A fantástica Navigatio sancti Brendani

Airto Ceolin Montagner (UERJ)

 

Para nós, ele é conhecido como São Brandão. Na realidade, Brendan ou Brandan foi um monge irlandês nascido por volta de 485. Viveu 93 anos. De família nobre, recebeu educação de elite. Desde a infância, os clérigos irlandeses ensinam-lhe as letraslatim, grego, literatura – e as ciências: matemática, astronomia, medicina. Como os demais jovens do seu país, adestrou-se nas artes da caça e da pesca.

Decidiu tornar-se monge, ingressando no mosteiro de Lancavar, no País de Galles. Ali, torna-se abade, substituindo Cadoc, seu superior. Por volta de 561, funda o mosteiro de Clonfert, no condado de Galway.

Brendan, todavia, torna-se notável pelas viagens marítimas que empreendeu. Naquele tempo, numerosos monges, praticantes do ascetismo e das mortificações, tinham o hábito de se instalar em qualquer ilhota deserta, mar adentro. Um desses era Mernoc. Por volta de 520, Brendan empreende sua primeira grande viagem, dizem, à procura de Mernoc. Chega às ilhas Feroe e à Islândia, terra de geleiras e vulcões.

Tempos depois, acompanhado de quatorze monges, realiza outras viagens para o sul e para o oeste, a partir da Irlanda. Na direção sul, teria descoberto as Ilhas Canárias, além do Arquipélago dos Açores, apontado em vários mapas medievais comoilhas afortunadas de São Brandão”.

Navegando para o oeste, teria chegado à Terra Nova e às Antilhas. Desta maneira, teria descoberto a América dez séculos antes de Cristóvão Colombo.

A realidade dessas viagens confunde-se com o imaginário dos viajantes e com o folclore irlandês. Para muitos, Brendan estava à busca da Ilha Prometida, ou seja, a Ilha do Paraíso, que, segundo a lenda, ficava em algum lugar do Oceano Atlântico. Assim, Brendan partiu da Irlanda em 565 e teria desembarcado numa ilha em alto mar, batizando-a de Hy Brazil, que significaria Terra Abençoada ou Afortunada. A partir de então, a idéia que se tinha do “Brazil” era a de uma ilha que povoava a imaginação medieval com as coisas exóticas que ali teriam sido encontradas. Deste modo, a palavra “brazil” teria origem gaélica e que, segundo Carl Selmer, assume diversas formas nas fontes cartográficas editadas antes de mil e quinhentos: Brazil, Brasil, Bersil, Brazir, O’Brazil, O’Brassil. O sentido gaélico da palavra é ‘afortunadoou, ainda, ‘encantador’. O nome não estava, pois, associado à madeira cor de brasa, o pau-brasil. Tal associação é bem mais tardia, uma vez que a palavra é encontrada, segundo texto de responsabilidade de Rosane Volpato (www.caradobrasil. com.br/artpert/lendas/lendasbrasil.htm), num tratado comercial assinado em 1193 entre o duque de Carrara, na Itália, e um seu vizinho, onde se inclui a expressãograna de Brasil”, grãos de Brasil. Em outros documentos a palavra brasil refere-se ou a um tipo de madeira, ou a algo que se carrega em caixas de madeira.

A Navigatio Sancti Brendani teve, entre os séculos X e XV, extraordinária divulgação. Segundo Pierre Bouet (1986: 16), constam mais de cento e vinte manuscritos dessa obra.

O texto mais antigo da Navigatio data do século IX. Foi escrito por um monge irlandês, de nome desconhecido, refugiado no monastério de Lotharingie, situado entre o Mosa e o Reno. Outros manuscritos antigos do século X foram copiados por abades germânicos em Trèves, Ratisbonne e Tegernsee. Seguiram-se múltiplas adaptações e traduções em línguas romances. Dessas, a mais célebre e detalhista é a Voyage de Saint Brendan, levada a cabo por um clérigo de nome Benedeit em 1120, em dialeto anglo-normando.

Provavelmente, o texto princeps do século IX retoma narrativas escritas e orais anteriores, integrando elementos tradicionais do folclore dos viajantes do mar. Algumas pesquisas revelam que Brendan, na realidade, realizara duas viagens. Uma com duração de cinco anos, outra de três. A narrativa da Navigatio, porém, forma apenas uma, repleta de episódios mais ou menos fantásticos. Nisso, pode-se traçar um paralelo com a literatura oral irlandesa que oferece numerosas narrativas lendárias, como, por exemplo, as viagens de Bran e as de Maeldun ou Mael Duin, cujos resumos a seguir.

Bran, filho de Febal, é o herói do mito de viagem mais famoso da Irlanda. Sua grande navegação começou quando ele encontrou um ramo de prata coberto por flores brancas. Reuniu a família, mostrou-lhes o ramo, e, de repente, ficou abismado ante o aparecimento de uma linda mulher. Com voz suave, ela cantou para todos as maravilhas que havia para além do mar, em ilhas grandiosas, maiores que a Irlanda. Eram ilhas habitadas por belas mulheres que não conheciam nem a dor, nem a tristeza, nem a morte. , todos eram felizes. Quando a mulher bela se calou, desapareceu misteriosamente, levando consigo o ramo de prata.

No dia seguinte, Bran reuniu vinte e sete parentes e iniciou sua navegação. O primeiro ser que encontraram foi Manannan Mac Lir, deus do mar, que conduzia seu carro sobre as ondas. Apressou-se em informar aos heróis irlandeses sobre as maravilhas que os esperavam. Foi então que o mar apresentou-se como uma planície de flores e um pomar repleto de árvores frutíferas. O barco alcançou a Ilha da Alegria, onde a tripulação riu tanto que todos mal podiam manter-se de . Navegaram, a seguir, para a Ilha das Mulheres. Uma mulher belíssima apresentou-se como chefe, convidando-os para o desembarque. Receosos, os nautas recusaram-se a desembarcar, mas a bela chefe lançou para Bran um novelo cuja linha grudou-se em seus braços e o arrastou para terra, no que foi acompanhado pelos companheiros. Encontraram leitos macios, comidas deliciosas e uma agradável vida. Pareceu-lhes terem ficado ali pouco tempo, todavia muitos anos se passaram sem que eles tivessem percebido. Um dos marinheiros, no entanto, sentiu saudades da família e pediu a Bran para regressarem. A rainha das mulheres adverte Bran de que eles não deveriam mais pôr os pés em terra.

Tendo regressado, Bran deu-se conta de que ninguém o reconhecia, mas tinham ouvido falar dele como uma figura lendária que havia embarcado há muitos séculos. Deu-se conta o herói do aviso que lhe fora dado para não pisarem em terra. Foi então que se tornou um monte de cinzas, visto estar mortomuitos séculos.

A outra viagem é a de Maeldun. Meldun era filho de uma freira estuprada por um príncipe por ocasião de uma invasão bélica na Irlanda. Quando ficou adulto, sabedor da sua linhagem, partiu em busca do pai, mas logo fica sabendo que ele tinha sido morto. Deseja então vingar a morte do pai. Aconselhado por um sacerdote druida sobre a época mais propícia par navegar, lança-se ao mar numa embarcação de peles de animais. Acompanhado de dezessete marinheiros, parte em longa e estranha viagem de vingança.

Maeldun e seus marinheiros chegaram primeiro à ilha dos homicidas, mas nenhum deles era o assassino do pai. Navegaram até outra ilha, habitada por formigas gigantes, do tamanho de um cavalo, que devoraram alguns marujos e o barco. Na ilha seguinte, onde havia grandes pássaros, foram ajudados por eles na provisão dos alimentos para a viagem. Aportaram em duas ilhas onde havia cavalos monstruosos e perigosos, donde fugiram para a Ilha da Casa do Salmão. Numa casa deserta, encontraram a mesa posta e camas confortáveis à espera. Um engenho jogava periodicamente salmões do mar para a casa, garantido-lhes provimento fresco todo dia. A ilha seguinte era recamada de pomares de maçãs. Nas ilhas seguintes, começaram de novo a ameaçá-los animais fantásticos: um gato misterioso, porcos flamejantes, porcos imensos, novilhas gigantescas, ovelhas que mudavam de cor a seu bel prazer. Numa das ilhas encontraram um velho moleiro que moía todas as coisas que causavam inveja no mundo. Outros encontros maravilhosos incluem: uma ilha dividida em quatro reinos por cercas de ouro, prata, bronze e cristal; um castelo com uma ponte de vidro onde vivia uma bela princesa que recusou os favores de Maeldun; uma fonte encantada donde brotavam cerveja, vinho e leite; um mar de nuvens donde emergiam castelos, florestas, animais e um monstro terrível; ferreiros gigantescos; uma ilha profética debaixo d’água; uma enorme coluna e uma rede de prata; uma ilha inacessível no alto de uma coluna; o dom da eterna juventude numa ilha habitada por uma rainha e suas filhas; chamas que nunca se extinguiam e um eremita que se alimentava dos salmões que uma foca lhe servia e pedaços de pão fornecidos pelos anjos. Maeldun descobre enfim a ilha dos assassinos de seu pai, mas estes lhe pedem perdão e a paz é selada.

Nãodúvida de que a Navigatio, além dessas influências de fundo lendário, também sofre influências tanto da literatura greco-romana quanto da literatura cristã. Daquela advém a centralidade da figura do herói. Na Eneida, de Vergílio, vemos o herói Enéias enfrentando os trabalhos de uma penosa viagem marítima e o encontro com o maior dos perigos: adentrar o mundo de Hades a fim de reencontrar o pai Anquises e pedir-lhe conselhos. Dois epítetos assinalam a trajetória desse herói: o de pater e o de pius. Da literatura cristã provêm as visões dos profetas, como as Isaías e Esdras ou as do Apocalipse. A Navigatio tem como herói a figura de Brendan, cuja areté assinala a inabalável em Deus, que afasta todos os perigos e salva em qualquer circunstância.

Venerabilis autem pater cum suis sodalibus navigavit in oceanum, et ferebatur per quadraginta dies navis. Quadam vero die apparuit illis bestia immense magnitudinis post illos a longe, que iactabat de naribus spumas et sulcabat undas velocissimo cursu quasi ad illos devorandos. Cum hoc fratres vidissent, ad Dominum clamabant, dicentes: “Libera nos, Domine, ne nos devoret ista belua”. Sanctus vero Brendanus confortabat illos, dicens: “Nolite exspavescere, minime fidei. Deus, qui est semper noster defensor, ipse nos liberabit de ore istius bestie et de ceteris periculis”.[1]

Brandão aparece como pai e como piedoso, no sentido cristão. Compadecido, exorta os companheiros à que salva.

 

A Navigatio

A Navigatio começa com Barinthus, um abade irlandês, narrando a Brendan sobre uma viagem que fizera através do Oceano até encontrar a Terra repromissinonis Sanctorum, uma espécie de ilha do Paraíso. Admirado com o feito, Brandão escolhe quatorze monges e decide construir uma nave e tentar experiência similar. Após jejuar por quarenta dias, carrega o navio com víveres para mais quarenta dias.

No momento da partida, três monges que não tinha sido escolhidos suplicam a São Brandão que os leve também. Brandão aceita-os, mas profetiza que seus destinos serão diferentes dos demais monges, pois jamais haverão de voltar à Irlanda.

Após navegarem quarenta dias, chegam a uma ilha selvagem. Durante três dias, navegam em volta dela à procura de um porto, até que encontram um lugar acessível para um navio. Após Brandão ter abençoado a entrada, todos desembarcaram, sob a recomendação de nada levarem dali. E começaram a percorrer alguns caminhos. Eis que surge um cão, que se aproxima festivamente do santo, como um bom presságio. Seguem o cão, que os conduz até um grande castelo. Não havia ninguém ali. Encontram, todavia, para espanto de todos, uma grande sala provida de leitos e de cadeiras, tendo ao lado uma bacia para lavarem os pés. As paredes estavam decoradas com vasos em metal pendentes, com freios para cavalos e chifres ornados com prata. Instalam-se no recinto e Brandão adverte os irmãos para que não cedam às tentações de Satanás, pois ele o incitando um dos três irmãos a cometer um furto espantoso. Pede a todos que orem pela sua alma, pois a carne cedeu ao poder de satã. A seguir, Brandão pede ao monge que costumava servir o pão aos irmãos para que sirva o que Deus lhes mandou. Encontraram a mesa posta com toalhas brancas, pães individuais admiravelmente brancos, peixes e o que beber. Brandão abençoa a refeição: “Qui dat escam omni carni, confitemini Deo celi” (Rendei graças ao Deus do céu quealimento a toda carne).

Após a refeição, todos se acomodaram, cada um em seu leito. Quando todos dormiam, São Brandão viu o demônio, sob a forma de um menino etíope, segurando um freio com a mão e dançando (iocabat) diante do predito irmão. Brandão se levanta e ora durante toda a noite até surgir o dia. Livra-o da possessão demoníaca, mas o irmão acaba morrendo, após receber a Eucaristia.

Ali permaneceram durante três dias e três noites, nutrindo-se do que Deus lhes preparou. No momento do embarque, aparece um jovem que lhes oferece pão e água para a viagem.

Este episódio revela-nos alguns elementos ligados ao fantástico. O cão é o mensageiro dotado dos poderes de uma vontade superior para levar os heróis ao lugar encantado. O castelo, estranho e deserto, é o espaço mítico. se encontra a mesa posta com lugar reservado para cada um dos monges. Suas paredes contêm objetos ambíguos como um freio e um chifre. O freio, de princípio inofensivo, torna-se objeto símbolo do Mal, utilizado por Satã. A noite é o momento em que as forças do Mal entram em luta com as forças do Bem. Satã encarna-se na figura de um menino etíope, ameaçando os monges. Enquanto os monges se perturbam com a estranheza do lugar, Brandão permanece alheio a essa atmosfera. Até mesmo contribui para que ela se torne ainda mais apavorante ao evocar a figura do demônio. Deste modo, o castelo não é um lugar de paz, um templo em que deus manifesta seus milagres, mas um lugar onde se manifestam as forças superiores do Mal e do Bem.

A ceia evoca correspondências bíblicas, constituídas de pão e peixe, símbolos de Cristo nas origens do cristianismo. Brandão a abençoa, como o fizera Jesus. Enquanto os companheiros dormem, ele vela sobre eles permanecendo em oração, o que pode ser entendido como uma alusão à atitude de Cristo no Monte das Oliveiras.

Brandão aparece como abbas, que em hebreu significa pai. Ele os protege do maléfico Satã. Observa-se ali a oposição entre a opus dei ... orare e a opus diaboli ... iocare.

A viagem continua até alcançarem outra ilha. Ao aproximar-se dela, a embarcação entra em pane. A noite se aproxima, mas os marinheiros saltam na água e conseguem arrastá-la até a praia. Trata-se de uma ilha deserta, cheia de rochas cinzentas. Ali passam a noite, mas Brandão permanece no barco. De manhã, após cantarem a missa, desembarcam carne e peixes para uma refeição. Acendem uma fogueira, mas com o calor das chamas a ilha começa a tremer e afundar. Não era uma ilha, mas Jascônio, um imenso peixe, o primeiro entre todos no oceano. Brandão salva-os das águas, estendendo-lhes a mão, puxando-os para dentro do barco. Revela-lhes que permanecera no barco, pois Deus, através de uma visão, revelara-lhe que Jascônio era um enorme peixe que tentava continuamente tocar sua cauda na cabeça, mas sem conseguir em função do enorme talhe.

Chegam então à ilha dos pássaros. Diferentemente das harpias que atacaram os eneades, tais pássaros eram pacíficos. Um deles, que parecia ser o líder, põe-se a falar e revela que todos ali eram anjos decaídos. Todavia, como seu pecado não fora o de orgulho, Deus os colocou naquela ilha por algum tempo. Profetiza que Brandão ainda viajará durante seis anos.

Partem, navegam ainda durante três meses até chegarem a uma terceira ilha onde vinte e quatro monges estavam a celebrar a festa em honra do seu pai fundador, São Elbo. O abade do convento mostra a Brendan os milagres que Deus opera para eles, como, por exemplo, uma fonte de água quente para o banho, tochas que se acendem por si mesmas.

Após novo périplo, chegam a uma ilha pantanosa. Os monges bebem da água de um riacho e caem em profundo sono. E assim permanecem durante três dias. Partindo, encontram grande calmaria, obrigando-os a remarem durante vinte dias, até chegarem à ilha dos carneiros, onde celebram a Páscoa. Acessam novamente a ilha dos pássaros e partem para o alto mar.

Após quarenta dias, encontram no seu curso um monstro marinho que vinha na direção dos marinheiros como se fosse devorá-los. Apavorados, os monges invocam o nome de Deus. Brandão exorta-os sobre a pouca e ora: “Domine, libera servos tuos, sicut liberasti David de manu Golie gigantis. Domine, libera nos, sicut liberasti Ionam de ventre ceti magni” (Senhor, livra teus servos, assim como livraste Davi das mãos do gigante Golias. Senhor, livra-nos, assim como livraste Jonas do ventre da grande baleia). Acabada a prece, eis que surge do ocidente outro monstro que se arremessa sobre a besta que os ameaçava, travando terrível combate. Ante o milagre, São Brandão fala aos seus:

Videte, filioli, magnalia Redemptoris nostri. Videte obedienciam bestiarum criatore suo. Modo expectate finem rei. Nihil enin ingerit vobis hec pugna mali, sed pro gloria Dei reputabitur. (Bouet, 1986: 40).

(Vede, filhinhos, as maravilhas do nosso Redentor. Vede a obediência dos animais ao seu criador. Aguardai somente o fim da luta. Este combate não vos causará nenhum mal, mas manifestará a glória de Deus.).

Ditas essas palavras, a besta miserável que perseguia os servos de Cristo sofre um golpe que a divide em três pedaços. Estavam salvos.

No dia seguinte, encontraram uma ilha cheia de árvores. Ao se aproximarem da praia, viram um pedaço da besta que queria devorá-los. São Brandão declara: “Ecce, que voluit vos devorare. Ipsam devorabitis. Vos expectabitis multum tempus in hac insula” (Eis aquela que quis devorar-vos. Devorá-la-eis. Ficareis nesta ilha muito tempo).

Percorrendo novamente o mar, chegam a uma ilha cujos habitantes passam o tempo todo cantando glórias a Deus. O segundo dos três monges vindos além da conta, permaneceu na companhia daqueles.

Após navegarem por mais algum tempo, descobrem uma ilha maravilhosa, coberta de árvores frutíferas e recortada por seis regatos. Ali, fazem provisões de frutos, grãos, raízes, ervas e água. Navegam até a ilha de São Elbo, onde celebram o Natal.

De novo ao largo, são repentinamente atacados por um grifo, isto é, uma ave fabulosa e imensa com a metade posterior do corpo de leão e a metade anterior de águia. Esses monstros ambíguos normalmente simbolizam a perversão ou as forças do Mal no mundo. Eis que o grifo se precipita na direção dos monges com suas garras aduncas, prestes a apanhá-los. Mais uma vez a inabalável de São Brandão salva os servos de Deus. Eis que aparece outra ave de igual tamanho e com incrível velocidade lança-se em luta contra o grifo. Acaba por arrancar-lhe os olhos. O grifo então voou tão alto que mal se podia vê-lo. Mas a ave do bem partiu em sua perseguição até que o grifo caiu morto no oceano, próximo dos monges.

Certa vez, num dia muito claro, o apóstolo celebrava no navio a festa de São Pedro. O mar estava tão límpido que se podia ver até o fundo, a areia e os abismos, sobre os quais muitos peixes repousavam. Eram em tão grande quantidade que causavam a um tempo admiração e medo.

Os monges pedem então a Brendan que reze a missa em silêncio, a fim de evitar que os animais marinhos o escutem e se ponham a persegui-los. O santo abade sorri e lhes diz que não temam, pois o Mestre demonstrara anteriormente sua proteção e que agora não seria diferente. E começou, então, a cantar em altos brados. Ao ouvirem seu canto, qual Orfeu, as criaturas marinhas nadaram em torno da embarcação para ouvi-lo e vieram em tão grande número que nada se podia ver além deles. Terminada a missa, todos voltaram para os lugares de origem. Embora o vento fosse favorável, demoraram ainda oito dias para atravessarem o límpido oceano.               

Certo dia, enquanto celebravam a santa missa, apareceu-lhes uma enorme coluna no mar. Era mais alta que o éter. Possuía nas bases algumas aberturas tão grandes que por elas passaria o navio. Tinha a cor da prata, mas era mais dura que o mármore. Era de um cristal puro. Entraram por uma das cavidades a fim de admirar as maravilhas do Senhor. Ao examinarem o seu interior, encontraram um cálice e uma patena da mesma cor da coluna. O homem de Deus interpretou o fato como sendo um prodígio divino para que os homens creiam. Na verdade, tratava-se do encontro da tripulação com um grande e alto iceberg.

Seguindo viagem para os confins do mundo, percebem uma ilha de aspecto selvagem, cujo solo era coberto de pedras e escórias, sem árvores e plantas. Havia ali muitas oficinas de ferreiros. Temerosos, permanecem na embarcação à distância de um tiro de pedra. Ouvem o ruído dos ferreiros como trovões e choques de martelos batendo sobre o ferro. São Brandão toma da cruz e ora a Jesus Cristo. Eis que aparece um habitante da ilha. Tinha o corpo peludo, coberto de chamas e de cor sombria. Quando este viu os servidores de Deus, correu para dentro, mas logo retornou. Correu até as margens da ilha e, segurando nas mãos uma espécie de pinça, tomou pedaços enormes de rocha incandescente e lançou-a na direção da embarcação. O enormes floco de rocha ígnea passa por sobre as cabeças dos monges e cai n’água, fazendo erguer-se do mar fervura e fumaça, como se fosse a queda de uma flamejante montanha.

Quando os monges navegadores puseram a nau em fuga, todos os habitantes da ilha vieram até a margem, cada um lançando sobre os servidores de Cristo sua massa flamejante. Enquanto estas caíam no mar efervescentes, ouviam-se os gritos ululantes dos habitantes da ilha e chegavam até as narinas dos monges um fedor insuportável.

No dia seguinte, viram, ao longe, uma montanha de cujo cimo saía uma nuvem de fumaça. O vento empurrou-os para junto dela rapidamente. O desembarque era impossível, pois a falésia era de grande altura. Nem se podia ver o cume do monte. O terceiro dos três monges que ainda restava saltou do navio e nadou até o da falésia. O navio se afastou, levado pelas ondas e pelo vento e o pobre infeliz foi levado pelos demônios ante os olhos espaventados dos seus companheiros.

Ao longe, afastando-se, os marinheiros de Cristo olhavam a montanha que lançava para o alto chamas tão longas que chegavam até o céu e depois tornava a engoli-las. E eles navegaram rumo ao sul.

Depois de sete dias, apareceu-lhes algo parecido com a forma de um homem sentado num rochedo, à flor d’água. Uma vela estendia-se diante dele, pendida entre duas forcas de ferro. Agitava-se enormemente como um barco no meio do turbilhão. Quando se aproximaram, Brandão perguntou quem era ele e que penitência estava cumprindo. O homem lhe responde que era Judas e que estar ali se devia à bondade do Redentor que, sempre, no dia do Senhor, o deixava ficar sobre aquela pedra. Os ondas, subindo até o pescoço, resfriavam-lhe o corpo. E ele sentia alívio, pois, no resto dos dias, permanecia a arder nas chamas do inferno, que é dentro daquele vulcão, cujos demônios acabaram de engolir o terceiro dos monges.

Após este encontro com Judas, que narra seus sofrimentos no inferno, abordam uma ilha onde vive um monge de avançada idade, o qual se põe a contar lentamente sua história. Viajam depois para outra ilha onde encontra um jovem que os guiará até a ilha do Paraíso. Para chegar , navegam durante quarenta dias. Ao cair da noite, as trevas os envolvem totalmente. Eram as trevas que envolviam a ilha que ele procurara por sete longos anos. Depois de navegarem nelas cerca de uma hora, uma intensa luz inunda seus olhos e o navio atraca na margem.

Ao desembarcarem, vêem uma terra imensa e coberta de árvores carregadas de frutos maduros como se fosse outono. Percebem que ali não noite. Comem dos frutos que desejam e bebem das águas de frescas fontes. Durante quarenta dias percorrem aquela terra, até que chegam a um grande rio. Desejam atravessá-lo, mas não podendo, nutrem secretamente esse desejo. Eis que aparece um jovem que os saúda com imensa alegria, chamando cada um dos monges pelo nome. Explica a São Brandão que esta era realmente a terra pela qual procurara, a Terra repromissionis Sanctorum. Deus não lhe permitira tê-la encontrado, a fim de que ele pudesse revelar seus diferentes segredos que se encontram no oceano. Aconselha-o a retornar à terra onde nascera, levando frutos e pedras preciosas o quanto pudesse o navio receber. Está chegando o dia da última viagem e Brendan dormirá no país dos seus ancestrais. Esta terra será de todos aqueles que seguem a Cristo. O rio pertence à terra. Ela é rica em frutos e permanecerá para sempre sem as sombras da noite. A luz que brilha é Cristo.

Brendan e seus monges embarcam, levando frutos e pedras preciosas. Atravessam as trevas e rumam para a ilha das Delícias, donde retornam a seu país. Brandão narra suas aventuras a seus co-cidadãos e, pouco tempo depois, morre.

Brendan viaja por sete anos em busca do Paraíso. O episódio narrado revela que o Paraíso é um lugar inacessível, ou de uma peregrinação difícil. São quarenta dias de navegação, que se aparenta com os quarenta dias da quaresma e aos quarenta dias que Jesus passou no deserto. Muitas provas foram necessárias, mas passar pelas trevas exige a presença indispensável do mensageiro de Deus.

Ao mesmo tempo, para chegar ao Paraíso é necessário um aprendizado, que emana de Deus. Ele nos revela os diferentes segredos ocultos no grande oceano, metáfora da vida.

O Paraíso aparece como uma restauração do Jardim do Éden: é um país de luz sem fim, onde não se conhecem as trevas; ao mesmo tempo não tem limites; a abundância vem marcada pela presença das fontes, do rio, dos imensos pomares de árvores frutíferas; ali também reina a fraternidade e a alegria. Cada um é chamado pelo próprio nome. Se por um lado o texto retoma a inspiração bíblica do livro do Gênesis, de outro lado também evoca a idade de ouro, presente nas literaturas antigas.

A missão que o Anjo do Senhor traz para Brandão é a de que Deus desejou fazê-lo descobrir os múltiplos segredos que se encontram no Oceanus magnus, o Oceano Atlântico. O sentido da volta de Brandão à terra nativitatis é o de testemunhar aos homens a glória de Deus. Os frutos e as pedras preciosas que deve levar do Paraíso serão a prova disso.

O retorno se dá sem incidentes. Muitos monges serão incentivados a também buscarem o Paraíso. Com certeza, o misticismo dos monges celtas pôde nutrir essas narrativas fantásticas, que foram acrescidas de muitas experiências marítimas de outros navegadores da terra de Bran.

 

BIBLIOGRAFIA

Bouet, Pierre. Le fantastique dans la littérature latine du Moyen Âge. Caen: Presses Univesitaires de Caen, 1998.

COTTERRELL, Arthur. Enciclopédia de mitologia. Lisboa: Central Livros Ltda., 1998.

http://members.tripod.com/~ruipmartins/saobrand.html

SELMER, C. Navigatio Sancti Brendani. (Notre Dame (Indiana), University of Notre Dame Press. 1959.

www.caradobrasil.com.br/artpert/lendas/lendabrasil.htm


 


 

[1] Porém nosso venerável pai navegou sobre o oceano com seus companheiros e durante quarenta dias a nave era levada pelas ondas. Certo dia, apareceu-lhes, longe atrás deles, uma besta de imenso talhe, a qual lançava espumas de suas narinas e fendia as águas em velocíssimo curso como para devorá-los. Assim que os irmãos o viram, clamaram ao Senhor, dizendo: “Livra-nos, Senhor, para que este monstro não nos devore”. Mas São Brandão confortava-os, dizendo: “Não vos espanteis, homens de pouca . Deus, que é nosso defensor, ele mesmo nos livrará da goela desta besta e de outros perigos”. (Bouet, 1986, p. 40).