UMA ANÁLISE DOS MECANISMOS DE
DESAUTORIZAÇÃO DO DISCURSO EM
DE MALIGNITATE HERODOTI DE PLUTARCO

Fernando Rodrigues Jr. (USP)

 

No livro II de suas Histórias, Heródoto menciona um evento contado pelos gregos que, segundo o autor, não seria examinado com a devida cautela. Quando de sua passagem pelo Egito, Héracles foi coroado e conduzido em procissão para ser sacrificado a Zeus. Por um breve momento o herói permaneceu inativo, mas quando o altar estava próximo recorreu à sua força e dizimou todos os presentes (II, 45). Heródoto se surpreende com a insustentabilidade desta história, pois entre os egípcios não existiria a prática de sacrifícios humanos, dado que tornaria este relato incoerente[1]. Não menos surpreso fica Plutarco ao ler esta passagem e constatar que Heródoto procura extirpar dos bárbaros a prática de anthrôpothusía, mas não titubeia em momento algum em associá-la aos gregos em II, 119, quando Menelau, encontrando-se retido em praias do Egito devido ao tempo contrário à navegação, acabou por imolar duas crianças autóctones para que os ventos se tornassem propícios à sua partida. Este ato ímpio não estaria adequado às honras prestadas a Helena e a Menelau pelos egípcios, já que Plutarco menciona um culto tardio a ambos realizado entre os habitantes locais. O cotejo entre as duas histórias serve de motivo para Heródoto ser concebido como um philobárbaros por Plutarco, uma vez que estaria mais interessado em defender interesses estrangeiros que os valores helênicos, não hesitando, se preciso, em conspurcar a imagem de sua pátria.

O ensaio Sobre a Malignidade de Heródoto (De Malignitate Herodoti), inserido na Moralia, é um libelo escrito por Plutarco pretendendo denunciar os equívocos reportados pelo historiador em sua narrativa sobre as guerras pérsicas. Contudo não se trataria de equívocos casuais, mas de uma tentativa deliberada de engodo sustentada pela má índole de seu autor. A primeira frase do tratado afirma que a elocução (lexis) de Heródoto, discorrendo sobre os fatos, já enganou (exépatêke) muitos. A noção de apátê é um dado importante fornecido pelo texto, pois implica em um engano precedido de uma intenção. Em seguida ele afirma que muitos já sofreram (pepónthasin) em vista de seu caráter (êthos). Se o engodo intencional do autor seria fomentado exclusivamente por seu êthos, então seu caráter, cujo principal interesse é transmitir uma informação equivocada aos leitores, só pode ser vil e desprezível.

O título do tratado de Plutarco diz muito sobre esta abordagem de sua análise. Kakoétheia, na afirmação de Aristóteles em Retórica 1389b é to epi cheiron hvpolambaínein hápanta. Corresponderia à idéia de um êthos que em essência fosse kakón (exatamente o sentido contrário da palavra euêtheia)[2]. Esta suposta malignidade de Heródoto estaria refletida em sua obra e seria muito difícil de ser percebida, já que se esconderia sob seu aspecto de simplicidade (haplotêta) e de amabilidade (eukolían). Contra tal malignidade concebida adiante como dolorosa, Plutarco pretende defender a reputação de seus ancestrais denegrida pelas posições do historiador, principalmente os beócios e os coríntios, estabelecendo os traços e os sinais da narração (íchnê kai gnôrísmata) que denotem de modo perceptível estas intenções maléficas. Porém, na conclusão (874C) o escopo abrangido pelo autor é concebido como muito mais largo, preconizando que em uma leitura correta de Heródoto não devem passar despercebidas as opiniões (dóxas) absurdas (atópous) e mentirosas (pseudeis) a respeito dos homens valorosos e das maiores cidades da Hélade. E, de fato, percebemos que os alvos do tratado não se restringem aos beócios e coríntios mencionados em 854F, mas chegam até a se dirigir aos sete sábios (855 A-B) ou a personalidades bárbaras como Creso e Dioces (858D-F).

Os traços e os sinais que Plutarco afirma serem indicativos de malignidade da narrativa são expostos em uma espécie de quadro geral, sendo considerados como suficientes para que percebamos as verdadeiras intenções do autor e o seu modo de se apresentar. Entre outras, são destacadas neste tratado sete técnicas das quais nosso historiador faria uso, visando a denegrir as personagens envolvidas: emprego deliberado de nomes e verbos pejorativos quando podem ser usados termos mais convenientes (epeikésteros); uso de digressões (parenthêkê) não concernentes com a história reportada, inserindo ações vis com o objetivo de manchar a reputação de uma personalidade ou de um evento (864C); omissão (paráleipsis) de um acontecimento nobre conectado à história (858A-B); havendo várias versões sobre um fato, a escolha da mais desfavorável (cheírona)[3] (859B-E); explicação de atos grandiosos por meio de motivos ignóbeis (858C. 861D-E, 867C-D); auto-isenção das acusações lançadas (862C-863B, 863C-D); mistura de elogios (épainous) com algumas criticas (psógous), tendo em vista um discurso mais verossímil (860E).

Após a apresentação de seus métodos de análise, Plutarco iniciará uma leitura cursiva das Histórias (com a exceção, somente, do livro IV) e serão comentadas as passagens em que estes problemas – ou intenções maléficas estão localizados no texto, procurando corrigi-los. Para isso serão utilizados conhecimentos históricos adquiridos através de outras fontes, citadas constantemente em seu tratado.

A critica aos eventos reportados por Heródoto não é uma exclusividade de Plutarco[4]. Inúmeros são os autores que contestam as versões dos fatos contidas nas Histórias e acusam seu autor de falsário e enganador. Em 364D temos a referência a um certo Aristófanes Beócio, que justifica as calúnias de Heródoto contra os tebanos devido a uma interdição que a pólis lhe impôs de instruir os seus jovens. Acusações do mais diverso teor e restrições ao seu texto aparecem também, entre outras, em passagens de Luciano Histórias verdadeiras II, 31; Diodoro 1, 37, 3-4; Flávio Josefo Contra Apio 1, 3; Estrabão IX, 6, 3, além da menção em um verbete da Suda a Harpocrátion, autor que se notabilizou por escrever livros destinados a denunciar as calúnias contidas em sua narrativa.

A leitura de Plutarco, contudo, distingue-se das demais por ter como fundamento a doutrina platônica a respeito do caráter de uma obra poética e de sua recepção pelos leitores. Tal como Platão preconiza a necessidade da poesia ter como matéria os conceitos de bondade e de beleza inerentes ao homem e jamais o vício (República 401 b-d), assim a leitura moralista que Plutarco faz da história lhe imputa a mesma censura dogmática. Desta forma, a história deve somente representar as ações belas e grandiosas dos ilustres varões do passado, servindo como paradigma instrutivo às gerações vindouras[5].

E bastante simples propor esta leitura para compreender em linhas gerais os ataques lançados a Heródoto neste tratado, mas, ao mesmo tempo, é bastante reducionista. Devemos nos lembrar que em Como o jovem deve ouvir a poesia Plutarco já havia discutido a questão da recepção da obra poética por aqueles que estão passando por um processo pedagógico, chegando a uma conclusão bem distinta da sugerida aqui. Em 25B-D Plutarco reconhece que o mundo é composto de vicio e virtude (kakías kai aretês) e a função da poesia é mimetizar esta realidade como tal, a fim de que o jovem tenha um conhecimento bem sedimentado dos valores que o rodeiam e possa optar pelo melhor caminho, sempre orientado pelo auxilio exegético de seu pedagogo. Se uma leitura despreocupada não é imposta à poesia, muito menos o será à história, que trabalha com os fatos que verdadeiramente aconteceram.

Supostamente alheio à censura exigida à diégese histórica, Plutarco pretende simplesmente corrigir os equívocos criados por Heródoto utilizando outros historiadores coetâneos ou posteriores ao autor e fontes de origem não declarada que muitas vezes parecem assumir a faceta de puras suposições. Segundo Heródoto, os corintios auxiliaram os lacedemónios a derrubar a tirania em Samos não devido ao horror causado por um regime despótico e seu ardor desmedido por extirpá-lo[6], mas pretextando vingarem-se dos sâmios por causa de um ultraje cometido três gerações antes: eles teriam se negado a castrar trezentos jovens oriundos de Corcira enviados pelo tirano de Corinto à ilha para esta finalidade. Plutarco concebe esta explicação como absurda e denuncia que o único objetivo que Heródoto tem em mente é lançar uma censura (óneidos) sobre Corinto, denegrindo a cidade. Não faria sentido, alega ele, que uma pólis vingasse três gerações depois as ordens insensatas de um tirano cuja lembrança ainda era dolorosa a seu povo. Além disso, depor Policrates, tirano de Samos, não seria uma forma de punir a cidade, mas de beneficiá-la, uma vez que lhe proporcionaria a liberdade (859E-860C)[7].

Assim como esta correção, todas as demais se esforçam por discordar da visão “faccionista” que Heródoto apresenta das cidades gregas, encobrindo seus desentendimentos internos e procurando restabelecer a reputação de importantes personalidades históricas que haviam sido difamadas. Subjaz nesta sua peculiar leitura da história uma Grécia gloriosa, unida e corajosa, em luta contra o bárbaro perigoso, porem inferior. Em nenhuma passagem do ensaio, Plutarco se propõe a retificar a descrição de um comandante grego cuja enumeração de qualidades havia sido exagerada. O escopo de suas críticas, despertadas por um patriotismo ferido, sempre se dirige à má intenção do autor em rebaixar os ilustres heróis do passado, atitude inaceitável para um moralista de seu porte[8].

Na Vida de Péricles (XIII, 14) Plutarco afirmara que é muito difícil à história apreender a verdade: ou porque estamos muito distantes cronologicamente dos fatos para sua correta compreensão ou porque a história das vidas e dos fatos contemporâneos, motivada por invejas e más intenções, maltrata (lumaínétai) e contorna (diastréphiéi) a verdade (alêtheian), servindo de instrumento de bajulação. Esta crítica está em sintonia com a idéia dominante contida no tratado aqui analisado, uma vez que os engodos históricos perpetrados por Heródoto são fruto de uma visão tendenciosa dos acontecimentos, denotada por sua reprochável conduta moral imbuída de kakoêtheia. Contudo os testemunhos utilizados por Plutarco sinalizam a fragilidade de seu argumento. Contrastando a versão de Heródoto com a de historiadores gerais (Éforo), logógrafos (Cáron de Lampsasco) e cronistas locais (Lisânias de Mallos e Antenor de Creta) notamos que grande parte deles é posterior aos eventos tratados e, portanto, passível de contestação dada a distensão temporal que os separa da matéria de sua narrativa.

A parcialidade de Plutarco, preocupada em reabilitar a imagem das glórias do passado grandioso da Grécia pode ser entendida como subordinada à sua peculiar função de educador a partir dos modelos de comportamento honroso e imitável. Em suas Vidas Paralelas constantemente o autor preconizou que a pintura de atos inspirados pela virtude produz o desejo de emulação e nos incentiva á sua imitação (eis mimésin) (Péricles 1, 4), uma vez que a biografia de alguém ilustre deve ser disposta como um espelho (esóptrôi) pelo qual o leitor deve ajustar sua vida às virtudes do biografado (Timoleon. 1. 1). Neste contexto fica fácil compreender as severas acusações lançadas contra Heródoto ao difamar a reputação de figuras veneradas pela tradição por causa de suas qualidades morais.

Contudo os interesses de um biógrafo e os de um historiador são bem diferentes, por mais que ambos possam trabalhar com a mesma matéria. A biografia, de acordo com os preceitos defendidos por Plutarco nas passagens mencionadas acima, leva em conta muito mais o caráter (êthos) da personagem narrada que os eventos (práxeis) realizados por ela. São os mais belos exemplos (kállista tôn pragmátôn) que devem ser contados nas biografias, os quais sirvam a um intuito pedagógico, pois têm como meta corrigir (epanórthôsin) a partir de seus modelos de conduta (Timoleon 1. 3-5)[9].

A distinção entre história e biografia já havia sido assinalada no prefacio à Vida de Alexandre (1, 1-3), em que Plutarco afirma oúte gár historias gráphomen, allá bíous (1. 2) e com esta perspectiva não menciona inúmeras ações importantes realizadas por Alexandre Magno. Tal corte seria impensável numa obra historiográfica, contudo a uma biografia a seleção é requerida, pois a finalidade deste gênero não é narrar as grandezas e as disputas (agônas), deixadas a cargo de outros provavelmente aos historiadores, mas penetrar nos sinais da alma (tá tês psvchês sêmêia) do biografado a partir dai moldar sua bios.[10]

Podemos concluir, desta forma, que à biografia interessa revelar o caráter (êthos) e neste ponto esta sua peculiaridade em distinção à história. Consciente disso, Plutarco afirma que a manifestação da virtude ou do vicio (dêlôsis aretês kai kakías) não está presente nos feitos mais brilhantes, mas em atos breves, em palavras ou em brincadeiras (Alexandre 1, 2), anunciando que este será o escopo de sua narrativa. O mesmo principio seletivo se encontra presente nas Vidas de Cornélio Nepos, autor latino do século 1 a. C. quando, no prefácio de Pelópidas (Vidas XVI, 1), o autor menciona que não pretende entrar nas minúcias dos eventos ocorridos, evitando parecer que conta não uma vida (vitam), mas uma história (historiam). Assim, ele evita saturar os leitores com detalhes excessivos e informações insuficientes.

Esta finalidade moralista da biografia é decorrente de sua relação com a escola peripatética e se baseia no conceito aristotélico de que o êthos só pode ser captado através dos modos ‘habituais’ de conduta.”(Garcia, 1985, pg. 10) Aristoxeno (aproximadamente 350 a. C.), considerado o pai da biografia literária, teria passado da escola pitagórica para a peripatética e seria estimado como um dos prováveis sucessores de Aristóteles. Devemos mencionar ainda que esta escola filosófica procurou investigar minuciosamente as condutas e os hábitos dos indivíduos e os Caracteres de Teofrasto nos proporcionam uma idéia destas sistematizações. Infelizmente não dispomos de textos suficientes para avaliarmos o conteúdo das biografias redigidas neste período, já que as mais antigas Vidas que chegaram até nós são relativamente tardias. No entanto vários biógrafos do período helenístico estão associados ao Perípatos, como Hermipo e Sátiro[11], o que nos faz pensar em uma apropriação do gênero pela escola para fins analíticos e edificantes

Leo conclui, em sua obra Die griechisch-römische Biographie nach ihrer Litterariscjh Form (1901) que, paralelo às biografias filológicas praticadas pelos eruditos alexandrinos, a produção biográfica restante esteve nas mãos dos filósofos do Perípatos, preocupados em divulgar os conceitos éticos investigados pela escola. Momigliano, por sua vez, em The development of Greek Biography (1993) discorda em grande medida desta idéia negando que a biografia tenha se originado enquanto gênero independente entre os filósofos aristotélicos, que teríamos informações de tais escritos em um período anterior a Aristóteles[12]. Segundo o autor, a escola peripatética teve um lugar de destaque para a produção biográfica helenística, porém elanão supõe o aristotelismo como fundamento necessário ou suficiente.” (Momigliano, 1993, p. 118)

Plutarco pode ser considerado o continuador desta tendência moralista na redação das Vidas, fato confirmado pela seleção dos eventos que devem ser apresentados em sua narrativa, voltando nosso pensamento (diánoian) aos mais belos exemplos (Timoleon 1, 5) e proporcionando-nos a compreensão do caráter e da conduta (prós katanóêsin êthous kai trópou) de seus protagonistas (Nícias 1, 5).

A história, por sua vez, direciona-se a objetivos distintos. Sua finalidade pragmática, defendida por Tucídides (1, 22, 2) e Políbio (1, 1), tende a prevalecer sobre sua tendência ‘desinteressada” de registrar as grandes façanhas de gregos e bárbaros a fim de que não caiam no esquecimento (Heródoto 1, 1). Porém, como bem salienta Canfora (em Teoria e tecnica della storiografia clássica) , a reflexão sobre a finalidade da produção historiográfica e seu modo de composição geralmente foi desenvolvida no corpo das próprias obras, mesclando-se ora com a exposição dos fatos, ora com o proêmio. Poucos são os testemunhos de tratados concernentes a este assunto e o único que chegou até nós foi o texto Como se deve escrever história, redigido por Luciano de Samósata no século II d. C.

Interessado em apontar inúmeros equívocos perpetrados por autores no exercício de sua atividade, Luciano estabelece que a tarefa do historiador é contar os fatos como eles se passaram (cap. 39), não temendo quem lhe serve de mecenas, nem esperando receber uma retribuição advinda do teor tendencioso de sua narrativa. Desta forma, não pode haver parcialidade como quando se elogia os comandantes da própria nação e rebaixa os da inimiga atitude esperada de um pangírico e não de uma historiografia (cap. 7). A este, se necessário, o engodo pode ser empregado, porém a historiografia não suporta tal técnica, uma vez que ela não deve bajular os ouvintes presentes, mas servir como um monumento fidedigno e elogiável para as próximas gerações (cap. 39). Por fim, entre as várias características exigidas a um autor que pretenda se dedicar a registrar os fatos, destaca-se sua imparcialidade (cap. 41), que é própria de figuras exponenciais deste gênero como Tucídides[13] e Xenofon e assegura uma obra ligada à verdade e com esperança de admiração no porvir (cap. 63)

Os preceitos de Luciano nada mais são que o desenvolvimento das idéias contidas no prefácio de Tucídides, quando este assegura relatar os eventos ocorridos no passado a partir das análises dos indícios (tekmêrion), técnica que deveria ser adotada em oposição à tendência engrandecedora dos poetas ou ao hábito dos logógrafos de comporem o que seja mais agradável para o auditório e não o mais verdadeiro (alêthésteron) (1, 21, l) Da mesma forma que seu antecessor, Polibio também demonstra imenso repúdio à parcialidade na narrativa histórica ao acusar Filinos e Fábio de assim redigirem. Paira o autor, “como tudo é sem valia quando os olhos de um ser vivo são tomados, assim quando a verdade é retirada da história, o restante torna-se um relato inútil.”(1, 14).”[14]De certo modo Heródoto demonstra estar em sintonia com esta máxima ao afirmar que sua obrigação se centra em expor tudo que é dito (tá legómena) independente de sua crença ou posição (VII, 152).

Após esta longa digressão, ao retornarmos ao tratado cujo artigo tem como objetivo comentar, conseguimos ter uma nítida compreensão da mudança de valores operada para a avaliação das Histórias de Heródoto. Obedecendo a um acirrado moralismo baseado em um tendencioso sentimento filo-helênico, Plutarco visa a corrigir os supostos equívocos maléficos cometidos pelo historiador a partir de critérios próprios de uma biografia e não de uma obra historiográfica. Quando em 856H Plutarco comenta que uma narrativa histórica (diêgêsis historikê) é corrompida, insinuando que ela ocorreu não devido às virtudes de seus agentes, mas mediante riquezas (chrêmasi), com relativa facilidade (rhaidiôs) ou por obra do acaso eutychós), mostra-se completamente incompatível com o pensamento de Luciano e dos demais historiadores, já que para eles a narrativa histórica só é corrompida quando lhe falta a verdade. Seguindo o mesmo principio, em 855C-D é sugerido que não se deve mencionar os atos vis de importantes personagens caso não sejam fundamentais à história, mesmo se estes forem abundantes, como no caso de Cleon, evitando conspurcar o tom instrutivo da obra. Tudo isto nos leva a concluir que, sem dúvida, a falta de imparcialidade de Plutarco não lhe proporciona autoridade suficiente para contestar a idoneidade discursivamente construída por Heródoto.

 


 

BIBLIOGRAFIA

BABUT, D. Histoire et réflexion morale dans l’ouvre de Plutarque (in REG 88, 1975).

CANFORA, L. Teoria e tecnica della storiografia classica. Roma: Laterza, 1996.

CORNELÍO Nepote. Vidas. Trad. de Manuel Segura Moreno. Madrid: Gredos, 1985.

GENTILI, B. & CERRI, G. Le teorie de discorso storico nel pensiero greco e la storiografia romana arcaica. Roma: Ateneo, 1975.

––––––. History and Biography in Ancient Thought. Amstetdan: J. C. Gieben, 1988.

HAUVETTE, A. Hérodote, historien des guerres médiques. Paris: Hachette, 1894.

HÉRODOTE Histoires. Trad. de Ph. E. Legrand. Paris: Les Belles Letttres, 1956.

LEGRAND, Ph. E. De la malignité d’Hérodote. In GLOTZ, G. Mélanges, tome II. Paris: Les Presses Universitaires de France, 1932.

LUCIANI. Opera tomus III. Ed. de M. D. Macleod. London: Oxford University Press, 1980.

LUCIES de Samosate. Ouvres Completes. Trad. de Emile Chambry. Paris: Librarie Garnier Frères, [s/d.].

MEISTER, K. La storiografia greca (dalle origini allá fine dell’Ellenismo). Roma: Laterza, 1992.

MOMIGLIANO, A. The development of Greek Biography. London: Harvard University Press, 1993.

––––––. Problèmes d’Historiographie ancienne et moderne. Paris: Gallimard, 1983.

POLYBIUS The histories. Trad. de W. R. Paton. London: Harvard University Pres, 1960.

PLUTARCH. Moralia. Trad. de Lionel Pearson and F. H. Sandbach. London: Harvard University Press, 1970.

PLUTARQUE. Ouvres Morales, tome I. Trad. de Jean Sirinelli et André Philippon. Paris: Les Belles Lettres, 1987.

––––––. Ouvres Morales, tome XII. Trad. de Marcel Cuvigny et Guy Lachenaud. Paris: Les Belles Lettres, 1981.

––––––. Viés, tomes III, IV et IX. Trad. de Robert Flacelière et Émile Chambry. Paris: Les Belles Lettres, 1969.

RUSSELL, D. Plutarch. London: Duckworth, 1973.

SUETÔNIO et alli. Biografias Literarias Latinas. Ed. de Yolanda Garcia. Madrid: Gredos, 1985.

TUCÍDIDES. A Guerra do Peloponeso, livro I. Trad. de Anna Lia do Amaral. São Paulo: Martins Fontes, 1999.


 


 

[1] A mesma história é contada por Apolodoro Biblioteca II 5. Por sua vez na versão de Plutarco a personagem Busiris é citada, apesar de não ser atestada em Heródoto. Segundo Lacheneaud (Lacheneaud, 1981, p. 241) estemito poderia ser contado por marinheiros gregos para mostrar a falta de hospitalidade dos egípcios. Na época histórica não haveria traços de sacrifícios humanos no Egito.”

[2] Segundo o Greek English Lexicon de Liddle & Scott, o verbete kakoêtheia significa má disposição ou malignidade (Platão República 348d, 401a, no plural em Ésquines I 166, Isócrates XV 284); também pode significar más maneiras (Xenofonte Ciropedia XIII 16). Relacionado a este termo há o adjetivo kakoêthês, traduzido como malicioso (Aristófanes Paz 822, Platão Epístola 360c, Plutarco 856A) ou o substantivo to kakoêthes, malícia (Platão República 401b).

[3] Lacheneaud (op. cit.) lança uma questão de difícil resposta a esta passagem do texto. O termo cheirona estaria se referindo às versões menos favoráveis ou seja, mais propícias às difamações e às calúnias ou às versões menos dignas de ? Pearson, em sua edição do tratado pela Harvard University Press, opta pela segunda possibilidade (creditrable)

[4] A crítica a Heródoto na obra de Plutarco também não se limita a este ensaio, mas pode ser encontrada em outras passagens como Vida de Temístocles XVI 2-5; Sobre comer carne 998A; Sobre a virtude das mulheres 845F e Preceitos para o casamento 139C, além das inúmeras citações sem qualquer comentário que as acompanhe. No entanto em nenhuma dessas alusões Plutarco demonstrou uma oposição tão radical como a desenvolvida neste tratado.

[5] Tanto Pearson quanto Lacheneaud concordam em afirmar que, baseado na reflexão sobre a poesia desenvolvida por Platão, o leitor não se surpreenderá com a qualificação de maligno para Heródoto (Lacheneaud, p. 127 e Pearson, p. 5). Segundo Pearson, Plutarco defende que “a história deve oferecer mais lições edificantes e morais que ser escrita com acuidade crítica.”

[6] Esta versão estaria de acordo com o veemente discurso proferido por um coríntio contra a tirania em V 92.

[7] Plutarco se opõe à versão de Heródoto baseando-se nas Fundações de Antenor de Creta e de Dioniso Calcídio, os quais afirmam que os cnídios foram responsáveis por raptar os trezentos jovens de Corcira e reconduzi-los à pátria. Por esta razão, Cnidos gozava de alguns privilégios entre os coríntios, tais como isenções de impostos e decretos honoríficos. Neste contexto de vingança, Plutarco questiona as razões de uma expedição contra Samos e não contra Cnidos.

[8] Reforçando a idéia de má intenção, Plutarco frisa em 865D que todos os recursos difamatórios empregados por Heródoto são fruto de sua escolha (proairéseôs) e de seu modo (trópou).

[9] Russell (Russell, 1973, pg. 102) ainda complementa que as bioi abrangeriam o sentido de vida comum, “associadas mais com o realismo da comédia que com os grandes tópicos da épica e da história, assim como a comédia de costumes estava para a tragédia.” Para confirmar este sentido cotidiano ao termo, Russell cita um comentário à Odisséia feito por Longino em Sobre o Sublime IX, 15.

[10] Contrariamente a Momigliano em The Development of Greek Biography, que defende a idéia de a historiografia e a biografia não se mesclarem, mas possuírem origens diversas no século quinto, Gentilli e Cerri em History and Biography in Ancient Thought discordam da visão de dois gêneros excludentes e contestam os testemunhos apresentados pelo autor. Desta forma a confluência entre ambos estaria evidente no retrato dos generais feito por Xenofonte em sua Anábase ou no interesse de Teopompo pela narrativa biográfica como parte necessária de sua narrativa histórica nas Filípicas, como comenta Dioniso de Halicarnasso em sua Epístola a Pompeu 6, ao reconhecer a polumorfia na historiografia. O próprio Políbio, tão avesso à técnica historiográfica divulgada pela escola isocrateana da qual Teopompo faz parte, insere no corpo de sua narrativa a biografia de Filopêmon, na medida em que ela é relevante para a compreensão dos eventos político-militares envolvidos na história. Os autores ainda mencionam a passagem das Antiguidades Romanas em que Dioniso de Halicarnasso considera como um dever do historiador não registrar as proezas marciais ou as gloriosas administrações de eminentes figuras, mas sua vida privada, ilustrando sua personalidade e sua coerência com as tradições patrióticas (I 8. 1-3). A concepção de amálgama pouco nítido entre história e biografia está presente nas palavras de Mazzarino comentando o prefácio à Vida de Alexandre de Plutarco: “Aqui há, de fato, uma rejeição da História como um gênero literário de narração extensa; mas não a rejeição da investigação histórica e da arte histórica como tal, mesmo se concentrada na forma de vida de várias personalidades, ou seja, no êthos.” (in MAZZARINO, S. Il pensiero storico vol. II, Bari, 1966, pg. 137 Apud Gentilli & CERRI op. cit. pg. 67).

[11] São Jerônimo, no prefácio de seu Sobre os Homens Ilustres acrescenta ao nome de Hermipo a designação de peripateticus. Já a ligação de Sátiro com a escola é denunciada em duas passagens do Banquete dos Sábios de Ateneu (248D e 541C).

[12] Referências ao gênero Biografia como tal de fato não são muito seguras, contudo a ausência de suporte textual não nos impede de concebermos conjecturas a partir dos esparsos testemunhos chegados até nós. Temos a menção de Cila de Carianda que, de acordo com um verbete da Suda, teria escrito os relatos sobre Heraclides (aproximadamente em 480 a. C. ). Ainda nos restam os fragmentos de Íon de Quios, com o relato auto-biográfico de suas viagens e Estesímbroto de Tasos, redator, no exílio, de um panfleto expondo sua situação e tecendo críticas à política de Péricles. Momigliano frisa que estes testemunhos, se não nos fornecem garantia exata de seu conteúdo, alertam-nos de que a biografia não teria sua origem restrita ao quarto século.

[13] Em V 26 Tucídides menciona que sua familiaridade com ambos os lados (par’ amphotérois) envolvidos na Guerra do Peloponeso possibilitou-lhe acompanhar melhor o curso dos acontecimentos, estruturando um relato não partidário.

[14] Em X 21. 8 Políbio reforça que a finalidade da história é pesquisar a verdade, baseando-se na imparcialidade.