JOGOS E POESIA: UM LEGADO HELÊNICO

Dulcileide V. do Nascimento (UERJ)

Não consigo conter a minha indignação ao pensar que algumas pessoas, principalmente as do nosso meio acadêmico, questionem, ainda, a “utilidade” da língua e da cultura grega. Em um ano que, basicamente, respiramos um ar grego é inadmissível tamanho questionamento, mas ele existe.

Diante de tanta propaganda relacionada à Grécia e as olimpíadas, vi uma que me chamou a atenção. Ela fazia o seguinte questionamento: será que a terra que criou a filosofia, as artes, a oratória e a democracia, entre tantas coisas, poderá também gerar mais medalhas para o Brasil? Esse questionamento me levou a pensar na atitude utilitarista e imediatista que temos; Não dá para negar que a nossa cultura absorveu traços lingüísticos e sócio-culturais helênicos, mas muitas vezes a nossa postura é a de relegar a essa sociedade o caráter de coisa não útil e repetimos a frase do tragediógrafo Eurípides: “da forma que me fostes útil já está bom”, e só conseguimos pensar nas medalhas que conseguiremos agora, esquecendo todas as que recebemos anteriormente como se não tivessem valor algum. Espero não estar falando a um público que pense assim...

E para este público, seleto e primoroso, falo de Píndaro de Cinoscéfalos, o príncipe dos poetas corais. Poeta que nasceu entre 522 a.C. e 518 a.C. na Beócia e a quem devemos a autoria de uma série de poemas, em língua dórica, chamados de epinícios ou “odes triunfais”, cujo objetivo principal era enaltecer os campeões dos diversos jogos pan-helênicos. Os epinícios, dividem-se em quatro grupos, divididos segundo a ocasião dos jogos pan-helênicos cujos vencedores celebram, são eles: as odes Olímpicas, as Píticas, em honra aos festivais celebrados em Delfos, as Neméias, festivais em honra a Zeus, e as Ístmicas, festivais em honra a Dioniso. Esses festivais, segundo a tradição, também tinham uma estreita relação com antigos jogos fúnebres celebrados junto dos túmulos de antigos heróis ou de antigos génios: de Pelops em Olímpia, de Melicerto em Corinto, de Ofeltes em Nemeia, de Piton em Delfos.

Esses festivais, segundo Émile Mireaux (p. 234) são jogos celebrados em épocas fixas e destinados a assegurar o renovo das energias que asseguram a perpetuidade da vida e presidem a sua restauração regular. Essa energia vital encarna-se normalmente no atleta.

Cito a XI a. Olímpica:

Quando o sucesso recompensa o esforço, precisa o atleta

da doçura dos hinos, que preludiam as glórias longínquas,

em testemunho verídico dos grandes feitos.

Aos vencedores olímpicos, nem a inveja ousa contestar

Essa glória que é seu privilégio.

Tais vitórias, minha língua se apresta a poetar,

Mas é a divindade que confere ao homem o talento.

Assim, Agesídamas, filho de Arquestrato,

Em honra de teu pugilato, acrescentarei

à preciosa coroa de oliveira que obtiveste,

o ornato de meus versos melodiosos,

e renderei homenagem à raça dos Lócrios Zefirenses.

(trad. de Guida N. B.P.Horta)

Embora saibamos que as odes eram, de antemão, encomendadas pelo próprio atleta ou por sua família para celebrar sua previsível vitória, Píndaro exprime um ideal de beleza e perfeição em que sua obra deixa de ser simplesmente uma descrição dos fatos festivos e dos dotes físicos do atleta para funcionar como veículo de testemunho e de imortalidade dos grandes feitos deste atleta, assim como fizeram os aedos e rapsodos com os heróis épicos.

Chama-nos a atenção a forma explícita com que o poeta revela a importância/ objetivo dos seus versos que se tornam uma necessidade para o vencedor: “tais vitórias, minha língua se apresta a poetar”, sem deixar, contudo de mencionar que são os deuses os responsáveis por essa vitória.

Píndaro, mesmo em uma época em que o racionalismo filosófico e a influência da sofística questionavam as crenças tradicionais, acreditava que todo o mérito dos heróis era fruto de uma recompensa divina e , assim como as grandes famílias aristocráticas, eles eram eleitos pelos deuses.

A relação entre as divindades e o atleta já se encontrava revelado na própria competição. Os quatro grandes festivais pan-helênicos, presenciados por visitantes vindo de todas as partes do mundo grego, como já falamos anteriormente, eram festivais que recebiam o nome dos jogos cujos vencedores celebram, como por exemplo o Olímpico, que era celebrado em Olímpia, na Élis em honra a Zeus. Esse festival, que presumivelmente foi reorganizado por volta de 776 a. C., era realizado de quatro em quatro anos, em meados do verão. Por ocasião do festival proclamava-se uma “trégua sagrada” que garantia aos viajantes e atletas que participavam dos jogos um salvo-conduto.

Em Olímpia, os jogos eram precedidos de um período de preparação de trinta dias durante os quais é prescrita aos atletas uma dieta vegetariana e a abstinência sexual e se iniciavam com sacrifícios em honra a Pelops, herói local, e a Zeus.

Cito a gora a V A. Neméia:

Não sou estatutário; não crio, portanto,

figuras imóveis, eretas no pedestal.

Não, barca ou navio-transporte,

Que a primeira embarcação, de partida,

Possa trazer-te de Égida, ó minha suave canção,

Para lançar, aos quatro ventos, que o filho de Lampôn,

O robusto Píteas, ainda imberbe, arrebatara nos jogos Nemeus

A coroa do pancrácio, antes mesmo que a mais tênue

Penugem lhe aflorasse o rosto juvenil.

Assim, fez ele honra aos belicosos heróis,

Nascidos de Zeus e de Cronos - os Eácidas -

Descendentes das áureas Nereidas.

Ele honrou também a pátria, terra amada pelos forasteiros.

Mas, se me é caro louvar-lhes a prosperidade,

O vigor dos braços, ou a bravura ao empunhar a lança,

Seja-me preparado o terreno, aqui mesmo,

Para um grande salto, pois meus joelhos são ágeis.

As águias varam as distâncias, para além dos mares.”

(trad. de Guida N. B. P. Horta)

O festival Nemeu celebrava-se provavelmente a cada dois anos no vale de Neméia, perto de Cleônai, em Argos, dois meses antes do festival Ístmico. Segundo a tradição, ele teria sido instituído originalmente sob a forma de jogos fúnebres em honra a Ofeltes, morto durante a expedição dos Sete contra Tebas.

Os prêmios desses festivais consistiam, como bem mostra a XI ª ode Olímpica, em receber coroas de folhas de oliveira brava; mas o vencedor recebia outras recompensas de sua cidade, para qual a sua vitória trazia grande glória. Assim como um atleta brasileiro ao subir o pódio e receber uma medalha a transfere a cada cidadão brasileiro transformando, no mesmo momento, em vencedor juntamente com ele, o atleta vencedor desses festivais era consciente do compromisso moral que tinha com a sua família, com seu povo e principalmente com seus deuses, dos quais também tudo podia esperar.

Na sua cidade era recebido com honras e recebia, além de uma recompensa financeira, uma ode e/ou uma estátua em sua honra.

Por causa disto, Píndaro deixa bem claro, nesta ode, que o seu ideal de beleza e perfeição ultrapassam os limites das definições dos músculos. Ele não quer simplesmente descrever as características físicas do atleta, embora o faça, mesmo lhe sendo caro, nos últimos versos: “mas, se me é caro louvar-lhes a prosperidade,/ o vigor dos braços, ou a bravura ao empunhar a lança...” essa função, de imortalizar o físico é dos estatutários. Sua função é propagar a vitória do atleta, “lançá-la aos quatro ventos”, cujo nome é mencionado, assim como o de sua família. As impressões reais das lutas, das corridas ou até mesmo da emoção dos espectadores não parece merecer a atenção do poeta que se preocupava mais com o homem que alcançou a vitória, que é, segundo Píndaro, a manifestação suprema da ‘areté’ humana. Portanto, mais do que uma simples estátua, os seus versos, assim como os joelhos de um atleta, são ágeis e como as águias varam as distâncias, levando o nome e façanha do atleta para além dos mares.

O amado das musas converte a sua poesia numa espécie de hino religioso ao explicitar a sua concepção aristocrática dos concursos e a busca do homem para atingir um ideal de perfeição. Pois na sua poesia, assim como em Homero, vemos que o valor do homem só é garantido pelo reconhecimento que encontra nos prêmios e nas palavras de louvor. O poeta conhece o poder da palavra e acredita, cito, “que ela sobrevive aos fatos, quando a língua, com o sucesso concedido pela Cárites, a bebe no mais profundo coração” (JAEGER, 1989: 176). Píndaro tem consciência da importância de sua função, e refere-se a ela com freqüência pois: “perecem os feitos valorosos, se o silêncio os cobre” (fr. 121).

Não podemos também deixar de lembrá-los que essa percepção de areté está intimamente ligada aos feitos dos antepassados famosos, e é à luz das tradições de estirpe que ele contempla o vencedor que honra a seus antepassados, como no trecho: “assim fez ele honra aos belicosos heróis, nascidos de Zeus e de Cronos - os Eácidas - descendentes das áureas Nereidas”. Nesta alusão pode-se perceber que o atleta é um representante de sua herança divina, pois só quem é oriundo de uma ‘génos’ divina realiza coisas grandes e é detentor da verdadeira ‘areté’, porque, por si mesmo, o homem nada é. Em outras palavras, o mundo do poeta, explicitado em sua poesia, é determinado pelo religioso, cito: “ dos deuses nasce toda a força da capacidade humana, deles provêm os sábios, os fortes e os eloqüentes”(PÍTICA 1,41).

Concluindo, podemos afirmar que o espírito “agonal”, não só em Píndaro como em muitos autores clássicos, é descrito com freqüência como uma das forças motrizes da cultura grega que torna quase tudo em objeto de competição.

É evidente que assim com nos dias atuais, o público grego antigo era amante dos jogos, de provas atléticas, de corridas de carro e também de concursos artísticos, cantos, danças e poesia. A grande importância desses festivais, segundo Paul Harvey (1987):

Decorria de várias circunstâncias: eles davam ênfase à unidade da raça grega, encorajavam a prática do atletismo como parte da educação, estimulavam o cultivo da poesia e da música oferecendo oportunidade para se ouvirem as melhores obras, e alimentavam o interesse pela escultura e pela pintura por causa da importância atribuída ao desenvolvimento físico das pessoas.

No entanto, os organizadores dos festivais, com o passar do tempo, multiplicavam as provas e diversificavam-nas a fim de que uma festa nunca ficasse a dever às outras. Os atletas, aperfeiçoando sua técnica, se submetiam a um treinamento severo: transformaram-se em profissionais, certos de terem lucros materiais compensadores do esforço despendido, e em decorrência desses fatos modifica-se o espírito dos grandes jogos que deixam de ser a pura oferenda de um esforço gratuito à divindade que, dando a vitória ao melhor, designava aquele que merecia a sua preferência, como tão belamente retratou a poesia de Píndaro, para constituírem apenas uma oportunidade, um pretexto, para o divertimento coletivo.

A decadência dos jogos veio vagarosamente, muito tempo depois da dominação romana. Com o cristianismo nascente em Roma, em 394 a.C., Teodósio proibiu os rituais pagãos e os jogos olímpicos, com isso esse tributo a Zeus terminou. Três décadas depois o imperador romano foi ainda mais radical e ordenou a destruição do santuário de Olímpia. Os jogos só voltariam à Grécia na era moderna, em 1896.

Mas o espírito grego, assim como sua cultura e coincidentemente seus festivais, tem a potencialidade da mitológica Fênix e ressurge sempre das cinzas. O modelo dos jogos gregos foi copiado por outras civilizações e perdura até os nossos dias. Com exceção da participação das mulheres, que era vetada no início mas que com o passar do tempo passaram a competir nos festivais em honra a Hera, a força dos jogos nascidos em Olímpia continua a mesma e a sua comemoração, este ano, em Atenas, revestida de um grande simbolismo resgata tudo isso.

No século de Píndaro não tínhamos a tecnologia que hoje temos para imortalizar os atletas, as estátuas, em sua maioria, foram destruídas pelas sucessivas guerras e a lembrança dos feitos desses atletas/heróis ficou imortalizada pelos versos deste poeta, que se transformaram num altar consagrado a sorte gloriosa e ao destino belo desses jovens e nem o bolor nem o tempo que tudo domina conseguirão profanar esta altar.

BIBLIOGRAFIA

HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de Literatura Clássica; grega e latina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.

JAEGER, Werner. Paidéia - a formação do homem grego. Brasília: Martins Fontes, 1989.

LESKY, Albin. História da Literatura Grega. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.

MIREAUX, Émile. A vida quotidiana no tempo de Homero. Lisboa: Livros do Brasil, [s/d.].

JOGOS E POESIA: UM LEGADO HELÊNICO

Dulcileide V. do Nascimento (UERJ)

Não consigo conter a minha indignação ao pensar que algumas pessoas, principalmente as do nosso meio acadêmico, questionem, ainda, a “utilidade” da língua e da cultura grega. Em um ano que, basicamente, respiramos um ar grego é inadmissível tamanho questionamento, mas ele existe.

Diante de tanta propaganda relacionada à Grécia e as olimpíadas, vi uma que me chamou a atenção. Ela fazia o seguinte questionamento: será que a terra que criou a filosofia, as artes, a oratória e a democracia, entre tantas coisas, poderá também gerar mais medalhas para o Brasil? Esse questionamento me levou a pensar na atitude utilitarista e imediatista que temos; Não dá para negar que a nossa cultura absorveu traços lingüísticos e sócio-culturais helênicos, mas muitas vezes a nossa postura é a de relegar a essa sociedade o caráter de coisa não útil e repetimos a frase do tragediógrafo Eurípides: “da forma que me fostes útil já está bom”, e só conseguimos pensar nas medalhas que conseguiremos agora, esquecendo todas as que recebemos anteriormente como se não tivessem valor algum. Espero não estar falando a um público que pense assim...

E para este público, seleto e primoroso, falo de Píndaro de Cinoscéfalos, o príncipe dos poetas corais. Poeta que nasceu entre 522 a.C. e 518 a.C. na Beócia e a quem devemos a autoria de uma série de poemas, em língua dórica, chamados de epinícios ou “odes triunfais”, cujo objetivo principal era enaltecer os campeões dos diversos jogos pan-helênicos. Os epinícios, dividem-se em quatro grupos, divididos segundo a ocasião dos jogos pan-helênicos cujos vencedores celebram, são eles: as odes Olímpicas, as Píticas, em honra aos festivais celebrados em Delfos, as Neméias, festivais em honra a Zeus, e as Ístmicas, festivais em honra a Dioniso. Esses festivais, segundo a tradição, também tinham uma estreita relação com antigos jogos fúnebres celebrados junto dos túmulos de antigos heróis ou de antigos génios: de Pelops em Olímpia, de Melicerto em Corinto, de Ofeltes em Nemeia, de Piton em Delfos.

Esses festivais, segundo Émile Mireaux (p. 234) são jogos celebrados em épocas fixas e destinados a assegurar o renovo das energias que asseguram a perpetuidade da vida e presidem a sua restauração regular. Essa energia vital encarna-se normalmente no atleta.

Cito a XI a. Olímpica:

Quando o sucesso recompensa o esforço, precisa o atleta

da doçura dos hinos, que preludiam as glórias longínquas,

em testemunho verídico dos grandes feitos.

Aos vencedores olímpicos, nem a inveja ousa contestar

Essa glória que é seu privilégio.

Tais vitórias, minha língua se apresta a poetar,

Mas é a divindade que confere ao homem o talento.

Assim, Agesídamas, filho de Arquestrato,

Em honra de teu pugilato, acrescentarei

à preciosa coroa de oliveira que obtiveste,

o ornato de meus versos melodiosos,

e renderei homenagem à raça dos Lócrios Zefirenses.

(trad. de Guida N. B.P.Horta)

Embora saibamos que as odes eram, de antemão, encomendadas pelo próprio atleta ou por sua família para celebrar sua previsível vitória, Píndaro exprime um ideal de beleza e perfeição em que sua obra deixa de ser simplesmente uma descrição dos fatos festivos e dos dotes físicos do atleta para funcionar como veículo de testemunho e de imortalidade dos grandes feitos deste atleta, assim como fizeram os aedos e rapsodos com os heróis épicos.

Chama-nos a atenção a forma explícita com que o poeta revela a importância/ objetivo dos seus versos que se tornam uma necessidade para o vencedor: “tais vitórias, minha língua se apresta a poetar”, sem deixar, contudo de mencionar que são os deuses os responsáveis por essa vitória.

Píndaro, mesmo em uma época em que o racionalismo filosófico e a influência da sofística questionavam as crenças tradicionais, acreditava que todo o mérito dos heróis era fruto de uma recompensa divina e , assim como as grandes famílias aristocráticas, eles eram eleitos pelos deuses.

A relação entre as divindades e o atleta já se encontrava revelado na própria competição. Os quatro grandes festivais pan-helênicos, presenciados por visitantes vindo de todas as partes do mundo grego, como já falamos anteriormente, eram festivais que recebiam o nome dos jogos cujos vencedores celebram, como por exemplo o Olímpico, que era celebrado em Olímpia, na Élis em honra a Zeus. Esse festival, que presumivelmente foi reorganizado por volta de 776 a. C., era realizado de quatro em quatro anos, em meados do verão. Por ocasião do festival proclamava-se uma “trégua sagrada” que garantia aos viajantes e atletas que participavam dos jogos um salvo-conduto.

Em Olímpia, os jogos eram precedidos de um período de preparação de trinta dias durante os quais é prescrita aos atletas uma dieta vegetariana e a abstinência sexual e se iniciavam com sacrifícios em honra a Pelops, herói local, e a Zeus.

Cito a gora a V A. Neméia:

Não sou estatutário; não crio, portanto,

figuras imóveis, eretas no pedestal.

Não, barca ou navio-transporte,

Que a primeira embarcação, de partida,

Possa trazer-te de Égida, ó minha suave canção,

Para lançar, aos quatro ventos, que o filho de Lampôn,

O robusto Píteas, ainda imberbe, arrebatara nos jogos Nemeus

A coroa do pancrácio, antes mesmo que a mais tênue

Penugem lhe aflorasse o rosto juvenil.

Assim, fez ele honra aos belicosos heróis,

Nascidos de Zeus e de Cronos - os Eácidas -

Descendentes das áureas Nereidas.

Ele honrou também a pátria, terra amada pelos forasteiros.

Mas, se me é caro louvar-lhes a prosperidade,

O vigor dos braços, ou a bravura ao empunhar a lança,

Seja-me preparado o terreno, aqui mesmo,

Para um grande salto, pois meus joelhos são ágeis.

As águias varam as distâncias, para além dos mares.”

(trad. de Guida N. B. P. Horta)

O festival Nemeu celebrava-se provavelmente a cada dois anos no vale de Neméia, perto de Cleônai, em Argos, dois meses antes do festival Ístmico. Segundo a tradição, ele teria sido instituído originalmente sob a forma de jogos fúnebres em honra a Ofeltes, morto durante a expedição dos Sete contra Tebas.

Os prêmios desses festivais consistiam, como bem mostra a XI ª ode Olímpica, em receber coroas de folhas de oliveira brava; mas o vencedor recebia outras recompensas de sua cidade, para qual a sua vitória trazia grande glória. Assim como um atleta brasileiro ao subir o pódio e receber uma medalha a transfere a cada cidadão brasileiro transformando, no mesmo momento, em vencedor juntamente com ele, o atleta vencedor desses festivais era consciente do compromisso moral que tinha com a sua família, com seu povo e principalmente com seus deuses, dos quais também tudo podia esperar.

Na sua cidade era recebido com honras e recebia, além de uma recompensa financeira, uma ode e/ou uma estátua em sua honra.

Por causa disto, Píndaro deixa bem claro, nesta ode, que o seu ideal de beleza e perfeição ultrapassam os limites das definições dos músculos. Ele não quer simplesmente descrever as características físicas do atleta, embora o faça, mesmo lhe sendo caro, nos últimos versos: “mas, se me é caro louvar-lhes a prosperidade,/ o vigor dos braços, ou a bravura ao empunhar a lança...” essa função, de imortalizar o físico é dos estatutários. Sua função é propagar a vitória do atleta, “lançá-la aos quatro ventos”, cujo nome é mencionado, assim como o de sua família. As impressões reais das lutas, das corridas ou até mesmo da emoção dos espectadores não parece merecer a atenção do poeta que se preocupava mais com o homem que alcançou a vitória, que é, segundo Píndaro, a manifestação suprema da ‘areté’ humana. Portanto, mais do que uma simples estátua, os seus versos, assim como os joelhos de um atleta, são ágeis e como as águias varam as distâncias, levando o nome e façanha do atleta para além dos mares.

O amado das musas converte a sua poesia numa espécie de hino religioso ao explicitar a sua concepção aristocrática dos concursos e a busca do homem para atingir um ideal de perfeição. Pois na sua poesia, assim como em Homero, vemos que o valor do homem só é garantido pelo reconhecimento que encontra nos prêmios e nas palavras de louvor. O poeta conhece o poder da palavra e acredita, cito, “que ela sobrevive aos fatos, quando a língua, com o sucesso concedido pela Cárites, a bebe no mais profundo coração” (JAEGER, 1989: 176). Píndaro tem consciência da importância de sua função, e refere-se a ela com freqüência pois: “perecem os feitos valorosos, se o silêncio os cobre” (fr. 121).

Não podemos também deixar de lembrá-los que essa percepção de areté está intimamente ligada aos feitos dos antepassados famosos, e é à luz das tradições de estirpe que ele contempla o vencedor que honra a seus antepassados, como no trecho: “assim fez ele honra aos belicosos heróis, nascidos de Zeus e de Cronos - os Eácidas - descendentes das áureas Nereidas”. Nesta alusão pode-se perceber que o atleta é um representante de sua herança divina, pois só quem é oriundo de uma ‘génos’ divina realiza coisas grandes e é detentor da verdadeira ‘areté’, porque, por si mesmo, o homem nada é. Em outras palavras, o mundo do poeta, explicitado em sua poesia, é determinado pelo religioso, cito: “ dos deuses nasce toda a força da capacidade humana, deles provêm os sábios, os fortes e os eloqüentes”(PÍTICA 1,41).

Concluindo, podemos afirmar que o espírito “agonal”, não só em Píndaro como em muitos autores clássicos, é descrito com freqüência como uma das forças motrizes da cultura grega que torna quase tudo em objeto de competição.

É evidente que assim com nos dias atuais, o público grego antigo era amante dos jogos, de provas atléticas, de corridas de carro e também de concursos artísticos, cantos, danças e poesia. A grande importância desses festivais, segundo Paul Harvey (1987):

Decorria de várias circunstâncias: eles davam ênfase à unidade da raça grega, encorajavam a prática do atletismo como parte da educação, estimulavam o cultivo da poesia e da música oferecendo oportunidade para se ouvirem as melhores obras, e alimentavam o interesse pela escultura e pela pintura por causa da importância atribuída ao desenvolvimento físico das pessoas.

No entanto, os organizadores dos festivais, com o passar do tempo, multiplicavam as provas e diversificavam-nas a fim de que uma festa nunca ficasse a dever às outras. Os atletas, aperfeiçoando sua técnica, se submetiam a um treinamento severo: transformaram-se em profissionais, certos de terem lucros materiais compensadores do esforço despendido, e em decorrência desses fatos modifica-se o espírito dos grandes jogos que deixam de ser a pura oferenda de um esforço gratuito à divindade que, dando a vitória ao melhor, designava aquele que merecia a sua preferência, como tão belamente retratou a poesia de Píndaro, para constituírem apenas uma oportunidade, um pretexto, para o divertimento coletivo.

A decadência dos jogos veio vagarosamente, muito tempo depois da dominação romana. Com o cristianismo nascente em Roma, em 394 a.C., Teodósio proibiu os rituais pagãos e os jogos olímpicos, com isso esse tributo a Zeus terminou. Três décadas depois o imperador romano foi ainda mais radical e ordenou a destruição do santuário de Olímpia. Os jogos só voltariam à Grécia na era moderna, em 1896.

Mas o espírito grego, assim como sua cultura e coincidentemente seus festivais, tem a potencialidade da mitológica Fênix e ressurge sempre das cinzas. O modelo dos jogos gregos foi copiado por outras civilizações e perdura até os nossos dias. Com exceção da participação das mulheres, que era vetada no início mas que com o passar do tempo passaram a competir nos festivais em honra a Hera, a força dos jogos nascidos em Olímpia continua a mesma e a sua comemoração, este ano, em Atenas, revestida de um grande simbolismo resgata tudo isso.

No século de Píndaro não tínhamos a tecnologia que hoje temos para imortalizar os atletas, as estátuas, em sua maioria, foram destruídas pelas sucessivas guerras e a lembrança dos feitos desses atletas/heróis ficou imortalizada pelos versos deste poeta, que se transformaram num altar consagrado a sorte gloriosa e ao destino belo desses jovens e nem o bolor nem o tempo que tudo domina conseguirão profanar esta altar.

BIBLIOGRAFIA

HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de Literatura Clássica; grega e latina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.

JAEGER, Werner. Paidéia - a formação do homem grego. Brasília: Martins Fontes, 1989.

LESKY, Albin. História da Literatura Grega. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.

MIREAUX, Émile. A vida quotidiana no tempo de Homero. Lisboa: Livros do Brasil, [s/d.].