O Itinerário da Construção Textual Naveana

Edina Regina P. Panichi (UEL)

Os documentos de processo de Beira-Mar/memórias 4, de Pedro Nava, assim como os de outros livros de sua autoria, são a prova cabal de que o ato de escrever está sujeito não só ao trabalho da imaginação, mas é resultado de um processo de pesquisa e mineração por parte do autor. Um texto escrito depende, em muitos casos, do manejo de materiais diversos. É portanto um conjunto de modos de pensar e construir formas e recursos para sua elaboração. A obra de Pedro Nava ilustra soluções atingidas por esse autor na combinação de recursos como parte de um processo que engloba a amplitude das visões de signo e estrutura do pensamento. O contato com o processo criativo do autor revela o que o texto final não consegue transmitir. Ao elaborar suas memórias, Pedro Nava soube combinar recursos que ele mesmo produzia com a finalidade de dar suporte à redação de suas páginas. A construção de um texto escrito depende da capacidade de construir formas e levá-las a sucessivas transformações que são de natureza interlingual e intersemiótica. Dentre seus vários sentidos, tradução intersemiótica significa transmutação de formas. O que se está chamando de formas são os registros de idéias ou percepções que se deseja expressar. Quando se admite que materiais de qualquer natureza podem realizar o papel de servir de suporte para a transmutação de formas, ganha-se uma condição operativa e instrumental, revelada pelo autor na elaboração de sua obra.

Construir espaços para anotações é um modo de organizar-se para codificar os elementos a serem transformados em componentes do discurso. Alguns autores utilizam como espaço o formato de fichas, outros utilizam diários ou cadernos de anotação. Tal etapa de construção de registros permite o estabelecimento de conexões entre o que está no mundo e o que está na mente e é transportado de volta para o mundo. Um texto não se constrói direto como texto. Na realidade é uma composição de formas que os autores conseguem converter em texto. Essas formas preliminares são necessárias e devem ser tornadas suficientes para organizar e registrar a coleta de material. Assim, o material coletado, organizado e decidido será apresentado em formas que se transmutarão.

É bem conhecida a capacidade de Pedro Nava para o desenho. Ao descrever uma pessoa, geralmente recorria à caricatura como suporte visual. Caricaturava os seus personagens, geralmente carregando nas suas características mais marcantes, para depois descrevê-los. Mas tais características eram, primeiramente, registradas em anotações como uma forma de não perder o fluxo da lembrança que às vezes ocorre de forma involuntária e fugidia. É o que se pode observar, numa ficha que recebeu o número 12, na qual o autor observa um detalhe importante que caracterizava o seu professor de Clínica Propedêutica Médica, Marcelo Libânio:

Marcelo Libânio de frente

era a um tempo frente

e perfil como os Picassos

A partir da anotação foi possível compor o desenho que ilustra com clareza o conteúdo da ficha. É desse modo que se pode efetuar a transposição de um código para outro código. Como não são utilizadas no mesmo momento em que são concebidas, as formas precisam ser registradas. Há, assim, uma memória preservada que um dia se transforma em um desenho. Tal fato vai ao encontro do que afirma Duarte Jr (1988:31): “A experiência que ocorre a nível do ‘vivido’, é simbolizada e armazenada pelo homem por meio da linguagem”. Observa-se, também, um aproveitamento por parte do autor do seu conhecimento acumulado, ou seja, de seu repertório no campo das artes plásticas. O que ocorreu foi a transferência, via experiência vivida, de um código para outro: de uma imagem conhecida de Picasso para a página de um livro de memórias.

O texto resultante é o que segue:

Fisicamente o Marcelo era magro, de meia altura, olhos muito grandes à flor da face e tinha um nariz posto de lado como o dos boxeurs - o que inseria sempre um perfil no seu rosto olhado de frente - como acontece em certas figuras das fases finais de Picasso. (B.M., p. 203)

Por vezes as anotações servem de apoio para o reencontro com significados de situações vividas e para a construção de linguagens que mais adiante produzirão suficiente inteligibilidade para o manejo de recursos lingüísticos. A descoberta de uma frase, anotada pelo autor, foi o ponto de partida para a sua confissão a respeito da dificuldade em se escrever memórias. A ficha, sem numeração, trazia as seguintes observações:

“In forgetting, they were trying to remember” - diz William Peter Blatty em The Exorcist. É uma bela frase mas invertendo-a - Lembrando estamos esquecendo - é que lhe daríamos configuração proustiana e toda a carga temporária (?) Explicaríamos a memorialística - esse ajuste de contas com nosso passado só morto mesmo, depois de escrito.

Caricatura esboçada pelo autor como recurso de memória

A inversão da frase recupera um conjunto de imagens, produzindo uma conjugação entre linguagem e pensamento. O procedimento de armazenar dados, cultivado pelo autor, comprova a eficácia do registro como recurso de memória e sobretudo como mapeamento prévio a um movimento de escrita. No texto impresso, considerado acabado, não temos acesso ao processo mental que os registros tornam visíveis, mas estes podem ser considerados a forma física da manifestação desse processo. Sem a atitude de observação, muitas idéias que no momento em que apareceram não apresentavam grande potencial de emprego, num momento posterior se mostram extremamente oportunas, pois a leitura de uma determinada frase, por exemplo, pode detonar a ativação de todos os sentidos que lhe são associados, inclusive o sentido inverso, como se pode perceber na passagem:

É preciso continuar fiéis a nossa verdade mesmo quando ela aborrece e desagrada porque é assim que ela nos ajuda, paradoxalmente, a praticar ato de amor com os inimigos - fazendo a terapêutica cirúrgica de seu esquecimento. Extirpando-os. Amputando-os. Erradicando-os. Explico o que possa parecer obscuro no meu pensamento invertendo a fórmula de William Peter Blatty no seu best-seller. “In forgetting they were trying to remember.” Não. O que convém dizer é que lembrando estamos provocando o esquecimento. Depois de escrito, o que foi ressuscitado estará, então, definitivamente, morto. Tenho experimentado isto com a evocação de personagens que me eram odiosos e que depois de fixados por mim no físico que me desagradava, no procedimento que me revoltou - como que falecem na minha lembrança e até adquirem, quando reaparecem, um aspecto indiferente e às vezes quase tolerável. Um grande bem me chega desses ajustes de contas. (B.M., p. 199)

Ao analisar os manuscritos de Pedro Nava, percebemos muitas vezes a sua intensa busca pela sonoridade e pelo ritmo de elementos mais adequados para o texto que está escrevendo, além dos efeitos surpreendentes que consegue obter graças a associações inéditas e ao mesmo tempo plausíveis. Tais procedimentos são alcançados pela ativação simultânea no léxico mental do escritor de vários campos nocionais. Dada sua proficiência e sua sensibilidade lingüística, ao escrever ou pensar em uma palavra, vislumbra muitas outras, relacionadas à primeira de modo semântico, ortográfico, fonológico, ou por elos estabelecidos em outras leituras, em outras escrituras. Quando quer se referir ao modo de falar do amigo Mário de Andrade, Nava adentra uma rede de impressões sensoriais que busca fundamentar associações de sentido, como se pode comprovar nas seguintes anotações contidas numa ficha sem numeração:

A voz boa e macia do Mario de Andrade, suas palavras babadas que as sílabas saíam separadas como cubos, poliedros cujos ângulos fossem emoussés - como pedra de gelo que se arredonda dentro dagua derretendo. O Mario derrete as palavras sobretudo nos seus ch como Warchawski - desenvolver isto. A construção oral tinha modulações de frase musical. Intérprete de prosa e verso. Dizedor admirável de conversa.

O texto publicado assumiu o seguinte formato:

E como é? que falava esse granganzá do Mário. Com a melhor voz e o modo mais macio. Como que lubrificava as palavras babando as sílabas que saíam no seu sotaque provinciano, separadas feito cubos de gelo cujos ângulos e arestas fossem émoussés por derreter. Suas sílabas e palavras se arredondavam e escorregavam sobretudo no seus CHH. Marcha. Marchar. Warchavchik. Chique. Meschick. E tinha a propriedade de falar se rindo - e ria, comele ria! Riaté sem razão. E era nessa mesma fala de paulistano sem se impostar nem se importar que ele era um intérprete admirável de poesia e prosa. Lembro de tê-lo visto e ouvido ler coisas suas em casa de Rodrigo. Sua construção oral tinha, então, modulações de frase musical. E não era que declamasse, Deus me livre! O que ele era é um dizedor fabuloso até de frase de conversa. (B.M., p. 192)

Como se pode perceber, o autor corrobora as suas afirmações lançando mão de um verso da conhecida poesia de Mário de Andrade, A Serra do Rola-Moça, ativando, assim, a idéia da alegria de viver do poeta e conduzindo o leitor a visualizar essa sua característica nos anos 1920.

Percebemos, também, na escrita de Pedro Nava, uma atitude carnavalesca que lhe permite englobar pontos de vista ao mesmo tempo particular e universais. A associação de elementos heterogêneos e a conseqüente aproximação de elementos distantes estabelecem o riso e a visão carnavalesca do mundo, que estão na base do grotesco, em determinadas situações. As formas baseadas nessa linguagem carnavalesca resultam da busca do novo, da mutação, da renovação, da alternância, enfim, da liberdade de expressão. A visão carnavalesca exprime uma oposição a toda idéia de acabamento e perfeição, seriedade e rigidez, baseada na liberdade de relações que, segundo Bakhtin (1999: 30),

ilumina a ousadia da invenção, permite associar elementos heterogêneos, aproxima o que está distante, ajuda a liberar-se do ponto de vista dominante sobre o mundo, de toda as convenções de elementos banais e todas habituais, comumente admitidos, permite olhar o universo com novos olhos, compreender até que ponto é relativo tudo o que existe, e portanto permite compreender a possibilidade de uma ordem diferente do mundo.

Ao referir-se à Academia Brasileira de Letras, instituição pela qual não cultivava grande simpatia, Pedro Nava elenca uma série de atitudes que, segundo ele, não condizem com a respeitável casa. Uma ficha que recebeu o número 282 registra os seguintes dados:

Confusões da Academia

Poetas com poetastros

Dramaturgos com dramalhurgos

Escritores com escrivães, escrivãos,

escrivões e escrivaninhas

Jornalista com jornaleiros

Cronistas com crônicos

O vivo poeta Alho e o pasmado

expoente Bogalho

Ministro Machado de Assis com o escritor

Ataulfo de Paiva.

Presidente João Ribeiro e o humanista

Getulio Vargas

General Araripe Junior e o crítico

Dantas Barreto

O Reverendo Bispo Olavo Bilac e o poeta

Silvério Gomes dos Guimarães Pimenta

O Jornalista Euclides da Cunha e o sociólogo

Felix Pacheco (o outro nome)

O texto resultante é o que segue:

Esta Guarda Nacional intermitente da nossa literatura me faz lembrar grave senhora de Juiz de Fora, cuja história conheço por minha mãe. Era uma flor de virtudes, um modelo de qualidades excelsas enquanto sóbria. Não havia pessoa mais stiff e dignified enquanto não se dava à bebida. Porque aí mudava a personalidade e ia toda borrada para a rua Halfeld onde confundia o Doutor Lindolfo com a Cecinha Valadares, o Albino Esteves com o Periquito, o Pinto de Moura com a Dona Otília Braga, o próprio Belmiro com minha avó materna. Trocava os assuntos, dizia a uns as verdades dos outros, era um verdadeiro tendepá. Feito a Academia que quando está no juízo perfeito é a grande casa de Nabuco, Veríssimo, Silva Ramos, Raimundo Correia, Coelho Neto, Alberto de Oliveira, Olavo Bilac. Já nos seus dias de porre é o que se sabe - dana-se de confundir o agudo crítico Alho com o esperto ensaísta Bugalho, Félix (Pacheco) Ferreira com Félix (Ferreira) Pacheco, o professor Jaceguai com o almirante Austregésilo, o romancista Getúlio Vargas com o ditador Machado de Assis, o polígrafo Ataulfo de Paiva com o ministro João Ribeiro, o bispo Miguel Osório com o fisiologista Silvério Pimenta, fica furiosa com os literatos genuínos, dá-se toda à medicina, ao governo, às altas patentes e explica que os medalhões também são filhos de Apolo. (B.M., p. 187)

O que pretendemos focalizar, aqui, é a simultaneidade e a importância de todos os tipos de procedimentos e estratégias usados pelo autor para a construção de sua obra. Quanto maior e melhor possa ser o conjunto de signos para expressar alguma coisa, haverá sempre uma configuração mais ampla, exigindo de quem escreve abertura de espírito. Os recursos instrumentais vão dando lugar a uma apropriação da realidade para modificá-la. Quando se consegue encontrar o instrumento de apreensão do objeto do conhecimento, organiza-se um conjunto de relações com as quais é possível abandonar o âmbito estritamente individual e assim ganhar a dimensão social e o texto publicado representa o atingimento dessa dimensão, como comprovam os livros de Pedro Nava.

BIBLIOGRAFIA

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. (1999). A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 4ª ed. São Paulo: Hucitec; Brasília: Universidade de Brasília, 1999.

DUARTE, Jr., João Francisco. Fundamentos estéticos da educação. Campinas: Papiros, 1988.

NAVA, Pedro. Beira-Mar: memórias 4. 4ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.