lendo e escrevendo com clarice lispector
uma análise da leitura na obra clariceana

Isa Ferreira Martins (UERJ)
Maria Aparecida Ferreira de Andrade Salgueiro
(UERJ)

Ao longo do desenvolvimento de nossos estudos sobre questões que envolvem a literatura e a crítica textual, observamos a importante função do processo da leitura em ambos. Dessa forma, não poderíamos deixar de dedicar parte de nosso tempo à investigação deste tema. Dentre os inúmeros autores da Literatura Brasileira, que nos permitem a mesma pesquisa, elegemos a produção de Clarice Lispector. Tal escolha foi motivada por ser Lispector um dos nomes que, enquanto leitora, teve acesso à literatura de vários autores nacionais e estrangeiros; como escritora, contribuiu para a difusão da literatura e da cultura brasileira em outros países; e, com seu trabalho como tradutora, proporcionou acesso àqueles que não dominam a Língua Inglesa, à leitura de obras como, por exemplo, O Retrato de Dorian Gray, publicado pela editora Ediouro.

Assim, o presente trabalho objetiva apresentar resultados parciais de algumas considerações sobre o papel da leitura e sua influência no processo de produção literária, fazendo parte de nossa pesquisa no Mestrado em Literatura Brasileira e Teorias da Literatura na Universidade Federal Fluminense.

Fundamentamos nossa pesquisa em leituras da obra de Clarice Lispector, textos teóricos e críticos sobre sua produção, buscas sobre a autora em sites nacionais e internacionais especializados em Literatura. Estes nos mostraram o quanto o nome e a obra de Lispector possuem um respeitável espaço em diversos países. Pesquisamos ainda na Fundação Casa de Rui Barbosa (local em que se encontra o inventário da escritora), e na Biblioteca Nacional. Nelas encontramos informações a respeito de algumas das traduções feitas por Lispector, artigos escritos por ela, além de alguns originais de sua ampla obra.

Tais descobertas motivaram-nos a um estudo mais aprofundado a respeito das teorias que discorrem sobre a prática da leitura e a formação do leitor. Assim, houve a necessidade de um maior mapeamento da bibliografia existente sobre estas teorias nas principais bibliotecas do Rio de Janeiro. Vale ressaltar que estudamos os assuntos apresentados, com enfoque no processo da transculturação, literatura e cultura. Portanto, nosso norte teórico é a Estética da Recepção comparando-a com recentes teorias sobre o Pós-Modernismo.

É preciso considerar inicialmente que a discussão que apresentaremos a respeito da formação do leitor e a influência literária sobre o escritor é propiciada pelo processo de transculturação e que este é viabilizado pela tríade leitura, escrita e tradução. Embora tal processo seja composto por esses três elementos, o mesmo pode ter início a partir de qualquer um deles dependendo do foco, do momento ou do sujeito analisado. Ou seja, determinado indivíduo ao longo de sua formação como leitor adquire, inicialmente, conhecimentos e informações através do que é produzido na literatura nacional (não estamos nos restringindo à ficção). O mesmo pode ocorrer com a produção textual de outras culturas. Entretanto, para que isto ocorra, o sujeito em questão precisa dominar outro(s) idioma(s), ou, ainda, que o material a ser lido esteja na língua mãe dele, isto é, traduzido. Temos a partir desse ponto a concretização da tradução como ferramenta de transculturação, pois, viabiliza a leitura àqueles que não dominam, ou pelo menos não tão bem, a língua em que dado texto se encontra.

Há ainda uma outra questão que complementa a importância da tradução e que muitas vezes não nos damos conta. Mesmo para aqueles que dominam certa(s) língua(s) estrangeira(s), excluindo os que com ela(s) trabalha(m) e/ou estuda(m) mais profundamente, não são raras as vezes em que há a preferência da leitura na língua materna daquele que lê. Quanto da literatura e cultura estrangeiras lemos mesmo sem dominar a língua em que dadas obras foram escritas? E mesmo quando temos o domínio de outro idioma, quantas vezes preferimos ler em nossa língua? Assim, é importante atentarmos para o papel que a tradução tem diante do processo da imigração e emigração do conhecimento entre as culturas.

A própria oportunidade de hoje discutirmos a possível influência que Clarice Lispector sofreu de Proust, por exemplo, se dá pelo feito de que a literatura proustiana estabeleceu-se em nosso solo. Tal fato pode também ter sido possibilitado pela tradução de seus textos para o português, pois, nos arriscaríamos a indagar: quantas pessoas leram sua obra no original? Ou seja, se a obra de Proust é conhecida no mundo literário brasileiro isto se deve, principalmente, ao processo transcultural que tem, como já mencionamos anteriormente, como uma das importantes ferramentas de concretização a tradução. Após esta breve exposição a respeito da transculturação, alguns dos elementos que a possibilitam, e as trocas que esta proporciona, passemos para uma discussão que também pode ser considerada seu fruto.

Como apresentamos nos parágrafos anteriores, vários são os aspectos que a tríade leitura, escritura e tradução permitem estudar. No entanto, nos atemos à questão da leitura no presente trabalho por constatarmos que a primeira, no sentido lato, permeia a vida e a produção do autor. Em nossos estudos sobre as leituras de Clarice Lispector, observamos algumas das influências que a autora sofreu, suposta e claramente.

Para termos um melhor arcabouço, pesquisamos teorias literárias que tratam da questão do leitor como, por exemplo, a Estética da Recepção, as idéias apresentadas por Roland Barthes, Wolfgang Iser e Hans Robert Juss sobre a temática da leitura, entre outras. Isto possibilitou o melhor entendimento de seu processo e das problemáticas que a cercam de acordo com as idéias de cada um destes teóricos. Dessa forma, foi possível perceber de maneira mais sensível na literatura clariceana alusões a textos de Machado de Assis, Dante Alighieri, Carlos Drummond de Andrade, Goethe, por exemplo, e algumas das motivações destas.

No entanto, no livro Correspondências: Clarice Lispector, organizado por Teresa Montero, encontramos uma carta de Clarice para sua irmã Tânia Kaufmann, na qual a autora relata que escreveu ao crítico Álvaro Lins “dizendo que não conhecia nem Joyce nem Virgínia Woolf nem Proust” quando da concepção do livro Perto do Coração Selvagem (MONTERO, 2002: 38).

Tivemos, então, a percepção da concomitância dos dois aspectos teóricos que seriam, aparentemente excludentes: a influência e não influência da leitura sobre o autor. Ou seja, ao longo da formação do leitor, portanto, este acaba levando consigo parte do que lê e, por vezes, faz alusões a essas leituras em sua obra, como constatamos em textos de Lispector.

A grande diversidade de leitura de Clarice Lispector pode ser percebida em sua literatura. Todavia, a escrita da autora não é apenas o resultado delas. Sabemos que a leitura é parte primordial para a formação do escritor, e está presente na vida e obra de Lispector. Por esse motivo, não poderíamos deixar de pesquisar os caminhos e formas como esta se apresenta em sua produção.

No capítulo “Fenomenologia, Hermenêutica, Teoria da Recepção”, em Teoria da Literatura: uma introdução, de Terry Eagleton, nos são apresentadas correntes teóricas que tratam da formação do leitor. Após discorrer sobre as idéias de Iser e Barthes, o autor escreve que “Ambos os críticos ignoram, cada qual a seu modo, a posição do leitor na história. ...todos os leitores estão social e historicamente situados...” (Eagleton, 1983: 89). Tal argumento se fundamenta na problemática de que, em síntese, as concepções do primeiro se pautam, principalmente, na necessidade do sujeito “despir-se” de seus conceitos diante da leitura permitindo assim que eles possam ser modificados.

Para Iser, a obra literária mais eficiente é aquela que força o leitor a uma nova consciência crítica de seus códigos e expectativas habituais. (...) um leitor com fortes compromissos ideológicos provavelmente será um leitor inadequado, já que tem menos probabilidade de estar aberto aos poderes transformativos das obras literárias. (Eagleton, 1983: 84 e 85).

Já Barthes, a partir de O Prazer do texto, em suma, teoriza que “o leitor simplesmente se entrega à tantalizante variação dos signos, aos brilhos provocativos dos significados que aparecem e desaparecem.” (Eagleton, 1983: 88)

Logo a seguir, como contraposição, temos a teoria de Hans Robert Juss que, segundo Eagleton:

procura situar a obra literária num ‘horizonte’ histórico, o contexto dos significados culturais dentro dos quais ela foi produzida, para em seguida explorar as relações variáveis entre ela e os ‘horizontes’, também variáveis, dos seus leitores históricos. O objetivo dessa obra é produzir um novo tipo de história literária, centralizada não nos autores, influências e tendências literárias, mas na literatura, tal como definida e interpretada pelos vários momentos de ’recepção’ histórica. (Eagleton, 1983: 89)

Com base nas idéias de Juss, podemos entender melhor a aparente contradição que permeia a crítica sobre o primeiro livro, Perto do Coração Selvagem, de Lispector, e que ainda hoje está presente em muitas discussões acadêmicas. De um lado temos a análise de Álvaro Lins, persistindo ainda nos dias de hoje, que diminui o valor do próprio romance por caracterizá-lo como relação de influência com os expoentes americanos e europeus. Segundo a própria autora, na referida carta anteriormente citada, só faltou ao escritor chamá-la de “representante comercial” de Joyce, Virgínia Woolf e Proust.

Em contrário, temos a negação documentada de Clarice indicando que a influência de tais autores sobre sua escrita não era possível pois ainda não os tinha lido. Para muitos dos que estudam a obra clariceana, este é um dos pontos intrigantes do início de sua carreira como escritora, pois, a semelhança e possíveis alusões aos romances dos três referidos escritores são defendidas em diversas análises literárias comparativistas.

Motivados por esse impasse, recorremos às teorias literárias e ao processo de formação do leitor e sua influência no momento da escrita para melhor entendê-lo. Observamos que a leitura, e sua influência, vêm somar ao estilo dessa autora que, de forma muito peculiar, construiu seus textos e dialogou com temas e questões presentes em seu hábito como leitora.

No entanto, embora as teorias de Iser e Barthes possam ser constatadas no que tange ao processo de formação do leitor, a questão principal do presente trabalho tenta dar conta sobre a antitética relação da possível influência no romance clariceano de estréia. Para tal, retornaremos à citação acima sobre a teoria de Hans Robert Juss que nos apresenta a importância de considerarmos o que chamaremos de “atmosfera histórica ou literária”.

Segundo a teoria de Juss não podemos desconsiderar o contexto em que dada obra foi produzida. No caso que estamos analisando, esta nos parece ser a resposta que melhor esclarece o fato de Perto do Coração Selvagem não ser fruto da influência da leitura de Clarice dos autores citados por Álvaro Lins. Ou seja, determinada obra pode ter sua concepção caracterizada primordialmente pelo momento histórico e literário em que se encontra e que as expectativas, as renovações, as tendências e até mesmo as interpretações de mundo podem interligar os autores, suas obras e talvez suas temáticas, mesmo que um não tenha conhecimento da existência de outros.

Assim, podemos apontar para o fato de que, embora Clarice Lispector não tenha sido influenciada pela leitura de Joyce, Virgínia Woolf ou Proust, possivelmente a semelhança, que não só Lins encontrou como vários outros estudiosos da área, se dê pelo viés contextual do momento histórico e literário no qual a escritora brasileira estava inserida. Tal idéia é apresentada por Juss como “‘recepção’ histórica”. Observamos ainda que o surgimento do “embate” entre a crítica de Lins e a negação de Lispector talvez tenha seu início na influência não de Clarice, mas de Álvaro Lins pelas leituras que já possuía de Joyce, Virgínia Woolf e Proust, que já eram autores muito conceituados em sua época.

Sabemos que a discussão está longe de ser encerrada e nem é essa nossa intenção através de nosso trabalho. Entretanto, acreditamos que, por ser esta uma questão que se discute nas análises literárias clariceanas, não poderíamos deixar de investigar a problemática dentro de nossos estudos. Além disso, devemos pontuar que nosso eixo de análise das questões anteriormente abordadas é possível devido ao processo de transculturação, que possui como principais pontes a literatura, a tradução e os diferentes processos que envolvem a leitura, uma vez que através da produção textual de determinada cultura, e, posteriormente, sua tradução para outros idiomas, o leitor estrangeiro pode fazer parte de um diálogo cultural que pode ou não estar presente na produção literária, como pudemos observar em nossa pesquisa sobre a leitora, escritora e tradutora Clarice Lispector.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARTHES, Roland, O Prazer do Texto. São Paulo: Perspectiva, 2004.

Eagleton, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 1983.

LISPECTOR, Clarice. Perto do Coração Selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

------. Correspondências.(Org.) Teresa Montero. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2002.

ORTIZ, Renato. Mundialização e Cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

SALGUEIRO, Maria Aparecida Ferreira de Andrade. Tradução e inclusão. In: ---. As Margens da Tradução. Rio de Janeiro: Caetés, 2002.