A intertextualidade no anúncio publicitário

Daniela Balbino Silva (UERJ)
Márcia Nunes Duarte
(UERJ)

 

Introdução

Acreditamos que é possível ampliar as atividades que envolvem a leitura e produção textual, partindo de medidas básicas, como: a mudança de postura em relação à língua; a criação de situações concretas de interação social e a abordagem da língua e da linguagem voltada para o texto e para o discurso.

Nesse sentido, altera-se o enfoque, a metodologia e as estratégias do ensino de língua portuguesa, que trata não apenas das normas, mas abre espaço também para um trabalho integrado à leitura, à produção de textos e à produção de sentidos para a reflexão e para a pesquisa dos fatos lingüísticos do cotidiano.

Assim, acreditamos que o caminho para as novas atividades lingüísticas deva abordar a leitura e a produção textual sob a perspectiva da língua como instrumento de interação social, comprometida com a formação de sujeitos críticos e atuantes, sujeitos no processo de ensino/aprendizagem.

Nessa perspectiva, este trabalho visa, então, analisar a intertextualidade presente no texto publicitário da revista Vejaanúncio de uma agência de turismodatado de 20/08/1997 com o texto do livro Gênese do Antigo Testamento da Bíblia.

Partiremos do conceito de intertextualidade que consta no artigo de Vigner (2002: 31-8), para mostrar o papel da intertextualidade na construção do(s) sentido(s) do texto.

 

A intertextualidade no anúncio publicitário

... Pensemos que durante séculos a literatura francesa, para ficar nela, foi um sistema de troca intertextual, particularmente ativa com a literatura grega e latina e que, para o leitor de outrora que tivesse estudado Humanidades, ler tal poema de Ronsard era ler simultaneamente certa passagem de Virgílio, de Horácio ou de Píndaro. A intertextualidade definia, assim, uma espécie de horizonte de expectativa, sobre o qual o novo texto vinha inscrever-se e adquirir sentido. (VIGNER, 2002: 32-3.)

No estudo relativo à Lingüística Textual, aponta-se como uma das condições de textualidade a referência (explícita ou implícita) a outros textos orais, escritos, visuais, entre outros. Essediálogo1 entre textos chamamos de intertextualidade.

A intertextualidade pressupõe um universo histórico-social e cultural muito amplo e complexo, pois implica a identificação das referências; o conhecimento de mundo, que deve ser comum ao produtor e ao receptor de textos; o reconhecimento de remissões a obras, além de exigir do leitor a capacidade de compreender a função da presença daquela citação e/ou alusão a outros textos.

Observemos e comparemos os dois textos das páginas seguintes.

A intertextualidade é usada intencionalmente pelo produtor para que o seu texto atinja o resultado que ele tem em mente. É o caso do anúncio publicitário, extraído da revista Veja.

Comparando os dois textos, verificamos que o primeiro pertence ao livro do Gênesis, da Bíblia Sagrada; e o outro é um anúncio publicitário, de 20 de agosto de 1997.

O anúncio não é uma simples imitação do texto bíblico. Faz parte de um programa arquitetado pelo construtor do texto para obter efeitos de sentidos. O publicitário intencionalmente cita o texto do livro da Criação do Mundo, o Gênese; “dialoga” com o texto da Bíblia e ao fazê-lo, mantém alguns de seus elementos originais. Nessa construção do(s) sentido(s) do texto, são utilizadas as linguagens visual e verbal.

Comparando-os, percebemos:

Þ através das três fotografias menores:

a presença do ambiente perfeito, da atmosfera de tranqüilidade, da sensação de bem-estar, do lugar ideal, do “verdadeiro paraíso” fazendo alusão ao paraíso abordado na Sagrada Escritura.

Þ através da forma/conteúdo:

  

 

 a presença de capítulo (quarto), de versículos (um e dois), de notas de rodapé;

a presença do vocábuloCriador’ fazendo alusão ao Deus Criador do céu e da terra, da noite e do dia, da luz e das trevas.

a presença de uma narrativa, isto é, da história da Criação – do mundo.

O produtor do anúncio da revista Veja, voltada fundamentalmente para um público de classe média, espera que os leitores reconheçam os primeiros capítulos do livro Gênesis, o livro das origens que contém tradições da mais remota Antigüidade. Ao adaptar o texto, a intenção dele é ganhar a confiança do leitor e, conseqüentemente, a credibilidade e a aceitação das informações contidas naquele anúncio publicitário, pois a Bíblia normalmente é tomada como um livro universal de ensinamentos considerados como verdades absolutas, aceitas por diversas sociedades. Por exemplo, o início do texto publicitário: “No quarto dia, o Criador separou o dia da noite”. Não é necessáriopara o público-alvo da revista Vejamuito esforço para reconhecer que por detrás dessas palavras está a passagem “No princípio Deus criou o céu e a terra”, universalmente aceita por várias comunidades comoverdadeabsoluta.

A nota de rodapé do anúncio publicitário sugere e (in)forma que o “verdadeiroparaíso” fica na ilha de Aruba, lugar mais perfeito que aquele situado na Bíblia. Além disso, ao criar o texto, o publicitário usa o verbo no imperativo “Consulte a Bíblia e seu agente de viagens”, com o intuito de valorizar não o produto, mas também de vendê-lo. O vocábuloBíbliaaqui assume um sentido ambíguo, servindo para significar o roteiro de viagem, evidentemente, a Bíblia da agência de turismo que não teoriza, mas também realiza: o paraíso de Aruba é concreto, existe realmente como espaço físico e, o paraíso do livro Gênesis é teoria. Essa construção de sentido(s) confere autoridade ao discurso publicitário.

Com todo esse conjunto de elementos, o texto publicitário visa persuadir o leitor a consumir o produto oferecido. Para isso, apresenta argumentos, que estão diretamente relacionados com as vantagens ou razões para se consumir aquele produto. Perceba que, para estimular e convencer o leitor a viajar para Aruba, o jogo publicitário mostra fotos da ilha de Aruba, lugar lindo, maravilhoso, como sendo o “verdadeiro paraíso”, melhor e mais atraente do que aquele citado no Antigo Testamento. Para promover a ilha, utiliza recursos lingüísticos, visuais, ideológicos etc. Procurando chamar a atenção do leitor/consumidor, o publicitário apresenta as vantagens de caráter qualitativo: “Ele inventou a cama king-size, o aviso de Não perturbe e o serviço de quarto”.

Como se trata de um grupo social com bom nível de escolaridade, a agência publicitária expressou sua mensagem no nível formal-culto, usou o estrangeirismo king-size que confere uma qualidade internacional ao produto oferecido – não é qualquer cama – e utilizou essediálogocom a Bíblia, para, evidentemente, ganhar a confiança do leitor e, conseqüentemente, a aceitação das informações sobre Aruba e, assim, vender “o peixe2 e “multiplicá-lo”3.

 

Considerações finais

Ao longo da pesquisa percebeu-se que a intertextualidade pressupõe um universo histórico-social e cultural muito amplo, pois, além de exigir do leitor a capacidade de compreender a função da presença de uma citação e/ou alusão a outros textos, pressupõe a identificação das referências, o conhecimento de mundo e o reconhecimento de remissões a obras.

Nessa perspectiva da língua como instrumento de interação social, ficou evidente, então, o importante papel da intertextualidade para a concretização dos objetivos e intenções do produtor do texto, e para o reconhecimento do leitor desse fator de textualidade, na construção do(s) sentido(s) do texto.


 

Referências Bibliográficas

GALVES, C. (org.). O texto: leitura & escrita. Campinas: Pontes, 2002.

KLEIMAN, Â. Texto & leitor: aspectos cognitivos da leitura. Campinas: Pontes, 1995.

KOCH, I. V. A inter-ação pela linguagem. São Paulo: Contexto, 2003.

Lew, L. In: Revista Veja. Abril, de 20/08/1997.

Móises. Gênese. Cap.1,19-31. Bíblia Sagrada. São Paulo: Ave-Maria, 1998.

PLATÃO, F. & FIORIN, J. L. Lições de texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 1996.

TRAVAGLIA, L. C. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática no primeiro e segundo graus. São Paulo: Cortez, 1996.

VIGNER, G. “Intertextualidade, norma e legibilidade”. In: GALVES, Charlotte et alii (org.) O texto: leitura & escrita. 3ª ed. Campinas: Pontes, 2002.


 


 

1 Referimo-nos, particularmente, ao artigo de Vigner, “Intertextualidade, Norma e Legibilidade”. In Charlotte Galves. (2002). O texto: leitura e escrita (Campinas: Pontes), ler-se-á a passagem do “fenômeno evidente na literatura”, espaço do que Julia Kristeva chama de “diálogo textual”, p. 32.

2 Referimo-nos a uma passagem largamente utilizada pelos usuários da língua, principalmente os vendedores: “Preciso vender meu peixe”. O vocábulopeixe” servindo para designar qualquer produto oferecido por uma pessoa.

3 A expressãomultiplicação” foi usada pelos evangelistas Lucas, João, Marcos e Mateus, no Novo Testamento, na Bíblia, quando se referem ao milagre da multiplicação dos pães e dos peixes.