O EU E O OUTRO
TRADUÇÃO DE UM SÉCULO DE HORRORES
E MARAVILHAS

Maria Franca Zuccarello (UERJ e UFRJ)

O século XX foi um dos séculos mais turbulentos dos tempos modernos devido aos muitos fatos ocorridos em seu decorrer. O que mais o marcou foram dois eventos bastante traumáticos: a Primeira Guerra Mundial e a ainda mais destrutiva Segunda Guerra Mundial, que teve como ponto culminante a explosão das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, e as muitas guerras locais e ataques terroristas que têm ocorrido em todo o mundo.

As maiores tragédias deste século foram indubitavelmente as deliberadas tentativas de destruição de povos inteiros - ocorridas através de genocídios, como o de Auschwitz ou os mais recentes episódios de limpeza étnica - as inauditas violências tribais que freqüentemente acompanharam o nascimento e a evolução dos Estados Nacionais no Terceiro Mundo, as deportações em massa, as execuções sumárias.

Segundo estudos feitos, somente durante os primeiros 80 anos desse século 170 milhões de pessoas foram mortas no âmbito do genocídio e dos massacres coletivos, incluindo as que morreram em épocas de paz, devido a motivos políticos ou ideológicos.

Foi dito esse o século dos horrores e da impiedade, devido a uma crescente aridez do coração do homem em razão da perda do sacro, ao afirmar-se de ideologias funestas e à queda dos valores que pareciam consolidados: tudo isso determinado, em grande parte, pelo mito da eficiência e da produtividade, pelo culto universalmente professado da riqueza, pela violência entre nações e homens para conquistar o poder, pela violência do homem para consigo mesmo marcada principalmente pelo consumo das drogas e violência do homem para com a natureza.

Apesar disso o séc. XX não foi somente o século dos horrores, mas também o século das maravilhas, se pensarmos nos muitos progressos das ciências, especialmente aos feitos pela medicina e pela biologia, que conseguiram descobrir a cura de várias patologias mortais, determinando um do tempo da vida maior e assim um grande melhoramento de sua qualidade.

Devemos ainda lembrar dos progressos da física, que consentiram ao homem explorar o microcosmo e o macrocosmo, consentindo-lhe até chegar à Lua e avançar em direção a outros planetas, a outras vidas.

O mundo foi avante e nunca como neste momento o homem sentiu a necessidade de um suplemento de reflexão, de uma reflexão, porém, que lhe viesse da alma. Provavelmente a cultura que vinha se afirmando cada vez mais não soube lhe indicar o caminho, mas o ajudou a entender, fornecendo-lhe instrumentos idôneos para descer até aos abismos e a remontar à superfície.

Tudo isso culminou em uma dupla dimensão: o Bem e o Mal, o Eu e o Outro. Tiveram plena consciência disso artistas e escritores que inspirados nisso puderam representar a complexidade da alma humana e, talvez, a impossibilidade de atingir uma única verdade. Esta multiplicidade de mundos - ao mesmo tempo contíguos e conflituosos - foi motivo de vários desconcertos, mas que, apesar de tudo, contribuíram ao crescimento e à maturação do homem contemporâneo.

As últimas décadas do séc. XX passaram sob a insígnia da época da comunicação, mas o homem desse século esteve cada vez mais fechado em si mesmo, preocupando-se com seus problemas, esquecendo que no mundo havia milhões de outros homens que viviam os mesmos problemas, e cada vez mais lhe faltou o uso da comunicação para interagir com seus semelhantes.

E a ausência de comunicação leva à intolerância porque quando não se expressa mais pelas palavras não há comunicação e a violência, linguagem da intolerância, toma conta de quem a pratica.

A intolerância se situa no início do ódio e, se não conseguirmos impedir-lhe de nascer, este entrará em ação e será praticamente impossível erradicá-lo: assassinar, massacrar um homem, um velho, uma mulher ou uma criança é a mais forte forma de intolerância, é a negação do homem e de suas possibilidades de realização, representando, então, uma maldição para a humanidade.

A intolerância foi a base da construção de vários sistemas de governos que não aceitavam idéias ou interesses que não fossem os próprios. E foi esta a principal característica das grandes ditaduras, que estiveram presentes na velha Europa, com o Nazismo de Hitler e o Fascismo de Mussolini.

Sobre este tema - tão falado durante os séculos e hoje mais atual do que nunca - se pronunciou também o escritor italiano Primo Levi com o texto L’intolleranza razziale (A intolerância racial), do qual reportamos pequenos trechos:

[...] A intolerância racial, a própria palavra o diz, é a intolerância entre as raças humanas. Não há discussão possível - as raças humanas existem. Não há duvida nenhuma que a pele de um negro seja preta, isto é, mais escura daquela de um branco, não há duvida nenhuma que os olhos dos japoneses, dos orientais tenham um corte diferente do nosso, não há duvida nenhuma que existem raças humanas de estatura mais alta, de estatura mais baixa. [...] É notória, em boa parte, a historia do homem de Neanderthal; era um ser humano, não era o homem sapiens, mas era muito similar ao homem sapiens, tinha certamente as nossas mesmas habilidades tecnológicas, de nossos antepassados; chegou ele até dez ou vinte mil anos atrás, e depois foi exterminado, provavelmente por nós, por nós homines sapientes. Isto testemunha que a aversão, este obscuro instinto que empurra os homens a reconhecer-se diferentes entre eles, tem raízes muito antigas. (LEVI,1997: 1305)

E continua ele seu discurso fazendo o percurso das raças humanas e do desenvolvimento destas, no decorrer dos milênios e dos séculos até chegar ao séc. XX, quando ocorreu a “maior e mais terrível das mistificações ideológicas ligadas ao mito da raça”, dizendo que a perseguição dos alemães à raça judia regia-se sobre bases até mais frágeis do que aquelas que ocasionaram a perseguição aos índios brasileiros infligida pelos portugueses.

[...] Ocorria realmente este tipo de fascinação que ao que parece Hitler exercia sobre o seu público, para poder contra-abonar uma besteira tão grande - porque se há uma raça “não-raça” aquela é exatamente a raça hebraica. Se lermos o que resta de documentação, a Bíblia, isto é, o Antigo Testamento, veremos que já então este povo que era chamado dos Hebreus no texto bíblico, era um povo dissipado, que não fazia outra coisa que assimilar outros povos, que se subdividir, que ocupar outras terras, que se misturar com outras populações, que mandar propagens por todos os lados.

Certamente era uma não-raça já naqueles tempos; porém, desde então se passaram três milênios e meio, e esta raça não-raça foi-se contaminando cada vez mais. [...] Com tudo isto, exatamente contra esta raça não-raça desencadeou-se a mais furiosa das campanhas raciais. (Ibidem, p. 1306)

Podemos observar no texto acima como Primo Levi, num mesmo período repete cinco vezes o pronome ‘que’ para iniciar frases: é esta uma das características mais marcantes de seu estilo, que ele usa - seja na prosa seja na poesia - para que suas palavras sejam mais incisivas, mais fortes e mais marcantes.

O séc. XX foi dito o mais violento dos séculos, e dizendo isto queremos nos referir ao holocausto dos judeus, uma das maiores tragédias humanas do homem moderno, que “traduz” os sentimentos piores que angustiaram o ser e o estar no mundo deste homem e que “traduz” a luta entre o Eu e o Outro, isto é, entre o Nazista e o Judeu.

Seria possível, porém, que aquela tragédia pudesse ser “traduzida”, que pudesse ser contada, e, então, interpretada, entendida?

Seria possível que pudessem ser “traduzidas” a vida e a morte nos campos de concentração nazistas?

Seria possível que o testemunho dos salvos pudesse “traduzir” a dor dos submersos?

Quem traduziu aquela tragédia humana foi Primo Levi, um jovem escritor italiano, de boa família burguesa e de cultura médio-alta. Era ele um químico que, por ser judeu, ficou prisioneiro no campo de concentração de Auschwitz, de onde saiu milagrosamente quando da chegada dos soldados russos.

Já no campo de concentração, ele detém sua atenção no próprio campo, como objeto de seus escritos, mais do que em seus companheiros.

De volta a Torino, sua cidade natal, faz um relato daquela experiência de forma completamente inusitada: em suas palavras não há nenhum sinal de retórica ou desejo de ser visto como vítima, nenhuma ênfase para contar os sofrimentos aos quais foi submetido, nenhuma tentativa de impressionar o leitor, levando-o à comoção e ao sentimentalismo. O que impressiona o leitor de Primo Levi é o tom objetivo de sua narrativa, parecendo-lhe que a maior vontade do escritor seja entender e não condenar.

Em toda sua obra ele relata o horror do Lager Nazista de Auschwitz em toda a sua dimensão, expondo convicções e formação de modo claro e preciso, tanto quanto poderia e saberia faze-lo um engenheiro químico, que pesa e repesa suas palavras para lhes dar o tom tranqüilo de um relato, relato esse escrito por alguém que não parece ter vivido aquelas abnormidades.

Ser químico forneceu a Primo Levi a arte de escrever: um escrever compacto, claro, preciso, com o gosto da palavra certa, apta e insubstituível.

O meu escrever - dissera mais tarde - tornou-se um construir lúcido; uma obra de químico que pesa e divide, mensura e julga com provas certas, procura os meios para responder aos porquês. Era exultante procurar e encontrar, talvez criar, a palavra certa, isto é, comensurada, breve e forte. Extrair as coisas da lembrança e descreve-las com o máximo rigor e o mínimo estorvo. (Ibidem, p. 734)

É a partir dos fatos ocorridos que se torna escritor, talvez o maior escritor do holocausto dos judeus. Existem milhões de testemunhos no mundo, mas poucos conseguiram traduzir o que vivenciaram, para que aquela experiência se tornasse um documento útil à comunidade.

Dizer que Primo Levi traduziu o horror de um dos momentos mais abomináveis deste século, num primeiro momento, poderia causar perplexidade, pois as palavras, sejam elas escritas ou faladas, não podem traduzir o horror, a humilhação e o desespero infligidos pelos algozes - os Eu - que deixaram profundas cicatrizes na alma de milhares de seres humanos, aliás, de Outros. Gostaríamos, porém, de insistir em dizer que Primo Levi traduziu um dos fatos do séc. XX que mais causa estupor e perplexidade, pois aqueles fatos ficaram conhecidos a partir de seus depoimentos.

E traduziu, no verdadeiro sentido da palavra, outros escritores, entre os quais Kafka. E ele, o escritor Primo Levi, foi (e está sendo) traduzido em várias línguas. Essa experiência foi extremamente importante para ele, pois lhe forneceu um conhecimento profundo sobre a arte de traduzir. E ele fala desta arte no texto Tradurre ed essere tradotti (Traduzir e ser traduzidos) em que se reporta à Gênese e como Deus puniu os que estavam construindo a Torre de Babel pela sua ambição, deixando surgir muitas línguas, motivo pelo qual tiveram não se entendiam mais entre eles e tiveram que parar a construção. Disso Levi conclui que as diferencias lingüísticas, desde os tempos mais remotos, são sentidas como uma maldição.

[...] Uma maldição elas ficaram, como o sabe quem teve que permanecer, ou pior, trabalhar, em um país do qual não conhecia a língua, ou quem teve que se martelar na cabeça uma língua estrangeira já na idade adulta, quando o misterioso material em que se gravam as memórias se faz mais refratário. Além disso, à nível mais o menos ciente, para muitos, quem fala uma outra língua é o estrangeiro por definição, o estranho, o ‘esquisito’, o diferente de mim, e o diferente é um inimigo potencial, ou pelo menos um bárbaro: isto é, etimologicamente, um balbuciante, um que não sabe falar, um quase-não-homem. Por este lado, o atrito lingüístico tende a se tornar atrito racial e político, outra nossa maldição.

Disso deveria significar que quem exercita a profissão de tradutor ou de interprete deveria ser honrado, em quanto faz com que se limitem os danos da maldição de Babel... [...] Todavia, visto que um escritor não nasce de uma profunda interação entre o talento criativo do autor e a língua em que ele se expressa, a cada tradução é conexa uma perda inevitável, comparável à de quem vai trocar moeda estrangeira. Esta diminuição é de tamanho variado, grande ou pequeno, conforme a habilidade do tradutor e da natureza do texto original...

[...] Vale aqui dizer umas palavras também a respeito do escritor que se encontra na posição de ser traduzido. [...] O autor que se encontra diante de uma pagina sua traduzida em uma língua que conhece, se sente, vez por vez, ou de uma vez, lisonjeado, traído, enobrecido, radiografado, castrado, aplainado, estuprado, adornado, morto. É raro que fique ele indiferente em relação ao tradutor, conhecido ou desconhecido, que colocou o dedo e o nariz em suas vísceras: lhe mandaria de bom grado, vez por vez, ou de uma vez, o seu coração devidamente empacotado, um cheque, uma coroa de loro ou os padrinhos. (Ibidem, p. 730)

Isto faz com que traduzir Primo Levi - apesar de agradável - seja bastante complicado, devido à exatidão que lhe advém de sua profissão de químico e que nós, simples leitores (ou tradutores e não químicos) não temos aquela gama de palavras que, como se fossem múltiplas e diferentes partículas, diferenciam, tão sutilmente, um vocábulo de outro. Levi, na maioria das vezes, usa um substantivo seguido de outros substantivos (como no texto acima), ou de adjetivos, ou de advérbios que completam, reforçam, explicam o primeiro substantivo até quando o autor sente que conseguiu dizer - com a exatidão do químico - o que ele queria e que não poderia ser dito somente com uma palavra.

Ser judeu levou Primo Levi a vivenciar a tragédia de seu povo e a fazer-se de testemunho, finalidade primordial de sua vida depois do Lager. Queria ele que o mundo inteiro soubesse dos campos de concentração nazistas, e queria que principalmente os jovens nascidos livres, que nada sabiam de racismo, de anti-semitismo, de massacre de inocentes, a quem se dirigia em suas visitas em escolas, entendessem que o Lager era o necessário epílogo de qualquer sistema de pensamento baseado no dogma da desigualdade. Queria que se entendesse o abismo ao qual inevitavelmente conduzem o ofuscar-se do raciocínio, o ódio pelo diferente, a intolerância, o fanatismo, o desprezo pelo Outro.

Isto está presente em toda sua obra, até mesmo quando seus escritos parecem inocentes contos. Consegue, porém, dize-lo melhor na poesia do que na prosa: nesta ele mantém o tom calmo da testemunha que relata o que havia presenciado (e vivido!), enquanto na poesia deixa que as palavras ‘traduzam’ todo o ressentimento do homem judeu para com o alemão. Ele mesmo dizia que a poesia parecia mais idônea do que a prosa para transmitir uma idéia ou uma mensagem.

Sua obra poética é o testemunho de um empenho total nos confrontos do homem, de sua total participação à vida, ao centro da crescente desumanização da civilização. E o uso lingüístico que faz de sues versos é de um realismo rigoroso, concreto, de humana piedade, e chega a colher com sua lírica - numa visão objetiva e realista - a realidade contemporânea.

Shemà: palavra hebraica da solene oração que atravessa há milênios a memória hebraica e quer dizer “Ouça Israel”, titulo da poesia acima, é a epígrafe de Se questo è un uomo, o livro do testemunho de Levi.

É uma poesia que toca o leitor porque é uma poesia que fala de historia, que fala da coragem da memória, pois ele, desde o primeiro verso, encontra-se imediatamente diante da apresentação das terrificantes condições dos sub-humanos que povoam o Lager.

Shemà é uma mensagem dirigida aos outros homens, em forma de admoestação ou de apólogo. E a novidade expressiva que nela se encontra não é mais no âmbito da palavra ou da frase, mas naquele do discurso, de um discurso revelador em seus acostamentos o em suas implicações...

Shemà Voi che vivete sicuri Nelle vostre tiepide case Voi che trovate tornando a sera Il cibo caldo e visi amici: Considerate se questo è un uomo Che lavora nel fango Che non conosce pace Che lotta per mezzo pane Che muore per un si o per un no. Considerate se questa è una donna Senza capelli e senza nome Senza più forza per ricordare Vuoti gli occhi e freddo il grembo Come una rana d’inverno Meditate che questo è stato Vi comando queste parole Scolpitele nel vostro cuore Stando in casa, andando per via Coricandovi, alzandovi: Ripetetele ai vostri figli O vi si sfaccia la casa La malattia vi impedisca I vostri nati torcano il viso da voi. 20 gennaio 1946 (LEVI, 1988: 525) Shemà Vós que viveis seguros Em vossas casas aquecidas Vós que encontrais, voltando para casa Comida quente e rostos amigos: Considerais se este é um homem Que trabalha na lama Que não conhece a paz Que luta por meio pão Que morre por um sim ou por um não. Considerais se esta é uma mulher Sem cabelos e sem nome Sem mais força para recordar Vazios os olhos e frias as entranhas Como uma rã no inverno Meditais, que isso aconteceu Comando-vos estas palavra. Esculpem-nas em vossos corações Estando em casa, caminhando pela rua Deitando-vos levantando-vos Repitam-nas a seus filhos. Ou se desmanche a vossa casa A doença vós empeça Os vossos filhos virem o rosto a vós. 20 de janeiro de 1946.

É endereçada a um coletivo ‘voi’, em que Levi quer incluir todos os homens, e faz com uma solenidade antiga (por isso achamos que não devíamos trocar o pronome ‘vós’ com vocês), onde os ‘voi’ se articulam no suceder-se de paralelismos e anáforas tornando extremamente difícil a tradução, porque o ‘vós’ (e suas variantes) não é hoje um pronome muito usado no Brasil, e também porque vem junto ao imperativo, e, dependendo da pessoa verbal, no italiano é acompanhado pelo pronome, de forma enclítica ou proclítica, fazendo com que o verbo se torne ainda mais duro.

A poesia que segue é a única que não faz parte da coletânea Ad ora incerta, encontra-se, ao invés, dentro do romance Se non ora, quando? (LEVI, 1997: 350) (interrogação que o autor repete - junto a outras interrogações - no final de cada estrofe da poesia), porque é, na realidade, a letra de uma música, aliás, da marcha que uma personagem toca e canta em baixo tom: diz ele ser esta uma sua musica e que, por não estar escrita em nenhum lugar, muda sempre um pouco, mas a letra havia sido escrita por um prisioneiro judeu, que cantava e tocava as canções que ele escrevia. Foi preso e revistado por um soldado alemão que encontrou em seu bolso uma pequeníssima flauta e, como este amava a música, lhe concedeu um último desejo. O judeu pediu meia hora de tempo para escrever uma canção; depois de meia hora o alemão pegou para ele a canção e matou o judeu. Depois disso ele foi morto pelos colegas do judeu que lhe tomaram a canção e que passaram a cantá-la quando se sentem tristes.

Reconhecei-nos? Somos as ovelhas do gueto,

Tosadas por mil anos, resignadas à ofensa.

Somos os alfaiates, os copistas e os cantores

Secos à sombra da Cruz.

Agora aprendemos os caminhos da floresta,

Aprendemos a disparar e atiramos direto.

Se não for eu para mim, quem será por mim?

Se não assim, como? E se não agora, quando?

Os nossos irmãos subiram ao céu

Pelos caminhos de Sobibór e de Treblinka,

Cavaram-se um tumulo ao ar livre

Somente poucos de nós sobrevivemos

Pela honra de nosso povo submerso

Pela vingança e testemunho

Se não for eu para mim, quem será por mim?

Se não assim, como? E se não agora, quando?

Somos filhos de Davi e os obstinados de Massada,

Cada um de nós leva no bolso a pedra

Que quebrou a testa de Golía.

Irmãos, vamos embora da Europa dos túmulos:

Subimos junto em direção à terra

Onde seremos homens entre os outros homens

Se não for eu para mim, quem será por mim?

Se não assim, como? E se não agora, quando?

O cantor diz que a poesia termina com as palavras: “Escrita por mim Martin Fontasch, que estou para ser morto. Sábado, 13 de junho de 1943”. E com o verso “Ouça Israel, o Senhor, nosso Deus, é único”.

Há nesta poesia (ou canção) o grito dos judeus que sofreram nos guetos e conseguiram sair de lá; são eles resignados à ofensa, uma ofensa que lhes é infligida há milênios. Homens simples, trabalhadores que, na ofensa, aprenderam a se defender, e aprenderam que só falando conseguiriam vingar os seus irmãos que haviam morrido nos campos de concentração, e cujo testemunho cabe aos poucos sobreviventes. Somente assim os filhos de David poderão se sentir, de novo, homens entre os homens: os Outros iguais aos Eu.

Também esta poesia fala de história, da história dos homens que fizeram aquela história e dos quais os judeus são os descendentes, dos homens que fizeram a história da Europa atual - uma Europa que se calou diante da tragédia dos judeus - de uma Europa cujos judeus que ali morreram gritam pela igualdade dos judeus que viveram, para que possam eles se sentir homens livres entre os homens livres.

Entender e traduzir a forma tranqüila que Primo Levi usa para transportar seu leitor naquele mundo que não tem nada de tranqüilo!

Entender e traduzir suas poesias cujos imperativos categóricos encabeçam muitos de seus versos e as interrogações parecem argüir os homens que nada fizeram para que aqueles horrores continuassem!

Entender e traduzir o rigor a concisão e os cânones de toda a obra de Primo Levi é, para nós, traduzir os horrores e as maravilhas do séc. XX!

BIBLIOGRAFIA

FERRERO, Ernesto. Primo Levi: un’Antologia della Critica. Torino: Einaudi, 1997.

LEVI, Primo. Se questo è un uomo. Torino: Einaudi, 1989.

------. Opere I e II. A cura di Marco Belpoliti. Torino: Einaudi, 1997.

------. Primo Levi. Conversazioni e interviste 1963-1987. A cura di Marco Belpoliti. Torino: Einaudi, 1997.

POLI, Gabriella & CALCAGNO Giorgio. et alli. La memoria come impegno e lotta. Milano: Gruppo Ugo Mursia, 1992.

SPADI, Milvia. Le parole di un uomo-Incontro con Primo Levi - Roma: Di Renzo, 1997.