OBJETIVIDADE JORNALÍSTICA: EIS A QUESTÃO!

Lídia Lopes Ozório (UNIPAC e UNINCOR)

Então fabricamos acontecimentos e histórias para podermos narrá-los, uns aos outros, convencendo-nos reciprocamente de que existimos. (SANT’ANNA, 1989: 67)

A objetividade no contexto jornalístico atual tem sido foco de algumas discussões que nos remetem a uma pergunta: - É possível a objetividade jornalística?

Para fazermos algumas considerações a respeito dessa questão, partiremos de alguns conceitos da Semiótica e, onde conseqüentemente, esta análise será apoiada pela Lingüística.

Segundo Barthes (1993: 12) “[...] qualquer sistema semiológico repassa-se da linguagem.”

A linguagem é um espaço de construção/constituição dos sujeitos, da subjetividade, e o discurso é a linguagem em funcionamento, uma prática social contextualizada.

Segundo Orlandi (2002: 15) “[...] o discurso é a palavra em movimento, prática da linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem falando.”

A imprensa jornalística é feita de diversos discursos; o texto jornalístico abrange vários gêneros textuais. E todo texto é polifônico e dialógico, promovendo interdiscursividade através da heterogeneidade dos discursos, dialogando com o leitor, buscando agradá-lo, e ao mesmo tempo informá-lo, satisfazendo suas necessidades, indo ao encontro de suas expectativas, criando um “pacto com o público”, imprescindível para que a imprensa midiática se mantenha.

Orlandi coloca que a Análise do Discurso é:

Problematizar as maneiras de ler, levar o sujeito falante ou o leitor a se colocarem questões sobre o que produzem e o que ouvem nas diferentes manifestações da linguagem. Perceber que não podemos não estar sujeitos à linguagem, a seus equívocos, sua opacidade. Saber que não há neutralidade nem mesmo nos usos mais aparentemente cotidianos dos signos. (ORLANDI, 2002: 9)

Retornamos, então, a nossa pergunta inicial quanto à objetividade jornalística tão defendida por aqueles que a constituem. Vista como o principal traço do jornalismo desde os anos de 1950, ou pelo menos como meta a ser alcançada, a objetividade chegou à década de 90 com seu prestígio fortemente abalado, tanto na academia como na prática jornalística.

Negar a interferência promovida por seu papel de mediador tem sido um elemento de identidade decisivo para os jornais, ocultando interesses empresariais e políticos.

Ao longo do século XX, o jornalismo em nosso país fundamentou sua divisão entre gêneros informativos e opinativos. Sendo que essa classificação levou ao pressuposto de que algumas matérias jornalísticas expressavam a opinião dos outros enquanto outras, isentas e objetivas, apenas retratavam a realidade. Surgia um novo projeto para o jornalismo brasileiro, e Chrystus afirma:

É interessante notar que, ao mesmo tempo em que se manifesta a confiança no projeto de um relato mais isento, nesse momento nascente da objetividade, já se reconhece que vários depoimentos sobre um mesmo fato são lembrados e descritos de maneiras diversas. Esta sombra, denunciando a impossibilidade do projeto, irá persistir até nossos dias, toldando os esforços do homem de se aproximar da realidade de forma totalmente objetiva. O que não impedirá de marcar a tentativa sempre falhada da atividade jornalística moderna. (CHRYSTUS, 2003: 1)

Apesar dos manuais de redação continuarem a advogar a isenção como condição de legitimidade do jornalismo, difundiu-se o reconhecimento de que as notícias e reportagens são produzidas por meio da seleção e classificação dos fatos a partir de categorias intrinsicamente ideológicas, normalmente não explicitadas e freqüentemente naturalizadas.

O jornal, enquanto empresa, inserido numa sociedade capitalista, numa disputa constante com outras publicações pela conquista dos leitores, lança mão de um conjunto de procedimentos denominado noticiabilidade, sendo ela que vai promover um corte arbitrário no fluxo do mundo cotidiano, oferecendo uma fatia de realidade aos leitores. Essa noticiabilidade, que irá selecionar os acontecimentos considerados interessantes, significativos e relevantes que mereçam ser transformados em notícias já está carregado de uma ideologia constituída por aqueles grupos que detêm o controle da imprensa jornalística. Muitas vezes, o que é selecionado nem sempre é o mais importante e sim o mais interessante, com maior potencial de entretenimento. Essa questão nos leva a outro pilar do jornalismo, que é a credibilidade, dentre as várias estratégias que a fundamentam, está a construção de uma suposta neutralidade, de uma verossimilhança entre a narração do fato e o representado, e a reafirmação sempre renovada da imparcialidade do narrador, distante em relação aos interesses envolvidos. O jornalismo se encontra sempre dividido entre a função de informar sobriamente os fatos e a utilização dos recursos expressivos para manter a fugidia atenção do leitor, aparentemente sempre tentado a desviar os olhos da página.

Muitos autores reconhecem a centralidade da importância da narração no jornalismo, não bastando apenas relatar os fatos e sua importância, é preciso incorporá-los numa trama, à semelhança dos dados históricos, visto que cada vez mais o jornalismo foi abrigando no interior do próprio texto os recursos expressivos tomados emprestados à literatura. Isto não quer dizer que as informações, os dados reais não sejam importantes, mas que a forma de narrá-las é tão importante quanto eles.

Dessa forma a pretensão do jornalismo em alcançar a verdade de forma objetiva reduz-se a uma verdade retoricamente produzida. Uma retórica que está colocada a serviço do exercício da função testemunhal, uma descrição factual daquilo que um observador viu ou ouviu e passa adiante.

Já dizia Nietzsche (1988: 155) “Não existe fato em si. É sempre preciso começar por introduzir um sentido para que haja um fato.”

É importante citar outro fator que dificulta a objetividade, que é a enunciação. Conforme Barthes,

Toda enunciação supõe o seu próprio sujeito, quer esse sujeito se exprima de maneira aparentemente direta, dizendo eu, ou indireta, designando-se como ele, ou nula, recorrendo a formulações impessoais: trata-se de engodos puramente gramaticais; variando apenas o modo como o sujeito se constitui no discurso, ou seja, dá-se teatral fantasticamente, aos outros; todos designam formas do imaginário. (BARTHES, 1988: 27)

O principal do jornalismo é a idéia de alguém narrando algo para outro podendo este “alguém” ser algumas milhares de pessoas ou mesmo milhões. Mais ainda: é sua conexão com o referente, com a realidade, que o limita e que também lhe dá, em certos momentos, sua grandeza. É um “estar lá”, tal como a antropologia, recolhendo dados e informações em campo, mas depois retornando a outro lugar para redigir, narrar o que viu - e é na força desta narração que reside a sua força, não meramente nos dados recolhidos. Segundo Benjamin, “... a narrativa não deve estar interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como uma informação ou um relatório. A narrativa é narrativa porque ela mergulha a coisa na vida do narrador para depois retirá-la dele.” (SANTIAGO, 1987: 39)

Se os homens narram desde sempre as modulações dessa narração contudo, variaram através dos tempos. O jornalismo, uma dessas modulações, adquiriu sua feição atual com o advento da empresa industrial e seu “pacto de leitura” com um público amplo. A imprensa escrita, como a conhecemos, é o resultado de novas necessidades que emergiram possibilitadas pelo avanço tecnológico da sociedade moderna.

A narrativa jornalística procura manter fidelidade à sua herança positivista e sua confiança no resgate da experiência pela narração. Narração esta com as mesmas características do romance realista do século XVIII: linguagem simplificada, construção detalhista do relato, gestos e padrão de vida das personagens, utilização do ponto de vista em terceira pessoa e registro completo dos diálogos, que serviriam como uma espécie de maquiagem para aproximar a narrativa da realidade. E, apesar do estabelecimento do fazer jornalístico assemelhado ao fazer científico, surge a idéia do jornalista como contador de histórias.

A respeito desse paralelo entre ciência e o jornalismo, Barthes coloca de forma clara o papel do discurso:

A objetividade e o rigor, atributos do cientista, com que estão ainda a nos azucrinar, são qualidades essencialmente preparatórias, necessárias no momento do trabalho e, em função disso, não há razão alguma para suspeitá-las ou abandoná-las, mas essas qualidades não podem ser transferidas para o discurso, senão por uma espécie de passe de mágica, um procedimento puramente metomínico, que confunde a precaução e o seu efeito discursivo. (BARTHES, 1988: 27)

A procura por uma objetividade narrativa já data de muito tempo na história, demonstrada nos discursos de vários grandes historiadores que Barthes analisou, como Herótodo, Maquiavel e outros. Segundo Barthes:

A nível de discurso, a objetividade - ou carência dos signos do enunciante - aparece assim como uma forma particular de imaginário, o produto do que se poderia chamar de ilusão referencial, visto que o historiador pretende deixar o referente falar por si só. Essa ilusão não é exclusiva do discurso histórico: quantos romancistas - na época realista - imaginam ser “objetivos” porque suprimem no discurso os signos do eu! (BARTHES, 1988: 149)

A questão da enunciação é um fator decisivo no processo narrativo, visto que o sujeito da enunciação é responsável pelo sentido, nenhuma escrita é inocente, gerando assim uma não-objetividade dos textos jornalísticos e seus diversos gêneros.

Por que será que é tão difícil a objetividade?

Há de supor que o entrave maior a essa almejada imparcialidade e neutralidade é a essência humana, de sujeitos produto e produtores sócio-históricos e ideologicamente situados nos diversos discursos que permeiam nossa vida.

Acreditamos que essa discussão sobre a objetividade jornalística ainda se estenda por mais tempo entre os estudiosos do campo do jornalismo. Muitos já se encarregaram de demonstrar que boa parte das pretensões da objetividade não passava de ideologia ou, na melhor das hipóteses, de reflexo de um modelo epistemológico superado.

Esperamos que eles encontrem uma via de ação da imprensa jornalística que resgate principalmente as questões éticas tão essenciais para nossa dignidade humana.

(...) começo a entender que tudo aquilo que se escreve ou fala, mesmo de fatos ou pessoas reais, sempre se torna mítico, escorregadio e arbitrário. É impossível abranger toda a complexidade do homem. (SANT’ANNA, 1991: 205)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BARTHES, R. O rumor da língua. São Paulo: Braziliense, 1988.

------. Elementos de Semiologia. São Paulo: Cultrix, 1993.

CHRYSTUS, M. Jornal O Estado de Minas. Caderno Pensar. Um negócio peculiar, 11/10/2003.

LEMOS, C. Em tese - Artigo Jornalismo e ficção. Belo Horizonte: Pós-lit, FALE/UFMG, 1998.

ORLANDI, P. E. Análise do Discurso. Campinas: Pontes, 2002.

SANT’ANNA, Sérgio. A senhorita Simpson. São Paulo: Companhia das Letras, 1989

------. Notas de Manfredo Rangel, repórter (a respeito de Kraner). 2ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991.