TEXTO PUBLICITÁRIO
A NATUREZA SOCIOCONSTRUCIONISTA DO DISCURSO

Jaqueline Justo Garcia (UENF)
Luciene Pinheiro de Souza (UENF)
Rita de Cássia Mota Ribeiro (UENF)

Introdução

Todo texto encena uma interlocução: nele fala um locutor que pode fazer-se menos ou mais presente no texto. As diferentes formas de representação estão a serviço da expressão de pontos de vista da enunciação. Para uma leitura crítica é importante perceber quem está falando e com que intenção. Há várias vozes, aquelas que o locutor endossa e outras não. O importante é acompanhar essas vozes e descobrir qual é a voz que comanda o texto, como veremos a seguir na seqüência dos textos publicitários, publicados em quatro edições diferentes na revista Veja (em anexo). Esse sujeito como cruzamento de vozes, defendido por Bakhtin, se constitui na interação com o outro.

Como Brandão diz (2001), retomando as colocações de Bakhtin (1979) “...é um sujeito social, histórica e ideologicamente situado. É o outro que dá a medida do que sou. A identidade se constrói nessa relação com a alteridade.” O evento comunicativo do texto entrevê ações lingüísticas, cognitivas e sociais. O fato de todo enunciado ter um valor modal, de ser modalizado pelo enunciador, mostra que a palavra só pode representar o mundo se o enunciador, direta ou indiretamente, marcar sua presença através do que diz (Mainguenau: 2001).

O texto publicitário é construído em função do ouvinte ou do leitor virtual. Para que a propaganda possa melhor persuadir o público ela é, geralmente, formada por um texto cuidadosamente selecionado em seus componentes lingüísticos e, na maioria das vezes, em seus componentes visuais. Palavra e imagem são fundamentais para a prática persuasiva desse tipo de texto em que, nele, até o verbal se faz imagem. Os atos discursivos procuram não só informar, como também modificar comportamentos. O sujeito comunicante constrói assim sua mensagem através de “estratégias” discursivas, o que equivale dizer, baseando-se em Charaudeau (1983), que comunicar é usar estratégias e interpretar é saber reconhecê-las. Dessa forma, além de uma competência lingüística, o sujeito interpretante deve possuir uma competência semântico-discursiva que lhe permite depreender o sentido que emana de fatores lingüísticos e extra lingüísticos.

Na verdade, a linguagem é múltipla e opaca - sempre se diz mais, ou menos, do que se pretende -, logo, não se pode esquecer o implícito, a inferência e a pressuposição presentes em qualquer texto. Outra ilusão diz respeito ao fato de a linguagem ser uma tradução linear do pensamento. Sabe-se que todo ato comunicativo é negociado, resulta de uma construção de sentido, no instante da interação (Carneiro: 1996).

O texto publicitário é um dos textos mais acessíveis à população. Segundo Wernick (1991), há uma estreita ligação entre a propaganda, valores sociais e o papel ideológico da mesma. De forma semelhante, Cook (1992) enfatiza que a publicidade é um tipo de discurso proeminente nas sociedades contemporâneas e pode revelar muito sobre a nossa sociedade e nossa psicologia. Dyer (1982, p. 5-6), explica que a propaganda constitui um tipo de discurso exortativo/ persuasivo, pois “tenta manipular as pessoas a comprarem um estilo de vida além de produtos”. Pela perspectiva da ACD, Fairclough (1995, p. 138) afirma que a publicidade está colonizando diferentes instituições e segmentos diversos e aponta para o hibridismo que envolve informação e publicidade, uma questão de ao mesmo tempo informar e vender produtos.

Informações sobre o texto analisado

Os textos analisados enquadram-se no gênero publicitário com o objetivo de divulgar o produto SONRISAL (antiácido analgésico), nacionalmente reconhecido pela eficácia e seriedade. O portador que veicula o produto é um periódico semanal (revista Veja) que oportuniza o leitor, público especificado, a ler em um espaço e tempo indeterminados. Os quatro textos foram apresentados entre 13 de julho e 27 de agosto de 2003, cada um com sua peculiaridade, estabelecendo um diálogo intertextual entre os mesmos; em que todos remetem para o mesmo alvo: SONRISAL. O BEM-ESTAR DO BRASIL.

O enunciador norteador do texto é o SONRISAL, voz que aparece como escopo principal nos textos. O locutor não se apresenta de forma explícita , causando a impressão de como se os textos falassem por si mesmos. O apagamento do sujeito eu (locutor) para um ele (Brasil) parece transparecer uma falsa impressão de nulidade do locutor, na verdade os modalizadores explícitos (como, por exemplo, o emprego do diminutivo, do aumentativo, do advérbio...) carregam em si um forte indício da presença do emissor. Podemos perceber um eu (locutor - implícito) + ele (Brasil) = nós (brasileiros), enunciador e enunciatário, evocando assim uma interação social com identidades culturais.

Nos exemplos mencionados (em anexo), observamos uma relação intencional e intertextual entre o discurso publicitário e o enfoque do periódico (portador que está sempre ligando o consumidor com o mundo globalizado, estabelecendo um diálogo constante entre o eu - leitor e o outro-mundo).

Cena de enunciação
e a articulação das figuras enunciativas

Nas imagens, a “intertextualidade” e os enunciadores atuam como nos textos verbais para definirem posições enunciativas. Daí a exploração da imagem que sugere a bandeira nacional com elementos não-verbais como a banana, limão, campo de futebol e mata; bem como elementos verbais que se fazem imagem como as palavras sobrepostas, compondo o verde da bandeira que possui um sentido, por tradição popular, de esperança de um Brasil melhor, sentimento que não se acaba e SONRISAL contribui para que todos, realmente, possam se sentir melhor. Esse tipo de estrutura textual, a coerência dos signos verbais e a dimensão icônica reafirmam que um texto publicitário é fundamentalmente imagem e palavra.

O sujeito constrói, com isso, uma representação social articulada por várias vozes que dinamizam ideologias típicas da cultura brasileira. Um enunciador que defende a idéia agradável de se morar num país tropical com frutas (banana, limão) que estão presentes na casa dos brasileiros, em geral, bem como num país reconhecido, mundialmente, pelo futebol (campo de futebol) e pelo pulmão do mundo (Mata Atlântica) demonstrando, na verdade, como o mundo nos vê.

Uma outra voz se articula por detrás desse enunciador, a voz que sustenta a diversidade cultural do Brasil e que se identifica pelo jeito peculiar de ser: alegre, otimista, criativo, amigo, caloroso, festivo, ousado, intenso, esperto... o “jeitinho brasileiro”.

Podemos, ainda, depreender a voz que sustenta o jogo de ilusão da imagem espacial em que, aparentemente, o Brasil ocupa um campo maior; no entanto, quem está numa posição de superioridade, numa imagem sobreposta ao campo retangular, ocupando o centro da face que fica virada para os olhos do provável consumidor, aproximando-se mais do co-enunciador, é o produto SONRISAL- enunciador que contradiz essa imagem otimista de bem-estar, no qual em meio a todas essas riquezas, sugere uma indigestão pelo abuso e exagero, típico do brasileiro que, em tudo, tem que pôr “uma pitadinha a mais” . Essa superioridade implícita é sugerida pela cor amarela que possui o sentido de ouro, prosperidade, representada pela própria embalagem do produto que sugere guardar algo valioso, aquilo que proporciona o bem-estar do brasileiro.

Sobre a figura circular formada pelo remédio, há uma representação do fabricante (uma multinacional que possui um número considerável de marcas diferentes de remédios e que sobreviveu, inclusive, às pressões da potência alemã que pretendeu impor o produto dela: ALKA SELTZER), identificado pelas cores vermelha, azul e branca, típicas da bandeira americana, propondo o reconhecimento mundial desse antiácido analgésico. Assim sendo, essa forma circular, sugere o mundo globalizado com mudanças sociais, políticas e econômicas, transformando o lema “Ordem e Progresso” da bandeira nacional para “SONRISAL- bicarbonato de sódio, ácido acetilsalicílico + associação - Antiácido Analgésico”. O lema para que o país alcance “Ordem e Progresso” é estar inserido no mundo globalizado. Para tal, o país subdesenvolvido, como o nosso, precisa aceitar o governo das potências mundiais e, nada melhor, para proporcionar a sensação de bem-estar num momento de “indigestão social”, que o Sonrisal - nossa potência globalizante, nossa salvação. Este tesouro, guardado numa embalagem brilhante como o ouro, sugere nossa esperança de, mesmo em meio a um mundo indigesto, sermos capazes de nos sentir de bem com a vida. Pode-se, ainda, entrever a superioridade através do contexto em que o enunciador se sobrepôs, contextos que fazem do Brasil um lugar reconhecido pelas frutas tropicais, pelo futebol, pela Mata Atlântica e por nomes consagrados de nossa sociedade.

Dessa forma, uma identidade social é reconhecida, nesse jogo de polifonia; tanto o enunciador quanto o co-enunciador são identificados como aqueles que gostam de se promover, de se destacar. Daí a necessidade de destacar pontos estratégicos do país, bem como nome de celebridades para que a partir dessa representação social haja uma interação, por excelência, com o leitor virtual.

Com relação à imagem do copo, nos dois primeiros exemplos, há uma substituição do elemento verbal para o não-verbal, ilustrando, de forma prática, como se deve tomar o remédio, entrevendo a previsão de um possível receptor desatento à leitura. O reflexo branco sobre o copo, refletindo a efervescência do remédio, sugere a forma da tarja branca que carrega o lema da bandeira nacional “Ordem e Progresso”.

De acordo com a crença popular, o branco traduz paz e é exatamente isso que o antiácido SONRISAL proporciona ao seu consumidor. Essa forma efervescente lembra algo refrescante; a sensação de alívio é transparente nessa exploração visual.

Já nos dois últimos exemplos, há inserção dos elementos verbais “Tome dois e pronto!” que reforçam a imagem, efetivando a eficácia através do enunciado “...e pronto!”, acabando o problema. SONRISAL está exigindo/ sugerindo que o leitor virtual tome a iniciativa que esse enunciador deseja; porém, ao abrir, no final da página, uma tarja A PERSISTIREM OS SINTOMAS, O MÉDICO DEVERÁ SER CONSULTADO., surge uma outra voz: o remédio pode não ser tão eficaz assim como deseja transparecer. No entanto, por outro lado, ao emitir esse enunciado, o enunciador combate essa voz, demonstrando não a fraqueza de seu produto, mas a seriedade, a responsabilidade e o compromisso com o consumidor.

O discurso se transfigura de forma seqüencial, cuja organização textual está bem delimitada pelas cores. Em BRASIL. O PAÍS DO BEM GELADO. , BRASIL. O PAÍS DO CAFÉ DAS 6., BRASIL. O PAÍS DO FUTEBOL. e BRASIL. O PAÍS DA PITANGA., temos a marca da introdução delimitada pela cor amarela ( nosso tesouro é a nossa pátria com suas marcas peculiares), enquanto o desenvolvimento está demarcado pela cor verde (a esperança é característica do brasileiro, momento propício para o discurso das representações sociais e identidades culturais) e a conclusão, pela cor branca (transparecendo o sentimento de alívio, paz e bem-estar), fechando nos quatro textos com o mesmo enunciado SONRISAL. O BEM-ESTAR DO BRASIL.

As marcas lingüísticas
e os efeitos sensoriais

No interior de todo o texto, vimos que um enunciador se define, definindo igualmente um co-enunciador. Essa definição se faz pelo emprego seletivo de determinadas operações de enunciação. Ocorre na fala do locutor uma prática discursiva baseada em modalidades representativas de acordo com o público alvo que o enunciador deseja alcançar. Utiliza termos próprios do ato de fala do povo brasileiro, bem como deixa transparecer seu ponto de vista sobre o ato de enunciação.

Ao empregar o diminutivo (CAIPIRINHA, LEVINHO, FRESQUINHO, CERVEJINHA, CHURRASQUINHO); o aumentativo (SORVETÃO, BIFÃO); a formação composta (JULIETA ROMEU-E-, NÃO-IMPORTA-DE-QUE) dentre outros, o enunciador interage com o interlocutor abrindo condições de este se sentir familiarizado, integrado à situação comunicativa oferecida pelo enunciador, artimanha que induz o leitor a adquirir o produto; permitindo-lhe uma sensação de bem-estar, haja vista o contexto familiar.

O emprego do modificador “bem” (BEM GELADO, BEM APIMENTADO, BEM MEXIDO, BEM ACOMPANHADO) intensificando o nome, também, intervém uma força argumentativa, afinal, como já foi mencionado, o brasileiro tem costume de sempre pôr “uma pitadinha a mais” em tudo que faz. Por outro lado, esse operador “bem” é, normalmente, empregado em uma situação de uso bastante coloquial (Eu bem vi aquela professora; Bem morreu o pai da sua colega; Você estava bem aqui na revista.), novamente, interagindo o enunciador e o co-enunciador de forma bastante positiva e familiar.

O pronome demonstrativo remete o co-enunciador para o ato de enunciação do texto (...DAQUELA ENGASGADA BÁSICA NA HORA DO PÊNALTI). As formas enunciativas. E SEMPRE BEM ACOMPANHADO; ... QUE AMANHÃ TEM BATENTE”; ...PODIA E SEJA, CONTRA OU A FAVOR, DAQUELA ENGASGADA BÁSICA NA HORA DO PÊNALTI; ...E, É CLARO, QUE ELA NÃO FALTAR, DA LIMA atuam diretamente sobre o co-enunciador, elas apresentam um estado de coisas como já estabelecido e, ao mesmo tempo, fazem um juízo de valor sobre tal estado de coisas. Pode-se entrever uma atividade enunciativa reflexiva: elas falam do mundo apontando, de algum modo, para sua própria atividade de fala. Significam, também, ao mesmo tempo, designar o locutor e mostrar que esse locutor não é precisamente aquele que profere o enunciado, mas também o leitor. É a voz do enunciador instituindo um ponto de vista da recepção ou enunciatário do texto. Aqui, fica evidente a existência de dois pólos básicos, que se intercambiam - de um lado, enunciador/ enunciatário e, de outro, enunciatário/ enununciador.

O nome próprio BRASIL, no início de cada texto, é identificado em relação ao ambiente espaço-temporal de cada enunciação particular em que ele se encontra, atribui-se numa categoria de terceira pessoa, pois é dele que se fala, ocorrendo aqui um apagamento do locutor, transferindo seu discurso para o BRASIL, esse recurso visa , mais uma vez, fortemente, a seu co-enunciador. O que ocorre é que o uso desse nome próprio implica vestígios de um enunciador e de um co-enunciador, remetendo a um nós, todos os brasileiros.

Além disso, a presença constante do articulador “de”, numa relação de posse (... O PAÍS DO BEM GELADO; ... DO CAFÉ DAS 6; ... DO FUTEBOL; ...DA PITANGA.), ratifica a valorização do país e o nacionalismo por parte do anunciante, provocando assim uma leitura de que o Brasil é também o país do SONRISAL.

Uma das habilidades de persuasão que pode ser observada é o que diz respeito ao apelo sensorial: a exploração visual através da própria ilustração, como a bandeira sugerida; a sonoridade, através do copo com os dois comprimidos efervescendo; o paladar e o olfato provocados pelas guloseimas enunciadas e o tato sugerido pela aproximação do produto com o consumidor.

Conclusão

As premissas para a comunicação estão se alterando, rapidamente, nos últimos tempos. Devido à grande competitividade, os anúncios precisaram parecer mais com seu consumidor, o poder mudou de mão, não é mais a empresa quem decide. A imagem do consumidor é cada vez mais matéria-prima. A diferença é feita quando se fala a língua e usa o contexto do consumidor, leitor virtual. Fica clara a concepção de linguagem vinculada à dinâmica da vida social e que os sentidos das palavras se vinculam às ações humanas. Logo, toda relação que o indivíduo/ sujeito terá com a linguagem passará forçosamente pelo discurso

O leitor virtual se posiciona diante do texto publicitário de acordo com seus interesses pessoais, com sua visão de mundo, provavelmente, estabelecendo os vínculos lógico-semânticos que faltam entre os diferentes blocos de texto verbal e entre estes e as ilustrações. Esse leitor faz as leituras a partir de premissas preconstruídas pelo senso comum trazidas por ele, comumente, pouco consciente dessas operações, que são feitas na vida cotidiana mecanicamente e por hábitos arraigados.

Levando isso em consideração, o texto publicitário se tornou excelente objeto de análise do discurso.

REFERÊNCIAS

BACCEGA, Maria Aparecida. Palavra e discurso: história e literatura. São Paulo: Ártica, 2000.

BAKHTIN, Mikhail. The dialogic imagination: four essays by M.M. Bakhtin. Editado por M. Hlquist, traduzido por C. Emerson e M. Holquist, Austin, University of Texas Press, 1981.

BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discurso. 8. ed. Campinas: UNICAMP, 2001.

CARNEIRO, Agostinho Dias (org.). O discurso da mídia. Rio de Janeiro: Oficina do autor, 1996.

FIORIN, José Luiz. Linguagem e ideologia. 6. ed. São Paulo: Ática, 1998.

KOCH, Ingedore G. Villaça. Desvendendo os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002.

MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2001.

MEURER, José Luís e MOTTA-ROTH, Désirée (orgs). Gêneros textuais e práticas discursivas: subsídios para o ensino da linguagem. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2002.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 4 ed. Campinas, São Paulo: Pontes, 2002.

POSSENTI, Sírio. Discurso, estilo e subjetividade. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

PINTO, Milton José. Comunicação e discurso: introdução à analise de discursos. São Paulo: Hacker editores. 1999.

VEJA. São Paulo: Abril, edição 1811, ano 36, n.º 28, p. 6 - 7, 16 de julho de 2003.

------. São Paulo: Abril, edição 1812, ano 36, n.º 29, p. 26 - 27, 23 de julho de 2003.

------. São Paulo: Abril, edição 1815, ano 36, n.º 32, p. 23, 13 de agosto de 2003.

------. São Paulo: Abril, edição 1817, ano 36, n.º 34, p. 21, 27 de agosto de 2003.

Texto publicitário
a natureza socioconstrucionista do discurso

Jaqueline Justo Garcia (UENF)
Luciene Pinheiro de Souza (UENF)
Rita de Cássia Mota Ribeiro (UENF)

Introdução

Todo texto encena uma interlocução: nele fala um locutor que pode fazer-se menos ou mais presente no texto. As diferentes formas de representação estão a serviço da expressão de pontos de vista da enunciação. Para uma leitura crítica é importante perceber quem está falando e com que intenção. Há várias vozes, aquelas que o locutor endossa e outras não. O importante é acompanhar essas vozes e descobrir qual é a voz que comanda o texto, como veremos a seguir na seqüência dos textos publicitários, publicados em quatro edições diferentes na revista Veja (em anexo). Esse sujeito como cruzamento de vozes, defendido por Bakhtin, se constitui na interação com o outro.

Como Brandão diz (2001), retomando as colocações de Bakhtin (1979) “...é um sujeito social, histórica e ideologicamente situado. É o outro que dá a medida do que sou. A identidade se constrói nessa relação com a alteridade.” O evento comunicativo do texto entrevê ações lingüísticas, cognitivas e sociais. O fato de todo enunciado ter um valor modal, de ser modalizado pelo enunciador, mostra que a palavra só pode representar o mundo se o enunciador, direta ou indiretamente, marcar sua presença através do que diz (Mainguenau: 2001).

O texto publicitário é construído em função do ouvinte ou do leitor virtual. Para que a propaganda possa melhor persuadir o público ela é, geralmente, formada por um texto cuidadosamente selecionado em seus componentes lingüísticos e, na maioria das vezes, em seus componentes visuais. Palavra e imagem são fundamentais para a prática persuasiva desse tipo de texto em que, nele, até o verbal se faz imagem. Os atos discursivos procuram não só informar, como também modificar comportamentos. O sujeito comunicante constrói assim sua mensagem através de “estratégias” discursivas, o que equivale dizer, baseando-se em Charaudeau (1983), que comunicar é usar estratégias e interpretar é saber reconhecê-las. Dessa forma, além de uma competência lingüística, o sujeito interpretante deve possuir uma competência semântico-discursiva que lhe permite depreender o sentido que emana de fatores lingüísticos e extra lingüísticos.

Na verdade, a linguagem é múltipla e opaca - sempre se diz mais, ou menos, do que se pretende -, logo, não se pode esquecer o implícito, a inferência e a pressuposição presentes em qualquer texto. Outra ilusão diz respeito ao fato de a linguagem ser uma tradução linear do pensamento. Sabe-se que todo ato comunicativo é negociado, resulta de uma construção de sentido, no instante da interação (Carneiro: 1996).

O texto publicitário é um dos textos mais acessíveis à população. Segundo Wernick (1991), há uma estreita ligação entre a propaganda, valores sociais e o papel ideológico da mesma. De forma semelhante, Cook (1992) enfatiza que a publicidade é um tipo de discurso proeminente nas sociedades contemporâneas e pode revelar muito sobre a nossa sociedade e nossa psicologia. Dyer (1982, p. 5-6), explica que a propaganda constitui um tipo de discurso exortativo/ persuasivo, pois “tenta manipular as pessoas a comprarem um estilo de vida além de produtos”. Pela perspectiva da ACD, Fairclough (1995, p. 138) afirma que a publicidade está colonizando diferentes instituições e segmentos diversos e aponta para o hibridismo que envolve informação e publicidade, uma questão de ao mesmo tempo informar e vender produtos.

Informações sobre o texto analisado

Os textos analisados enquadram-se no gênero publicitário com o objetivo de divulgar o produto SONRISAL (antiácido analgésico), nacionalmente reconhecido pela eficácia e seriedade. O portador que veicula o produto é um periódico semanal (revista Veja) que oportuniza o leitor, público especificado, a ler em um espaço e tempo indeterminados. Os quatro textos foram apresentados entre 13 de julho e 27 de agosto de 2003, cada um com sua peculiaridade, estabelecendo um diálogo intertextual entre os mesmos; em que todos remetem para o mesmo alvo: SONRISAL. O BEM-ESTAR DO BRASIL.

O enunciador norteador do texto é o SONRISAL, voz que aparece como escopo principal nos textos. O locutor não se apresenta de forma explícita , causando a impressão de como se os textos falassem por si mesmos. O apagamento do sujeito eu (locutor) para um ele (Brasil) parece transparecer uma falsa impressão de nulidade do locutor, na verdade os modalizadores explícitos (como, por exemplo, o emprego do diminutivo, do aumentativo, do advérbio...) carregam em si um forte indício da presença do emissor. Podemos perceber um eu (locutor - implícito) + ele (Brasil) = nós (brasileiros), enunciador e enunciatário, evocando assim uma interação social com identidades culturais.

Nos exemplos mencionados (em anexo), observamos uma relação intencional e intertextual entre o discurso publicitário e o enfoque do periódico (portador que está sempre ligando o consumidor com o mundo globalizado, estabelecendo um diálogo constante entre o eu - leitor e o outro-mundo).

Cena de enunciação
e a articulação das figuras enunciativas

Nas imagens, a “intertextualidade” e os enunciadores atuam como nos textos verbais para definirem posições enunciativas. Daí a exploração da imagem que sugere a bandeira nacional com elementos não-verbais como a banana, limão, campo de futebol e mata; bem como elementos verbais que se fazem imagem como as palavras sobrepostas, compondo o verde da bandeira que possui um sentido, por tradição popular, de esperança de um Brasil melhor, sentimento que não se acaba e SONRISAL contribui para que todos, realmente, possam se sentir melhor. Esse tipo de estrutura textual, a coerência dos signos verbais e a dimensão icônica reafirmam que um texto publicitário é fundamentalmente imagem e palavra.

O sujeito constrói, com isso, uma representação social articulada por várias vozes que dinamizam ideologias típicas da cultura brasileira. Um enunciador que defende a idéia agradável de se morar num país tropical com frutas (banana, limão) que estão presentes na casa dos brasileiros, em geral, bem como num país reconhecido, mundialmente, pelo futebol (campo de futebol) e pelo pulmão do mundo (Mata Atlântica) demonstrando, na verdade, como o mundo nos vê.

Uma outra voz se articula por detrás desse enunciador, a voz que sustenta a diversidade cultural do Brasil e que se identifica pelo jeito peculiar de ser: alegre, otimista, criativo, amigo, caloroso, festivo, ousado, intenso, esperto... o “jeitinho brasileiro”.

Podemos, ainda, depreender a voz que sustenta o jogo de ilusão da imagem espacial em que, aparentemente, o Brasil ocupa um campo maior; no entanto, quem está numa posição de superioridade, numa imagem sobreposta ao campo retangular, ocupando o centro da face que fica virada para os olhos do provável consumidor, aproximando-se mais do co-enunciador, é o produto SONRISAL- enunciador que contradiz essa imagem otimista de bem-estar, no qual em meio a todas essas riquezas, sugere uma indigestão pelo abuso e exagero, típico do brasileiro que, em tudo, tem que pôr “uma pitadinha a mais” . Essa superioridade implícita é sugerida pela cor amarela que possui o sentido de ouro, prosperidade, representada pela própria embalagem do produto que sugere guardar algo valioso, aquilo que proporciona o bem-estar do brasileiro.

Sobre a figura circular formada pelo remédio, há uma representação do fabricante (uma multinacional que possui um número considerável de marcas diferentes de remédios e que sobreviveu, inclusive, às pressões da potência alemã que pretendeu impor o produto dela: ALKA SELTZER), identificado pelas cores vermelha, azul e branca, típicas da bandeira americana, propondo o reconhecimento mundial desse antiácido analgésico. Assim sendo, essa forma circular, sugere o mundo globalizado com mudanças sociais, políticas e econômicas, transformando o lema “Ordem e Progresso” da bandeira nacional para “SONRISAL- bicarbonato de sódio, ácido acetilsalicílico + associação - Antiácido Analgésico”. O lema para que o país alcance “Ordem e Progresso” é estar inserido no mundo globalizado. Para tal, o país subdesenvolvido, como o nosso, precisa aceitar o governo das potências mundiais e, nada melhor, para proporcionar a sensação de bem-estar num momento de “indigestão social”, que o Sonrisal - nossa potência globalizante, nossa salvação. Este tesouro, guardado numa embalagem brilhante como o ouro, sugere nossa esperança de, mesmo em meio a um mundo indigesto, sermos capazes de nos sentir de bem com a vida. Pode-se, ainda, entrever a superioridade através do contexto em que o enunciador se sobrepôs, contextos que fazem do Brasil um lugar reconhecido pelas frutas tropicais, pelo futebol, pela Mata Atlântica e por nomes consagrados de nossa sociedade.

Dessa forma, uma identidade social é reconhecida, nesse jogo de polifonia; tanto o enunciador quanto o co-enunciador são identificados como aqueles que gostam de se promover, de se destacar. Daí a necessidade de destacar pontos estratégicos do país, bem como nome de celebridades para que a partir dessa representação social haja uma interação, por excelência, com o leitor virtual.

Com relação à imagem do copo, nos dois primeiros exemplos, há uma substituição do elemento verbal para o não-verbal, ilustrando, de forma prática, como se deve tomar o remédio, entrevendo a previsão de um possível receptor desatento à leitura. O reflexo branco sobre o copo, refletindo a efervescência do remédio, sugere a forma da tarja branca que carrega o lema da bandeira nacional “Ordem e Progresso”.

De acordo com a crença popular, o branco traduz paz e é exatamente isso que o antiácido SONRISAL proporciona ao seu consumidor. Essa forma efervescente lembra algo refrescante; a sensação de alívio é transparente nessa exploração visual.

Já nos dois últimos exemplos, há inserção dos elementos verbais “Tome dois e pronto!” que reforçam a imagem, efetivando a eficácia através do enunciado “...e pronto!”, acabando o problema. SONRISAL está exigindo/ sugerindo que o leitor virtual tome a iniciativa que esse enunciador deseja; porém, ao abrir, no final da página, uma tarja A PERSISTIREM OS SINTOMAS, O MÉDICO DEVERÁ SER CONSULTADO., surge uma outra voz: o remédio pode não ser tão eficaz assim como deseja transparecer. No entanto, por outro lado, ao emitir esse enunciado, o enunciador combate essa voz, demonstrando não a fraqueza de seu produto, mas a seriedade, a responsabilidade e o compromisso com o consumidor.

O discurso se transfigura de forma seqüencial, cuja organização textual está bem delimitada pelas cores. Em BRASIL. O PAÍS DO BEM GELADO. , BRASIL. O PAÍS DO CAFÉ DAS 6., BRASIL. O PAÍS DO FUTEBOL. e BRASIL. O PAÍS DA PITANGA., temos a marca da introdução delimitada pela cor amarela ( nosso tesouro é a nossa pátria com suas marcas peculiares), enquanto o desenvolvimento está demarcado pela cor verde (a esperança é característica do brasileiro, momento propício para o discurso das representações sociais e identidades culturais) e a conclusão, pela cor branca (transparecendo o sentimento de alívio, paz e bem-estar), fechando nos quatro textos com o mesmo enunciado SONRISAL. O BEM-ESTAR DO BRASIL.

As marcas lingüísticas
e os efeitos sensoriais

No interior de todo o texto, vimos que um enunciador se define, definindo igualmente um co-enunciador. Essa definição se faz pelo emprego seletivo de determinadas operações de enunciação. Ocorre na fala do locutor uma prática discursiva baseada em modalidades representativas de acordo com o público alvo que o enunciador deseja alcançar. Utiliza termos próprios do ato de fala do povo brasileiro, bem como deixa transparecer seu ponto de vista sobre o ato de enunciação.

Ao empregar o diminutivo (CAIPIRINHA, LEVINHO, FRESQUINHO, CERVEJINHA, CHURRASQUINHO); o aumentativo (SORVETÃO, BIFÃO); a formação composta (JULIETA ROMEU-E-, NÃO-IMPORTA-DE-QUE) dentre outros, o enunciador interage com o interlocutor abrindo condições de este se sentir familiarizado, integrado à situação comunicativa oferecida pelo enunciador, artimanha que induz o leitor a adquirir o produto; permitindo-lhe uma sensação de bem-estar, haja vista o contexto familiar.

O emprego do modificador “bem” (BEM GELADO, BEM APIMENTADO, BEM MEXIDO, BEM ACOMPANHADO) intensificando o nome, também, intervém uma força argumentativa, afinal, como já foi mencionado, o brasileiro tem costume de sempre pôr “uma pitadinha a mais” em tudo que faz. Por outro lado, esse operador “bem” é, normalmente, empregado em uma situação de uso bastante coloquial (Eu bem vi aquela professora; Bem morreu o pai da sua colega; Você estava bem aqui na revista.), novamente, interagindo o enunciador e o co-enunciador de forma bastante positiva e familiar.

O pronome demonstrativo remete o co-enunciador para o ato de enunciação do texto (...DAQUELA ENGASGADA BÁSICA NA HORA DO PÊNALTI). As formas enunciativas. E SEMPRE BEM ACOMPANHADO; ... QUE AMANHÃ TEM BATENTE”; ...PODIA E SEJA, CONTRA OU A FAVOR, DAQUELA ENGASGADA BÁSICA NA HORA DO PÊNALTI; ...E, É CLARO, QUE ELA NÃO FALTAR, DA LIMA atuam diretamente sobre o co-enunciador, elas apresentam um estado de coisas como já estabelecido e, ao mesmo tempo, fazem um juízo de valor sobre tal estado de coisas. Pode-se entrever uma atividade enunciativa reflexiva: elas falam do mundo apontando, de algum modo, para sua própria atividade de fala. Significam, também, ao mesmo tempo, designar o locutor e mostrar que esse locutor não é precisamente aquele que profere o enunciado, mas também o leitor. É a voz do enunciador instituindo um ponto de vista da recepção ou enunciatário do texto. Aqui, fica evidente a existência de dois pólos básicos, que se intercambiam - de um lado, enunciador/ enunciatário e, de outro, enunciatário/ enununciador.

O nome próprio BRASIL, no início de cada texto, é identificado em relação ao ambiente espaço-temporal de cada enunciação particular em que ele se encontra, atribui-se numa categoria de terceira pessoa, pois é dele que se fala, ocorrendo aqui um apagamento do locutor, transferindo seu discurso para o BRASIL, esse recurso visa , mais uma vez, fortemente, a seu co-enunciador. O que ocorre é que o uso desse nome próprio implica vestígios de um enunciador e de um co-enunciador, remetendo a um nós, todos os brasileiros.

Além disso, a presença constante do articulador “de”, numa relação de posse (... O PAÍS DO BEM GELADO; ... DO CAFÉ DAS 6; ... DO FUTEBOL; ...DA PITANGA.), ratifica a valorização do país e o nacionalismo por parte do anunciante, provocando assim uma leitura de que o Brasil é também o país do SONRISAL.

Uma das habilidades de persuasão que pode ser observada é o que diz respeito ao apelo sensorial: a exploração visual através da própria ilustração, como a bandeira sugerida; a sonoridade, através do copo com os dois comprimidos efervescendo; o paladar e o olfato provocados pelas guloseimas enunciadas e o tato sugerido pela aproximação do produto com o consumidor.

Conclusão

As premissas para a comunicação estão se alterando, rapidamente, nos últimos tempos. Devido à grande competitividade, os anúncios precisaram parecer mais com seu consumidor, o poder mudou de mão, não é mais a empresa quem decide. A imagem do consumidor é cada vez mais matéria-prima. A diferença é feita quando se fala a língua e usa o contexto do consumidor, leitor virtual. Fica clara a concepção de linguagem vinculada à dinâmica da vida social e que os sentidos das palavras se vinculam às ações humanas. Logo, toda relação que o indivíduo/ sujeito terá com a linguagem passará forçosamente pelo discurso

O leitor virtual se posiciona diante do texto publicitário de acordo com seus interesses pessoais, com sua visão de mundo, provavelmente, estabelecendo os vínculos lógico-semânticos que faltam entre os diferentes blocos de texto verbal e entre estes e as ilustrações. Esse leitor faz as leituras a partir de premissas preconstruídas pelo senso comum trazidas por ele, comumente, pouco consciente dessas operações, que são feitas na vida cotidiana mecanicamente e por hábitos arraigados.

Levando isso em consideração, o texto publicitário se tornou excelente objeto de análise do discurso.

REFERÊNCIAS

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