Hibridismo e tradução cultural
na
narrativa de João Ubaldo Ribeiro

Maria Cristina Ferreira da Silva (UERJ)
Rita de Cássia M. Diogo (UERJ)

 

O presente trabalho tem como objetivo identificar como a ficção do escritor João Ubaldo Ribeiro traduz a cultura brasileira. Nossas análises são o resultado inicial das pesquisas desenvolvidas em torno do projeto de Iniciação Científica intitulado "O discurso latino-americano como via de tradução cultural", para a realização das quais recorremos aos conceitos de “traduçãoem Walter Benjamin (In: ÁNGEL VEGA, 1994) de “entre-lugar”, segundo os estudos de Silviano Santiago (2000), bem como às reflexões de Octavio Ianni (1994) sobre os conceitos de raça, povo, cultura e sociedade. Como referência da obra ubaldiana será utilizado o conto Podeis da Pátria Filhos, publicado no Livro de Histórias, de 1981 (depois republicado como homônimo do conto que será trabalhado). Neste conto, o autor relata um jogo de futebol entre brasileiros e um time formado por japoneses e americanos, exploradores do “metal” da região baiana onde se passa a história.

Em seu livro, O Caminho do Meio, Zilá Bernd e Francis Utéza (2001) explicam o que seriam as duas funções da literatura: uma sacralizadora, a outra, dessacralizadora. A primeira se refere à união da comunidade em torno de seus mitos fundadores, de seu imaginário ou ideologia. A segunda está ligada à “desmontagem” do sistema através da consciência crítica da realidade. De acordo com estes autores, João Ubaldo “ativaria” essas duas funções, conferindo independência cultural ao brasileiro, sem deixar de pôr em xeque a realidade nacional através da ironia e da paródia. Corroborando com estes estudiosos, poderíamos também dizer que, a fim de traduzir a nossa cultura, sua narrativa se constrói posicionada no meio do caminho entre o culto e o popular, o religioso e o profano, o regional e o universal, subvertendo a norma, e assim, ocupando o que Silviano Santiago chama de "entre-lugar do discurso latino-americano".

Em podeis...”, o colaborador do jornal "O Globo" reproduz a linguagem oral do povo de Itaparica, sua terra natal, lançando mão, para isso, de expressões regionais, gírias, palavras vulgares, repetições e tempos verbais inadequados: “amunta”; “encristalando, encristalando”; “aporrinhado”; “aluado”; “sacanagem”; “viadagens”; “quem nasce para vintém nunca chega a derréis”; “satélio”; “retado”; “esporro”. Outra marca de oralidade está no “aportuguesamento” de palavras estrangeiras como “jojitso”, “leise” e “ofiçáide”. Seu intuito certamente é o de preservar a riqueza dos falares regionais, ameaçada pela tendência à homogeneização, fruto do avanço da mídia eletrônica dominada pelo eixo Rio-São Paulo.

Confirmando sua adesão ao humor como meio de crítica político-social, entendemos a “pelada” no conto em estudo, como a metáfora do Brasil, país pós-colonial, palco de conflitos imperialistas. A partida pode ser encarada como a representação da competição pelo Brasil como mercado, como fonte de riqueza para os investidores estrangeiros e, segundo a perspectiva de um poder corrupto e conivente com a exploração estrangeira, "garantia" de crescimento econômico para a nação: “(...) o prefeito, que vive dizendo que aqui vai entrar dinheiro que nem ladrão acaba, quando acharem os metais (...)” (UBALDO RIBEIRO, 2004: 2).

Enquanto narra a relação entre o brasileiro e o estrangeiro, especialmente durante o jogo, o autor desconstrói através do uso de estereótipos forjados pela mídia, o discurso da unidade decorrente da globalização e de sua idéia de que o planeta "está menor" e todos se conhecem, pois compartilham de programas semelhantes na televisão, da mesma cultura, sabem no mesmo dia o que ocorreu no mundo inteiro etc. “Japonês, você diz uma coisa a ele, ele acredita” e “(...) talvez o francês, que é o povo mais descarado” (Id.: 3-4) são alguns exemplos que podemos citar de estereotipizações utilizadas por Ubaldo. Tais estereótipos, por sua vez, são desconstruídos pelo autor por meio da ironia, via principal de sua tradução cultural.

Tal qual o tradutor, inserto entre a língua/cultura materna e a estrangeira, a ironia ocupa o meio do caminho, entre o riso e a seriedade. Por meio dela se pode falar de um assunto sério de forma leve, bem-humorada e, por isso, mais atraente para o leitor. A ironia constitui um recurso utilizado por inúmeros autores, nas mais diversas épocas e países para fazer críticas sobre os mais diferentes aspectos da sociedade. Na Espanha do século XVI, Cervantes em seu Dom Quixote se valeu dela para falar dos governantes e de sua linguagem retórica e vazia. Sutil como o espanhol, Machado de Assis censurava a sociedade a partir do comportamento de certos personagens, vide Brás Cubas, o defunto-autor, que construiu seu texto crítico de forma irônica, a começar pelo próprio fato de ser um morto a narrar suas memórias. João Ubaldo utiliza tal recurso de maneira parecida à machadiana. Em seu caso, porém, a ironia é mais explícita: relatando o empate entre o São Lourenço (time local) e os gringos, o autor lança mão de um trocadilho: “(...) Mas o empate não serve a quem defende o seu país, mesmo quando ele empata a gente (...)” (Id.: 5), evidenciando que, com uma política excludente, o Brasil impede o progresso de seu povo. Por exemplo, com uma precária educação de base para a maioria da população, os brasileiros nunca terão condições de ascender econômica e socialmente.

O conto também aborda problemas, tais como, a alimentação precária afirmando que a comida que o estrangeiro come é do que muito melhor a comida que o brasileiro come e “(...) dá enormes sustanças (Id.: 1); a “venda” do país aos estrangeiros (“... agora está entupido de americanos e japoneses, não deram emprego a ninguém e ainda botam para fora todo mundo que encostar...” (Id.: 2) e o conformismo característico de nosso povo diante de tais situações, todas elas responsáveis pela perpetuação de nossos problemas. Esse conformismo cego é ironizado pelo autor em frases como “(...) o metal é deles, mas o futebol é nosso, é a lei da vida (Id.: 4) e “(...) eles levam o metal mas não levam a flâmula(Id.: 6).

Em seu texto, o escritor brasileiro rompe com as fronteiras entre pobreza e riqueza, brasileiro e estrangeiro, deixando à mostra nossa tradição mestiça, formada por portugueses, italianos, japoneses, franceses, holandeses, todos personagens de seus divertidos contos. Fato este que nos remete a metáfora do "cântaro quebrado"[1], encontrada na teoria da tradução de Walter Benjamin: poderíamos considerar que cada pedaço desta peça representa uma nacionalidade e que a cultura brasileira seria o resultado da reconstituição do vaso através da colagem de seus cacos, ou seja, das diferentes línguas/culturas que participaram da formação de nosso povo. Em Alandelão de la Patrie (UBALDO RIBEIRO, 2004), um conto publicado no mesmo livro, bois de diferentes raças protagonizam a história, cada um com uma característica diferente, que se acredita própria do povo que representam. Por exemplo: o boi holandês “é pela própria natureza uma criatura fina e elegante, o boi francês, um animal bastante triste o que fez o narrador pensar ser da natureza do animal, que “o francês aprecia a safadagem mas tudo na maior decência (Id.: 1-2).

É evidente que personagens africanos, europeus e índios, a base de nossa cultura mestiça, assim como temas relacionados a eles, figuraram em nossa literatura, descritos por autores dos mais significativos, desde quando éramos colônia portuguesa. Porém, formas verdadeiramente híbridas que encarnem não apenas imagens ou temas, mas elementos que alterem a própria estrutura do texto é algo relativamente novo. Comparemos O Cortiço, de Aluísio Azevedo com o conto objeto de nossa análise. Neste, o “povo não figura apenas como tema, mas sua linguagem coloquial, com a pronúncia descuidada, sem marcas de concordância, uso de gírias etc. – aparece comprometendo a estrutura narrativa. O autor voz a segmentos da população que, herdeiros daqueles que ingressaram no país em condição de inferioridade (escravos, trabalhadores rurais), tornaram-se excluídos do sistema social e cultural brasileiro. O texto naturalista de Aluisio Azevedo traz a nítida preocupação com as classes marginalizadas da sociedade (o cortiço de João Romão reúne representantes dessas camadas), sem contudo comprometer a sua estrutura textual.

Em seu hibridismo cultural, o texto ubaldiano evidencia as profundas contradições presentes entre as classes sociais de nosso país. Seguramente, os investidores estrangeiros, o prefeito da cidade, o patrocinador do São Lourenço, representam a classe privilegiada da população, aquela que dita as normas a serem seguidas, oprimindo assim os mais pobres, impossibilitando a mobilidade social.

Com um final muito inteligente, uma mistura de justificativa e conclusão, Podeis da Pátria Filhos desconstrói o conceito de raça através da ironia. Como bem analisa Octavio Ianni (1994), a raça, mais que uma reunião de caracteres fenotípicos, é uma categoria histórica, transitória, que se constrói ou transforma a partir das relações sociais, ou seja, “quem inventa o negro do branco é o branco. E é este negro que o branco procura incutir no outro.” (IANNI, 1994: 120) O mesmo podemos dizer em relação ao elemento estrangeiro: a crença em sua "superioridade" também é fruto de um dado contexto social, e como tal é posto em xeque por Ubaldo nas últimas frases de seu conto. O narrador se pergunta sobre o que seria melhor: viver bem como os gringos ou ganhar no futebol (o que parece ser o único motivo de orgulho de nosso povo). E ao lembrar-se da punição imposta por Hitler aos “alemães que não ganharam nas olimpíadas, para não envergonhar a raça”, conclui que “a melhor raça somos nós (UBALDO RIBEIRO, 2004: 6), pois ainda que mestiços, sem foguetes e o raio leise”, somos superiores porque não temos nosso currículo manchado por guerras ou genocídios, crimes hediondos, e claro, sempre ganhamos no futebol.

Nesse trecho, entendemos também que o “atleta brasileiro, driblando comheroísmo” os problemas sociais e econômicos, levantando a cadasolavanco” e suportando cadabicuda levada, sobrevive dando o seu “jeitinho” e constrói um país e uma raça melhores, ainda que sem a pretensão de o realizar. O narrador do conto afirma que, de vez em quando, “o americano acertava a bicuda em cheio” e que Poroba (um dos jogadores do São Lourenço) “passou muito tempo com zumbido nos ouvidos, dos solavancos que ele levava...”. Diz ainda que, diante do empate, a saída encontrada pelos esportistas locais foi meter o “dedo no traseiro do goleiro adversário”, um japonês (o famoso jeitinho brasileiro).

Em sua obra, o autor apresenta o resultado de sua prática tradutória entre o nacional e o estrangeiro, o culto e o popular, as classes privilegiadas e os mais humildes. Para isso, descreve, metaforicamente, como milhões de Porobas, Cremildos e Bertinhos enfrentam as adversidades resultantes de sua situação de seres oprimidos pela dependência econômica brasileira. A utilização do “menor” (oral e popular) num veículo inerente à tradição letrada (escrita e culta) como o é a literatura, constitui uma maneira de romper com o academicismo, encontrando na forma híbrida o melhor caminho de falar sobre a nossa cultura.

Bibliografia

BENJAMIN, Walter. La tarea del traductor. In: ÁNGEL VEGA, M. (org.). Textos clásicos de teoría de la traducción. Madrid: Cátedra, 1994. p. 285-296.

BERND, Zilá & UTÉZA, Francis. O caminho do meio. Porto Alegre: UFGRS, 2001.

IANNI, Octavio. A idéia de Brasil moderno. São Paulo: Brasiliense, 1994.

SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

UBALDO RIBEIRO, João. podeis da pátria filhos. Disponível em: http://www.releituras.com – Acesso em julho 2004.

––––––. Alandelão de la patrie. Disponível em: www.releituras.com – Acesso em julho de 2004.


 


 

[1] Em seu estudo sobre a tarefa do tradutor, essa imagem se refere ao mito da Torre de Babel, quando a linguagem adâmica fragmentou-se numa multiplicidade de línguas, hoje "cacos" da totalidade da linguagem original, que unidos a recompõem de forma imperfeita. (BENJAMIN, 1994:  293)