação.

Considerada eminentemente argumentativa, a conversa foi segmentada em três macroepisódios, que, por sua vez, foram divididos em episódios e eventos, a partir dos (sub)tópicos abordados. Cabe ressaltar que se trata da segmentação do texto conversacional, ou seja, o produto da transcrição da conversa, visto retrospectivamente, como um recurso analítico, pois os tópicos de uma conversação são negociados localmente entre seus participantes.

Em termos argumentativos, o macroepisódio inicial Família comilona apresenta uma feição demonstrativa, já que os participantes expressam opiniões sobre os familiares comilões de C e I e apresentam fatos como comprovação das posições. A natureza factual desse tópico central não acarreta disputas de posicionamentos entre os interlocutores, o que é percebido nos outros dois macroepisódios, em cujos fragmentos aparecem entendeu e entende.

Em decorrência dessa observação, considerei a presença de tais formas relacionada à construção de um discurso argumentativo com disputa de posições e/ou formulação de evidências sobre tópicos mais complexos.

Entendeu e entende
sinalizadores de Ponto de Vista

Inicio a análise das formas em estudo com as duas únicas ocorrências de entendeu no terceiro macroepisódio da conversa, em que os falantes tratam dos diferentes usos da língua.

(a) I = 430 então é o seguinte... u::: é:: você... você observa o seguinte...

431 que determinadas- é...é tipos de: comunicação...

432 quer dizer... eu acho que o português é muito usado/

433 quer dizer... existe um: um: teor de dominação sobre

a língua...

434 a língua ela participa para que haja uma classe

dominante...

435 ou seja... eu acho que a classe dominante tem uma

linguagem... entendeu//

[W= 436 é verdade...]

(b) W= 520 é nesse negócio de jogar bacalhau...

521 negócio de jogar abacaxi é mais... (importante isso)

[I = 522 eu pô... oh

Célia... você que senta nos bancos escolares...

523 você pega uma professora que entra na Letras...

524 eu acredito que elas devem... elas devem ser até muito

conservadoras em relação à linguagem... entendeu//

eu acho...

C= 525 em que sentido// conservadora...

I = 526 assim... conservadoras não permitindo ou não

estudando ou ou eliminando o pensamento... de

estudar essas palavras tabu...

527 quer dizer... é a linguagem o túmulo do homem... né//

W= 528 justamente... aquelas... palavras...chaves...

[I = 529 é...é...é a linguagem o túmulo do

homem...

W= que tinha... que tinha (inint.)

Na unidade de idéia (doravante UI) 435 do excerto (a), percebe-se que o falante I sinaliza, através do entendeu, uma preocupação em ser compreendido, após sua “dificuldade” de organizar o discurso ao indicar um novo projeto a ser construído conjuntamente. A superposição da fala de W, é verdade, em concordância com a de I, demonstra a ação conjunta de W na construção do discurso de I, funcionando como estímulo às considerações do mesmo.

Devido ao Ponto de Vista PRESENTE fornecido pelo Pretérito Perfeito; logo, um PV ancorado no tempo em que o discurso está sendo produzido, o falante I refere-se ao seu discurso com o status de acabado, não obstante a dúvida acerca do reconhecimento das suas intenções pelos outros participantes. Dúvida revelada pelo significado do verbo entender.

A função de pontuante de tal forma pode ser reiterada pelo seu papel de sinalizador de mudança de Foco, que abre a possibilidade de os interlocutores complementarem colaborativamente o projeto proposto por I num domínio de conjecturas. Em outras palavras, o entendeu sinaliza a passagem de um espaço mental ou domínio da conjectura para o domínio da conversa, revelando que o Ponto de Vista (PV) foi construído num enquadre dêitico próprio em relação ao do domínio da conversa, não obstante estivesse ancorado nesse.

Postulo um deslocamento de Foco, porque, ao usar o entendeu, o falante sinaliza o fechamento do espaço mental em que o conteúdo estava sendo contextualizado, desviando a sua atenção e a dos demais participantes. O deslocamento de PV deve-se ao fato desse construto de contextualização constituir um centro da conceptualização ou conscientização de um self a quem um enunciado é atribuído. Daí a postulação de que o entendeu guia deslocamentos de Foco e PV

Em (b), a UI 522, no domínio da realidade, ou seja, do aqui e agora da conversa, funciona como uma contextualização, abrindo um espaço-Foco/PV no qual o domínio da conjectura (você pega uma professora que entra na Letras... eu acredito que elas devem... elas devem ser até muito conservadoras em relação à linguagem...) será ancorado. O entendeu, usado ao término da hipótese de I, marca a volta ao domínio da conversa em que o falante questiona a interlocutora a quem se dirigiu acerca de sua posição.

Em ambos os excertos (a) e (b), o entendeu é empregado para sinalizar a indicação de um projeto que versa sobre um novo (sub)tópico, o qual deve se construído sobre o PV apresentado. Todavia essa forma também figura em passagens de reorientação discursiva, em razão de o falante alinhar seu discurso semântica e pragmaticamente na interação com as falas dos seus interlocutores. Os excertos (c) e (d), abaixo, incluem-se nesse caso:

(c)I = 311 no Brasil... no Brasil... você tem um dicionário que

tem cin:qüenta mil verbete...

313 aí... há cem... um milhão de verbete...

314 não... essa é uma língua muito rica... por quê?

W= 315 eu considero rica porque...

[I = 316 acho um pouco prático]

ela- ela ela é:: fica mais fácil de explicar

determinados termos...

317 que outras línguas não conseguem... entendeu//

[C= 318 esse

termo... é errado usar se é mais rica ou menos rica...

319 não existe isso...

I = 320 é eu acho também

C= 321 língua é língua... seja ela-

(d) C= 388 não é a quantidade de: de signo que você adquire...

aprende...

389 que seja o alfabeto X de uma pessoa intelectual/

390 são tipos de linguagem que são expressados por

certos tipos de símbolo... entendeu//

[I = 391 ah... já entendi o que

tu quer dizê]

Em (c), os falantes I e W estão apresentando posições contrárias a respeito de a língua portuguesa ser considerada rica em razão da quantidade de verbetes de seu dicionário. A falante de C, estudante de Letras e responsável pela gravação, tenta acabar com o equívoco de seus dois interlocutores ao final do evento. Embora as falas não representem um acesso a uma camada mais alta para construção de uma hipótese sobre um assunto novo na interação, ao ser utilizado por W para marcar a explicação de sua posição, o entendeu denotaria o deslocamento a outra camada de ação para reorientação discursiva com ajuste de Foco e PV.

O fragmento (d) está inserido num trecho em que os falantes C e I disputam posições sobre algumas características da língua japonesa. A falante C emprega o entendeu com a mesma função com que W o utilizou em (c): sinalizar sua indicação como acabada e/ou se certificar de que sua posição foi compreendida pelo interlocutor, buscando uma reorientação do discurso com a cooperação de I.

Em última análise, o entendeu desempenha o papel de sinalizador de uma perspectiva construída retrospectivamente, inicialmente sem a participação ativa do interlocutor, o que remete à sua função de pontuante com deslocamento de domínio na construção da perspectiva do discurso. O entende, por outro lado, não sinaliza mudança de domínio, como pode ser observado desempenhado no excerto (e), abaixo, em que mostro uma das duas ocorrências dessa forma na conversa analisada (30 min.):

(e) W= 643 aí você vê...

I = [é muito importante...]

a linguagem também... ela é influenciada...

644 ela é influenciada também...

I = 645 [a linguagem é muito importante...]

W= pelo um interesse de alguns... entende//

I = 646 [muito importante]

W= 647 daquele que está comunicando...

648 ela influ- ela influencia conforme o interesse

daquele que tá comunicando...

I = 649 [muito importante... muito importante...

Nessa passagem, o falante W está concluindo um evento em que foram ilustradas posturas distintas, em termos ideológicos, de comunicadores como Haroldo de Andrade e repórteres como Cid Moreira. Uma hipótese para a codificação do verbo entender no presente é a construção do discurso estar permeada pelas falas de I e o fato de o Presente ser especificado como um tempo verbal que não é anterior ao PV/Base (Cutrer 1994), conferindo gramaticalidade, por exemplo, aos seus usos metafóricos.

Portanto, o emprego de entende na conversa em estudo não envolve mudança de domínio. A perspectivização envolve os participantes da conversa, no sentido de que o PV é construído com a participação ativa dos interlocutores, que estariam representados no espaço mental de conceptualização desse PV. Em (f), abaixo, podem ser observadas as diferenças entre entendeu e entende:

(f) C= 345 eu- eu não tô questionando a:...a:...os verbetes... a

quantidade de palavras...

346 tô dizendo a questão da riqueza... entendeu//

[W= (inint.)]

I= 347 riqueza da quantidade...né//

W= 348 (ih comigo nesse caso não é não)

C= 349 eu tô dizendo riqueza nu nu- na questão do valor da

língua...

350 não existe... a- como não existe cultura superior a

nenhuma outra...

351 a língua também não é superior a nenhuma outra...

entendeu//

[W= 352 num é... mas não é a questã- que eu falei

também naquela hora de riqueza foi um

termo (assim) errado que eu coloquei... (inint.)

353 não foi em desvalorização sobre as outras...

354 mas sim da maneira que é flexível em relação a:: a:

ao sen- ao que você quer expressar... entende//

I= 355 quer dizer... segundo Wilton...

[[

W= 356 isso é que eu quero dizer...

I= 357 ele acha o seguinte...

358 quanto mais u...é::...é:: palavras para ele se

expressar...

359 quer dizer... é...é uma língua mais... que facilita mais

u:: a... comunicação...

[W= 360 é justamente é... é a comunicação\parNo excerto (f), a falante C tenta explicar o porquê de não se aplicar a designação rica a uma língua, projeto que não obteve a adesão dos interlocutores em passagem anterior, unidades 318, 319 e 321 (fragmento [c], acima). Nas unidades 346 e 351, o entendeu é usado pela falante para sinalizar o fechamento de etapas do projeto em construção conjunta com os outros participantes, daí o deslocamento de Foco e PV.

Já o uso de entende pelo falante W, na UI 354, não sinaliza mudança de domínio, não assinala / desencadeia qualquer deslocamento ou reorientação discursiva, suas falas encontram-se no domínio da conversa, ou seja, o PV está sendo construído no aqui e agora da conversa. É como se o falante ainda estivesse alinhando / negociando seu PV no projeto em andamento.

Em termos interacionais, ao utilizar o entendeu, o falante pode estar abrindo espaço para testar a indicação do projeto; conseqüentemente, para intervenções dos interlocutores, enquanto o entende pode sinalizar uma tentativa de manter a posse do turno, a fim de continuar buscando a forma mais adequada de verbalizar um conteúdo.

Embora questões prosódicas não constituam objeto de estudo da pesquisa, foi observada uma diferença em termos entonacionais entre as formas entendeu e entende, esta pronunciada com um ligeiro declínio de altura, precedida de uma pausa menor; aquela com uma elevação de altura, precedida de uma pausa maior, portanto com modulação interrogativa mais marcada. Além disso, o acento da primeira encontra-se na última sílaba, ao passo que a segunda é paroxítona, diferenças que acentuam o fato de o entende não ser interpretado como sinalizador de lugar relevante para troca de turno.

Palavras finais
entendeu e entende na construção discursiva

O estudo de entendeu e entende revela que, ao tomar parte em atividades conjuntas como a conversa, os falantes realizam atos comunicativos, a fim de serem compreendidos. Esses atos são organizados a partir de um modelo mental de representação discursiva constituído de estratégias capazes de englobar a coordenação do conteúdo e dos processos necessários para atingir seus objetivos.

Em termos processuais, ambos sinalizam a inserção de Ponto de Vista na conversa, daí a ocorrência dessas formas em passagens que envolvem defesa de posição, sobretudo quando há divergência de posicionamento dos participantes, como é o caso do macroepisódio em que os falantes discutem critérios para uma língua ser considerada rica (4 em 6 ocorrências de entendeu e 1 de entende). Tal função relaciona-se à emissão de pistas que caracterizam o tipo de construção do discurso argumentativo a ser utilizado para expressão do conteúdo.

Em termos de conteúdo, o entendeu sinaliza a inserção de um Ponto de Vista/Base, com status de acabado, a partir do qual as posições serão construídas com a colaboração ou reconhecimento dos participantes, ao passo que o entende sinaliza o andamento da construção do Ponto de Vista, a tentativa de verbalização do conteúdo, cuja assertividade é baixa, por estar em processo de construção.

Referências bibliográficas

BERNARDO, Sandra Pereira. Foco e Ponto de vista na conversa informal: uma abordagem sócio-cognitiva. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2002. 221 f. Tese de Doutorado em Lingüística.

CHAFE, Wallace. Cognitive constraints on information flow. In: TOMLIN, R. Coherence and grounding in discourse. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins, 1987.

------. Linking intonation units in spoken English. In: HAIMAN, J. & THOMPSON, S. (eds.). Clause combining in grammar and dicourse. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins, 1988. p. 1-27.

CLARK, Herbert H. Using language. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.

CUTRER, Michelle. Time e tense in narrative and in everyday language. San Diego: University of California, 1994.

DINSMORE, John. Partitioned representations. Dordrecht: Kluwer Academic Press, 1991.

DOIZ-BIENZOBAS, Aintzane. The preterite and the imperfect in spanish: past situation vs. past viewpoint. San Diego: University of California, 1995.

FAUCONNIER, Gilles. Mental spaces. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.

------. Mappings in thought and language. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.

------ & SWEETSER, Eve. Sapces, worlds and grammar. Chicago: University of Chicago Press, 1996.

GORSKI, Edair Maria. Iconicidade e topicidade no discurso narrativo. In: VOTRE, S. (org.) Iconicidade: Funcionalismo em Lingüística. Rio de Janeiro: UFRJ/Faculdade de Letras, 1993. p. 16-40.

SCHIFFRIN, Deborah. Background: what is discourse. In: Discourse markers. Cambridge: Cambridge University Press, 1987. p. 1-30.

ENTENDEU E ENTENDE
- MARCAS DE PONTO DE VISTA
NA CONVERSA INFORMAL

Sandra Bernardo (UERJ e PUC-Rio)

Introdução

Analiso, aqui, as formas entendeu e entende, cuja oposição Pretérito-Presente pode estar relacionada ao domínio em que o enunciado é construído, revelando diferentes enquadres de Ponto de Vista, os quais evidenciam a relação entre os aspectos cognitivo e interacional do discurso.

Proponho que o entendeu é empregado quando o falante se refere a uma porção do discurso concluída, deslocando, assim, o Ponto de Vista; já o uso de entende não sinaliza mudança de domínio, não assinala ou desencadeia qualquer deslocamento ou reorientação discursiva, como se o falante ainda estivesse alinhando seu Ponto de Vista.

Em termos interacionais, ao utilizar o entendeu, o falante pode estar abrindo espaço para intervenções dos interlocutores, enquanto o entende pode sinalizar uma tentativa de manter a posse do turno, a fim de continuar buscando a maneira mais adequada de verbalizar um conteúdo.

Pressupostos teóricos e metodológicos

A análise da oposição Pretérito-Presente das formas entendeu e entende foi elaborada com base em Doiz-Bienzobas (1995), segundo o qual uso do Pretérito Perfeito envolve a presença de um Ponto de Vista coincidente com o ponto de referência do discurso, ou seja, situações codificadas em Pretérito Perfeito são conceptualizadas no domínio da realidade do falante; logo, ancoradas em um Ponto de Vista PRESENTE criado a partir de uma Base comum.

Com base no pressuposto de que o tempo é uma categoria dêitica, considerei a oposição temporal de entende e entendeu como marcas de sinalização da construção conjunta de um PV. Subjaz a essa postulação a concepção de que o discurso é “uma ação conjunta, conduzida por pessoas, atuando em coordenação umas com as outras” (Clark, 1996: 3), na qual a linguagem convencional desempenha um papel proeminente.

Os lugares onde as pessoas desempenham tarefas com a linguagem são denominados arenas de uso da linguagem. No centro das arenas, pessoas desempenham papéis de falante e ouvinte, sem agir independentemente, coordenando reciprocamente suas ações. Os participantes não apenas agem em relação uns com os outros, mas coordenam essas ações a partir de uma base comum: “grande massa de conhecimentos, crenças e suposições que interlocutores acreditam partilhar” (op. cit.: 12).

A “base comum é uma forma de autoconsciência, autoconhecimento, autocrença, auto-assunção em que há pelo menos uma outra pessoa envolvida com uma autoconsciência análoga” (op. cit.: 94), descrita a partir da representação mental de uma base partilhada para o acesso a uma parte dessa base comum.

Essas arenas podem ser compostas de camadas de ação, “como palcos teatrais construídos uns sobre os outros” (op. cit.: 16), que representam diferentes domínios de usos da linguagem criados sobre o cenário base - a realidade. Segundo Clark (1996: 17), “camadas mais altas representam outros domínios, freqüentemente hipotéticos, criados para o momento, envolvendo diferentes papéis que lhes dão suporte”.

Cada camada representa um domínio de ação caracterizado por seus participantes, seus papéis, lugar, tempo, traços relevantes da situação, possíveis ações, entre outros aspectos. Tais domínios são co-ocorrentes e recursivos, porém as ações conjuntas das duas camadas possuem enquadres dêiticos próprios.

Nesse sentido, pode-se perceber uma aproximação estreita entre a teoria dos espaços mentais (Fauconnier, 1994/1997; Cutrer, 1994; Dinsmore, 1991) e os postulados de Clark (op. cit.), já que naquela são apresentadas ferramentas teóricas para a ligação entre os domínios cognitivos que se realizariam através das camadas de ação, tornando possível uma abordagem sociocognitiva. Em última análise, as camadas de ação seriam representadas em espaços mentais.

Toda atividade conjunta requer uma coordenação entre seus participantes, implicando uma hierarquia de ações conjuntas, dadas as seqüências de pequenas ações necessárias à sua execução. Uma condição básica para tal realização é a crença, partilhada pelos participantes engajados na mesma atividade, acerca de seus limites e as partes de que se compõem, pois toda atividade conjunta apresenta um início, um desenvolvimento e uma saída. Logo, o que

torna uma ação conjunta é, em última análise, a coordenação de ações individuais realizadas por duas ou mais pessoas. Há coordenação tanto de conteúdo, o que os participantes pretendem realizar, como de processos, os sistemas físicos e mentais que eles selecionam para produzir tais intenções (Clark, 1996: 59).

Ao coordenar ações em conjunto, as pessoas estabelecem uma base partilhada que pode ser de dois tipos: base comum pública e base comum pessoal. A primeira envolve categorizações sobre aspectos comunitários, tais como: tudo que diz respeito à natureza humana; léxico comum (jargões); fatos históricos, normas, procedimentos (scripts). A segunda está relacionada a experiências pessoais: diário pessoal, eventos autobiográficos e léxico pessoal.

O cerne dos atos comunicativos é o significado, obtido através de sinais naturais (natural signs) ou indícios (symptoms), quando se trata do uso da linguagem. Assim, um ato comunicativo é conceituado como o ato conjunto sinalizado por uma pessoa, cujo significado é reconhecido por outra pessoa: “sinalização e reconhecimento são atos participativos em ações comunicativas” (op. cit.: 130), constituem duas partes naturais em que se dividem os atos comunicativos.

Se concebido de forma autônoma, “um sinal é um ato através do qual um falante significa algo. Visto como parte de atividades conjuntas é um ato pelo qual os participantes coordenam o próximo passo na atividade em andamento” (op. cit.: 132). Clark (op. cit.) postula três métodos de sinalização:

(i) Descrição ― ativação da mesma regra para cada símbolo usado por falante e ouvinte;

(ii) Indicação ― localização de entidades no contexto da atividade;

(iii) Demonstração ― representação mental da maneira como entidades se apresentam, em termos de suas aparências.

Conversações são intencionais (purposive), porém não-planejadas. Os indivíduos alcançam, na maioria das vezes, o que pretendem significar nos projetos conjuntos, sejam amplos ou menores, com os quais estão comprometidos, quando estabelecem propósitos conjuntos. Com intuito de completar tais intentos, é preciso trabalhar em nível de projetos mínimos através dos quais negociam propósitos mais amplos. Conversas só parecem planejadas e objetivamente orientadas retrospectivamente; na verdade, são criadas oportunisticamente, pedaço por pedaço, à medida que os participantes negociam propósitos conjuntos e tentam atingi-los ― visão oportunística da conversação (Clark, 1996: 319).

Com base nessa visão, a estrutura hierárquica da conversação é uma propriedade emergente oriunda dos princípios que governam qualquer atividade conjunta bem-sucedida. Durante as interações, os falantes emitem pistas das etapas das ações em curso, sinalizando, indicando ou demonstrando seus propósitos. Trabalham juntos para completar os níveis de execução e atenção, apresentação e identificação, sinalização e construção, propósito e realização. Uma vez que tais princípios são aplicados, pares adjacentes, partes de conversas ou conversas inteiras simplesmente surgem.

A conversa analisada foi gravada durante um jantar, em 1988, com participação, nos trechos aqui analisados, de três pessoas: Wilton (27 anos; carioca), Isalmir (30 anos; carioca) e Célia (23 anos; carioca), responsável pela gravação.

Considerada eminentemente argumentativa, a conversa foi segmentada em três macroepisódios, que, por sua vez, foram divididos em episódios e eventos, a partir dos (sub)tópicos abordados. Cabe ressaltar que se trata da segmentação do texto conversacional, ou seja, o produto da transcrição da conversa, visto retrospectivamente, como um recurso analítico, pois os tópicos de uma conversação são negociados localmente entre seus participantes.

Em termos argumentativos, o macroepisódio inicial Família comilona apresenta uma feição demonstrativa, já que os participantes expressam opiniões sobre os familiares comilões de C e I e apresentam fatos como comprovação das posições. A natureza factual desse tópico central não acarreta disputas de posicionamentos entre os interlocutores, o que é percebido nos outros dois macroepisódios, em cujos fragmentos aparecem entendeu e entende.

Em decorrência dessa observação, considerei a presença de tais formas relacionada à construção de um discurso argumentativo com disputa de posições e/ou formulação de evidências sobre tópicos mais complexos.

Entendeu e entende
sinalizadores de Ponto de Vista

Inicio a análise das formas em estudo com as duas únicas ocorrências de entendeu no terceiro macroepisódio da conversa, em que os falantes tratam dos diferentes usos da língua.

(a) I = 430 então é o seguinte... u::: é:: você... você observa o seguinte...

431 que determinadas- é...é tipos de: comunicação...

432 quer dizer... eu acho que o português é muito usado/

433 quer dizer... existe um: um: teor de dominação sobre

a língua...

434 a língua ela participa para que haja uma classe

dominante...

435 ou seja... eu acho que a classe dominante tem uma

linguagem... entendeu//

[W= 436 é verdade...]

(b) W= 520 é nesse negócio de jogar bacalhau...

521 negócio de jogar abacaxi é mais... (importante isso)

[I = 522 eu pô... oh

Célia... você que senta nos bancos escolares...

523 você pega uma professora que entra na Letras...

524 eu acredito que elas devem... elas devem ser até muito

conservadoras em relação à linguagem... entendeu//

eu acho...

C= 525 em que sentido// conservadora...

I = 526 assim... conservadoras não permitindo ou não

estudando ou ou eliminando o pensamento... de

estudar essas palavras tabu...

527 quer dizer... é a linguagem o túmulo do homem... né//

W= 528 justamente... aquelas... palavras...chaves...

[I = 529 é...é...é a linguagem o túmulo do

homem...

W= que tinha... que tinha (inint.)

Na unidade de idéia (doravante UI) 435 do excerto (a), percebe-se que o falante I sinaliza, através do entendeu, uma preocupação em ser compreendido, após sua “dificuldade” de organizar o discurso ao indicar um novo projeto a ser construído conjuntamente. A superposição da fala de W, é verdade, em concordância com a de I, demonstra a ação conjunta de W na construção do discurso de I, funcionando como estímulo às considerações do mesmo.

Devido ao Ponto de Vista PRESENTE fornecido pelo Pretérito Perfeito; logo, um PV ancorado no tempo em que o discurso está sendo produzido, o falante I refere-se ao seu discurso com o status de acabado, não obstante a dúvida acerca do reconhecimento das suas intenções pelos outros participantes. Dúvida revelada pelo significado do verbo entender.

A função de pontuante de tal forma pode ser reiterada pelo seu papel de sinalizador de mudança de Foco, que abre a possibilidade de os interlocutores complementarem colaborativamente o projeto proposto por I num domínio de conjecturas. Em outras palavras, o entendeu sinaliza a passagem de um espaço mental ou domínio da conjectura para o domínio da conversa, revelando que o Ponto de Vista (PV) foi construído num enquadre dêitico próprio em relação ao do domínio da conversa, não obstante estivesse ancorado nesse.

Postulo um deslocamento de Foco, porque, ao usar o entendeu, o falante sinaliza o fechamento do espaço mental em que o conteúdo estava sendo contextualizado, desviando a sua atenção e a dos demais participantes. O deslocamento de PV deve-se ao fato desse construto de contextualização constituir um centro da conceptualização ou conscientização de um self a quem um enunciado é atribuído. Daí a postulação de que o entendeu guia deslocamentos de Foco e PV

Em (b), a UI 522, no domínio da realidade, ou seja, do aqui e agora da conversa, funciona como uma contextualização, abrindo um espaço-Foco/PV no qual o domínio da conjectura (você pega uma professora que entra na Letras... eu acredito que elas devem... elas devem ser até muito conservadoras em relação à linguagem...) será ancorado. O entendeu, usado ao término da hipótese de I, marca a volta ao domínio da conversa em que o falante questiona a interlocutora a quem se dirigiu acerca de sua posição.

Em ambos os excertos (a) e (b), o entendeu é empregado para sinalizar a indicação de um projeto que versa sobre um novo (sub)tópico, o qual deve se construído sobre o PV apresentado. Todavia essa forma também figura em passagens de reorientação discursiva, em razão de o falante alinhar seu discurso semântica e pragmaticamente na interação com as falas dos seus interlocutores. Os excertos (c) e (d), abaixo, incluem-se nesse caso:

(c)I = 311 no Brasil... no Brasil... você tem um dicionário que

tem cin:qüenta mil verbete...

313 aí... há cem... um milhão de verbete...

314 não... essa é uma língua muito rica... por quê?

W= 315 eu considero rica porque...

[I = 316 acho um pouco prático]

ela- ela ela é:: fica mais fácil de explicar

determinados termos...

317 que outras línguas não conseguem... entendeu//

[C= 318 esse

termo... é errado usar se é mais rica ou menos rica...

319 não existe isso...

I = 320 é eu acho também

C= 321 língua é língua... seja ela-

(d) C= 388 não é a quantidade de: de signo que você adquire...

aprende...

389 que seja o alfabeto X de uma pessoa intelectual/

390 são tipos de linguagem que são expressados por

certos tipos de símbolo... entendeu//

[I = 391 ah... já entendi o que

tu quer dizê]

Em (c), os falantes I e W estão apresentando posições contrárias a respeito de a língua portuguesa ser considerada rica em razão da quantidade de verbetes de seu dicionário. A falante de C, estudante de Letras e responsável pela gravação, tenta acabar com o equívoco de seus dois interlocutores ao final do evento. Embora as falas não representem um acesso a uma camada mais alta para construção de uma hipótese sobre um assunto novo na interação, ao ser utilizado por W para marcar a explicação de sua posição, o entendeu denotaria o deslocamento a outra camada de ação para reorientação discursiva com ajuste de Foco e PV.

O fragmento (d) está inserido num trecho em que os falantes C e I disputam posições sobre algumas características da língua japonesa. A falante C emprega o entendeu com a mesma função com que W o utilizou em (c): sinalizar sua indicação como acabada e/ou se certificar de que sua posição foi compreendida pelo interlocutor, buscando uma reorientação do discurso com a cooperação de I.

Em última análise, o entendeu desempenha o papel de sinalizador de uma perspectiva construída retrospectivamente, inicialmente sem a participação ativa do interlocutor, o que remete à sua função de pontuante com deslocamento de domínio na construção da perspectiva do discurso. O entende, por outro lado, não sinaliza mudança de domínio, como pode ser observado desempenhado no excerto (e), abaixo, em que mostro uma das duas ocorrências dessa forma na conversa analisada (30 min.):

(e) W= 643 aí você vê...

I = [é muito importante...]

a linguagem também... ela é influenciada...

644 ela é influenciada também...

I = 645 [a linguagem é muito importante...]

W= pelo um interesse de alguns... entende//

I = 646 [muito importante]

W= 647 daquele que está comunicando...

648 ela influ- ela influencia conforme o interesse

daquele que tá comunicando...

I = 649 [muito importante... muito importante...

Nessa passagem, o falante W está concluindo um evento em que foram ilustradas posturas distintas, em termos ideológicos, de comunicadores como Haroldo de Andrade e repórteres como Cid Moreira. Uma hipótese para a codificação do verbo entender no presente é a construção do discurso estar permeada pelas falas de I e o fato de o Presente ser especificado como um tempo verbal que não é anterior ao PV/Base (Cutrer 1994), conferindo gramaticalidade, por exemplo, aos seus usos metafóricos.

Portanto, o emprego de entende na conversa em estudo não envolve mudança de domínio. A perspectivização envolve os participantes da conversa, no sentido de que o PV é construído com a participação ativa dos interlocutores, que estariam representados no espaço mental de conceptualização desse PV. Em (f), abaixo, podem ser observadas as diferenças entre entendeu e entende:

(f) C= 345 eu- eu não tô questionando a:...a:...os verbetes... a

quantidade de palavras...

346 tô dizendo a questão da riqueza... entendeu//

[W= (inint.)]

I= 347 riqueza da quantidade...né//

W= 348 (ih comigo nesse caso não é não)

C= 349 eu tô dizendo riqueza nu nu- na questão do valor da

língua...

350 não existe... a- como não existe cultura superior a

nenhuma outra...

351 a língua também não é superior a nenhuma outra...

entendeu//

[W= 352 num é... mas não é a questã- que eu falei

também naquela hora de riqueza foi um

termo (assim) errado que eu coloquei... (inint.)

353 não foi em desvalorização sobre as outras...

354 mas sim da maneira que é flexível em relação a:: a:

ao sen- ao que você quer expressar... entende//

I= 355 quer dizer... segundo Wilton...

[[

W= 356 isso é que eu quero dizer...

I= 357 ele acha o seguinte...

358 quanto mais u...é::...é:: palavras para ele se

expressar...

359 quer dizer... é...é uma língua mais... que facilita mais

u:: a... comunicação...

[W= 360 é justamente é... é a comunicação\parNo excerto (f), a falante C tenta explicar o porquê de não se aplicar a designação rica a uma língua, projeto que não obteve a adesão dos interlocutores em passagem anterior, unidades 318, 319 e 321 (fragmento [c], acima). Nas unidades 346 e 351, o entendeu é usado pela falante para sinalizar o fechamento de etapas do projeto em construção conjunta com os outros participantes, daí o deslocamento de Foco e PV.

Já o uso de entende pelo falante W, na UI 354, não sinaliza mudança de domínio, não assinala / desencadeia qualquer deslocamento ou reorientação discursiva, suas falas encontram-se no domínio da conversa, ou seja, o PV está sendo construído no aqui e agora da conversa. É como se o falante ainda estivesse alinhando / negociando seu PV no projeto em andamento.

Em termos interacionais, ao utilizar o entendeu, o falante pode estar abrindo espaço para testar a indicação do projeto; conseqüentemente, para intervenções dos interlocutores, enquanto o entende pode sinalizar uma tentativa de manter a posse do turno, a fim de continuar buscando a forma mais adequada de verbalizar um conteúdo.

Embora questões prosódicas não constituam objeto de estudo da pesquisa, foi observada uma diferença em termos entonacionais entre as formas entendeu e entende, esta pronunciada com um ligeiro declínio de altura, precedida de uma pausa menor; aquela com uma elevação de altura, precedida de uma pausa maior, portanto com modulação interrogativa mais marcada. Além disso, o acento da primeira encontra-se na última sílaba, ao passo que a segunda é paroxítona, diferenças que acentuam o fato de o entende não ser interpretado como sinalizador de lugar relevante para troca de turno.

Palavras finais
entendeu e entende na construção discursiva

O estudo de entendeu e entende revela que, ao tomar parte em atividades conjuntas como a conversa, os falantes realizam atos comunicativos, a fim de serem compreendidos. Esses atos são organizados a partir de um modelo mental de representação discursiva constituído de estratégias capazes de englobar a coordenação do conteúdo e dos processos necessários para atingir seus objetivos.

Em termos processuais, ambos sinalizam a inserção de Ponto de Vista na conversa, daí a ocorrência dessas formas em passagens que envolvem defesa de posição, sobretudo quando há divergência de posicionamento dos participantes, como é o caso do macroepisódio em que os falantes discutem critérios para uma língua ser considerada rica (4 em 6 ocorrências de entendeu e 1 de entende). Tal função relaciona-se à emissão de pistas que caracterizam o tipo de construção do discurso argumentativo a ser utilizado para expressão do conteúdo.

Em termos de conteúdo, o entendeu sinaliza a inserção de um Ponto de Vista/Base, com status de acabado, a partir do qual as posições serão construídas com a colaboração ou reconhecimento dos participantes, ao passo que o entende sinaliza o andamento da construção do Ponto de Vista, a tentativa de verbalização do conteúdo, cuja assertividade é baixa, por estar em processo de construção.

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