JOGOS ESTÉTICOS NO TEXTO LITERÁRIO

Carlinda Fragale Pate Nuñez (UERJ)

 

Organizando a partida

O jogo retorna à cena filosófica, após um longo período em que esteve sob a suspeição de prática infantil, irrelevante, marcada pela inadequação em relação a um projeto de formação social e ética que norteou praticamente toda a paidéia grega, com a qual o mundo romano jamais rivalizou. se inscreve uma ambigüidade que nos interessa investigar. Em seu ambiente grego, os jogos funcionam como o critério com que se discernem processos radicalmente opostos. De um lado, os jogos desqualificados, associados ao paízo (brincar) infantil e à paidiá (brincadeira) da criança (pais, paidós), mas igualmente à mais importante obra da civilização humanística dos gregos, a sua paidéia. De outro lado, os agónes – jogos propriamente ditoscom caráter institucional, ligados ao mundo racional, regrado e adulto, do qual os Jogos Olímpicos são o seu maior triunfo. Na chave dos agónes e de seu correspondente verbal ágo, águein (conduzir), encontram-se as mais importantes práticas da antropologia arcaica, por sua gravidade e anterioridade, os jogos fúnebres[1], em honra aos cadáveres, mas também as competições atléticas, os certames políticos, os festivais dramáticos, enfim, os lugares simbólicos altamente regulamentados, controlados social e publicamente, nos quais a regra democrática por excelência da isonomia[2] se colocava em questão.

Fogem a esse esquema os objetos lúdicos que dependem exclusivamente de habilidade técnica e condicionamento motor, como o jogo com peões (petteía), e os jogos de azar, como o de dados (kubeía). Tais joguetes, projetados exclusivamente para o fim a que se destinam (explorar a finitude do objeto), limitam a diversão e, por isso, se excluem à complexidade reconhecida nos jogos em que todo o corpo se aplicado, ou que demandam esforço intelectual.

Em outra chave semântica se encontram os jogos ligados ao étimo latino. Derivada de jocus, -i, a noção substantiva de jogo se liga ao entretenimento e à distração plenos. Como noção adjetiva, a ação lúdica, ligada a ludus, -i, remete ao jogo regrado ou, genericamente, a qualquer sistema de regras. Muito embora a paidía grega pareça corresponder ao jocus romano, assim como os ludi possam ser correlacionados aos agónes difundidos por todo o mundo grego, a história e a sociologia alertam para o fato de que uma mesma sociedade, em épocas diferentes, ou sociedades diferentes, numa mesma época, utilizam parajogartermos que nem sempre funcionam como sinônimos, nem mesmo se consideram equivalentes (JAKOB: 1990). Vale dizer que, nas línguas vernáculas, os termosjogo”, “brincadeira”, “lúdico”, “jocoso”, “ludismo“ e correlatos dissolvem suas especificidades originárias, numa constelação de sentidos ecléticos e empregos sempre metafóricos, a serviço das práticas culturais, das mais simples às mais elaboradas.

Ainda assim, a superposição desses semantismos ocorre em algumas línguas, nas quais a mesma palavra serve para jogar e encenar (play e to play, Spiel e spielen). O imaginário dessas línguas preserva, conceitualmente, esse importante aspecto do ludismo que é a representação (cênica ou não). Dimensões de atividade infantil, mas também de prática regrada e da representação cênica, indicam a natureza heteróclita dos materiais a que o jogo remete. Acrescente-se a isso a constatação de que a utilização de uma mesma palavra para designar realidades diferentes indica que uma significação comum as une.

De qualquer forma, os jogos atualizam sempre essa propriedade de refletir o mundo em si mesmo. Existindo apenas pragmaticamente, eles projetam o que há de infinito, em de seu contexto finito e essencialmente intramundano. Os jogos concernem a atos existenciais – tudo passa a girar em torno de uma partida, porque ela catalisa emoções e, para ser jogada, tem de ser levada a sério – e, assim, os jogos extrapolam as considerações puramente imanentes das coisas humanas: o homem, quando joga, é determinado essencialmente pelo jogo, que, por sua vez, nas palavras do filósofo Eugen Fink (1966: 228)

É determinado pela profundidade insondável, pelo indeterminado, pelo instável, o aberto, o possível volúvel do mundo que se reflete nele. No jogo humano se produz o êxtase da existência mirando o mundo. Isso porque o jogo prevalece sobre não importa que outra atitude, não importa que outra atividade intramundana do homem, não importa que outra maneira de estar em ação. No jogo, o homem se transcende a ele mesmo, ultrapassa as determinações que o rodeiam e nas quais ele se realiza; ele revoga as decisões irrevogáveis da sua liberdade, dobra-se sobre o fundo vital de possibilidades originais, deixando para trás toda situação fixa.e rejeitando o fardo de sua história.

É importante assinalar que os jogos se constituam lugares marcados pela liberdade (a idéia de um jogo forçado é revoltante e até absurda), pela gratuidade (se o jogo ganha um caráter utilitário, perde ode jogo) e pelo prazer (única forma, ainda que imprecisa, de justificar a prática lúdica [Freud: 1975]). Merece ser dito, entretanto, que nada é totalmente gratuitonem mesmo o ato de jogar. E não é apenas o prazer que faz o jogo. A compreensão usual dos jogos traz consigo, de fato, contradições que devem ser também assinaladas.

 

O jogo e suas aporias

Nesse horizonte atento às astuciosas camuflagens do ludismo, é possível reconhecer as falsas aporias que ele encerra, quando é compreendido em oposição à cotidianidade; ao trabalho, à seriedade e à realidade.

1ª. aporia: O jogo se opõe aos gestos e às decisões da vida ordinária. Jogo e vida cotidiana são domínios antagonistas e até concorrentes. Não gratuitamente,elerelevo à recreação, ao lazer e à festa. Assim, instala-se ao lado das atividades maiores do grupo social e do indivíduo, dando lugar aos mais importantes momentos de ruptura da cotidianidade. É nessa perspectiva que as práticas lúdicas dão lugar a formas de ação social e psíquica cuja raridade e caráter excepcional, justificam a existência de prêmios, hinos, projetos urbanos e interferências em calendários. Sua valorização e incentivo se apreciam, na razão inversamente proporcional, à monotonia das tarefas habituais da vida cotidiana. Donde: nãooposição real entre jogo e vida cotidiana. Em muitos casos, há até homologia estrutural entre jogo e situações concretas, principalmente naquelas em que se é chamado, seja jogando, seja vivendo as práticas cotidianas, a tomar decisões, arriscar, organizar taticamente suas atitudes.

2ª. aporia: Tradicionalmente se opõem jogo e trabalho: o primeiro identificado pelo caráter fútil, gratuito e prazeroso; o segundo, por ser utilitário, sério e penoso (como se o jogador (como se o trabalhador não jogasse, ou o jogador não trabalhasse). Ocorre, todavia, quetrabalho (mental e corporal) em todo jogo, assim comojogo em todo trabalho (através das regras e dos riscos envolvidos em toda prática de caráter econômico). Não se pode, aliás, garantir integralmente o resultado de qualquer tarefa, seja ela produtiva ou lúdica. Donde, os riscos e os fatores aleatórios não constituem elementos exclusivos da esfera do ludismo.

3ª. aporia: Segundo Aristóteles, jogo e seriedade se excluem. Ocorre que o jogo vale, se é levado a sério. Recursivamente, há também jogo em toda conduta reputada como séria. O grau de seriedade/ gravidade de uma situação se atesta pela maneira de aventurar-se de quem a enfrenta; de lançar-se heroicamente à ação;l de ir ao encontro das dificuldades e dos problemas. Essa forma de agir se encontra nas situações importantes, todas elas agónes por excelência, que simulam o confronto do homem com seu destinocomo, de resto, melhor se encenou no contexto das tragédias gregas.

4ª. aporia: É Freud quem afirma: O contrário do jogo não e a seriedade, mas a realidade (das Gegensatz zu Speil ist nicht Ernst, sondern Wircklichkeit, 1908: 214).

Jogo e realidade, ao contrário do que assinalada o senso comum, não estão em relação de oposição. Qualquer jogador finge apenas fazer o que ele efetivamente faria, se não jogasse, ou se se encontrasse fora da atividade lúdica. É o caráter ficcional de todo jogo que permite essa triangulação através da qual o jogo toca mais vivamente a realidade. Dito por outras palavras, o canal de comunicação entre jogo e realidade é a metáfora, na qual o jogo se alicerça. Essa idéia é aplicável aos jogos simbólicos (como o xadrez), dos jogos de exercícios e de movimentos. De qualquer forma, o ato de jogar consiste em transportar todo o movimento para um mundo segundo, surreal, por suas implicações e funções, estruturado por um imaginário que lhe fornece sentidos.

O espaço do jogo, por conseguinte, é um espaço potencial, intermediário, entre o real e o imaginário, o presente e o ausente, muito embora se saiba que o jogador, em ação, não sonha, nem delira. Em jogo, ele está plenamente consciente, ativo e atento. Mas é imprescindível levar em conta que o jogo é metafórico. E também onirismo: o jogo é um tipo de sonho acordado (Fink: 1966: 137). Da mesma forma complexa, levando em conta suas contradições internas, não se admite, pois, o jogo excluído da realidade concreta do mundo, onde ele se inscreve. Nem o mundo privado dos jogos que o fundamentam.

Caem por terra, assim, em quatro lances, as aporias ligadas ao jogo.

 

O jogo no campo filosófico

O jogo sai precocemente da cena filosófica, quando Aristóteles o identificou com o divertimento e o repouso. Ter como causa final a si próprio (Política, VIII, 3), trouxe-lhe a pecha de atividade menor, sem alcance, pueril e indigna de ser estudada. O jogo retornará à cena filosófica, a partir do século XVII, quando ultrapassa, por um lado, o caráter ambíguo que o acompanha por toda a Antigüidade; por outro, a desqualificação a ele imposta por Aristóteles, na Ética prescrita não a Nicômaco, mas a toda a tradição cristã-medieval e científico-humanista, intolerante para com o ludismo. Sob o peso da contradição origináriaque referenda os jogos como prática social, mas os deprecia, do ponto de vista da reflexão moral e teórica, foram necessários quase vinte séculos, até que Pascal, Erasmo, Leipzig e Rousseau, avançando paulatina e progressivamente na elucidação da fenomenologia do jogar, construíssem um novo olhar sobre a questão lúdica e o ludismo, capaz de abrir uma tradição pro ludis.

É todavia com Schiller que a noção de jogo readquire a dignidade formativa que a escola aristotélica[3] lhe negava. Pode-se dizer que ocorre uma “virada do jogo”, na história filosófica dos jogos, que se inicia a partir dos séculos XVI (com Pascal[4]) e XVII (com Leipzig[5] e os estudos de probabilidades, derrotando o acaso) e se completa com as Cartas sobre a educação estética do homem, de Schiller (publicadas em 1795). Schiller reabilita definitivamente o tema do jogo em filosofia, apoiando-se, principalmente em Kant[6]. Schiller concebe, como solução para o problema da divisão antropológica demonstrado no sistema kantiano, a mediação operada pelos jogos entre duas tendências (Triebe) humanas que se opõem: Formtrieb (tendência formal) e Sinnlichetrieb (tendência sensível). Schiller demonstra a capacidade que o jogo tem para realizar o encontro entre preocupações científicas e intenção estética. Nesse sentido, ele funciona como espaço teórico de cruzamento entre práticas sérias e altamente prazerosas; atividades que, não sendo necessariamente belas, virtuosas ou úteis, são necessárias para definir o humano. Em outras palavras, sugere a intervenção da noção de jogo, como agónes, criações da cultura (adiante se retornará a esse ponto), que melhor a explicam

Como se verá ao longo desta explanação, graças ao desenvolvimento que Schiller dá a idéias contidas na Crítica da faculdade do juízo de Kant, a abordagem dos jogos se desloca do campo moral para o estético (COSTA LIMA: 1993, 153-173). É nesse nicho – a Estéticaque a temática lúdica pode atingir a mais alta rentabilidade, vindo a subsidiar a leitura de teóricos que, posteriormente, se valem da metáfora lúdica, na organização de suas premissas e de seu aparato conceitual.

Esse é o caso de Jacques Derrida, que contribui definitivamente para a consolidação do desconstrutivismo francês e conquista um lugar de referência nos estudos literários, quando destrinça do Fedro de Platão a figura-chave de Thot, deus egípcio dos jogos e do lógos, e a torna o termo articulatório de sua teoria sobre o estilhaçamento do corpo textual (análogo ao destino imposto por Thot a Osíris) e a disseminação de sentidos escriturais (após a violência perpetrada contra a fonte da luz, a voz do pai, a arkhé do sentido). na primeira grande parte da obra, é da noção de jogo que o filósofo se vale, em suas palavras de abertura à insuperávelFarmácia de Platão”:

Um texto é um texto se ele oculta ao primeiro olhar, ao primeiro encontro, a lei de sua composição e a regra de seu jogo (DERRIDA: 1991, 7).

No capítulo não gratuitamente intitulado “O jogo: do phármakon à letra e do cegamento ao suplemento”, o termo conceitual com que se fecha a farmácia é o “jogo do suplemento” (idem: 122), sem o qual não se resgata a différance, ou a ipseidade do sentido.

Na mesma linha de rendimento teórico da metáfora do jogo, encontra-se Wolfgang Iser, em cujo “Epílogo” ao Fictício e o imaginário, se lê, igualmente na frase de abertura, que

O jogo do texto resulta de uma transformação de seus mundos de referência, no entanto, deste jogo emerge algo que não pode ser deles deduzido. (...)nãorepresentação sem performance (ISER: 1996, 341).

Ao longo da exposição, a noção de performance vai tornando quase auto-evidente a presença do elemento lúdico, no conceito de mímesis pós-clássica. Situando a mímesis como ato performativo decorrente do “jogo básico que se define no movimento do vaivém entre formar e combinar, e entre esquema e correção[7]” (Idem: 1996, 348. Grifo nosso.), Iser explica o aparecimento do objeto ilusório na esfera perceptiva (empírica e sensível), ao mesmo tempo que reforça a eficiência da solução schilleriana, no tratamento do fenômeno estético[8].

Adorno vai explicar o entrelaçamento essencial entre filosofia interpretativa e materialismo – um dos fundamentos de seu pensamento crítico – também como jogo:

Concedi à facticidade histórica, ou à sua ordenação, o poder que propriamente corresponde às invariantes, às peças ontológicas fundamentais; pratiquei a idolatria do ser historicamente produzido, fiz a filosofia perder qualquer padrão de medida constante, condenei a filosofia um jogo estético de imagens e transformei a ‘prima philosophia’ em ensaísmo filosófico (1996: 340. Grifos nossos).

Nas palavras do próprio Adorno, O movimento que aqui se executa como jogo, o materialismo executa com seriedade (idem).

A dialética, que lhe serve de tema (cf. Dialética do esclarecimento, de 1944), estrutura também o jogo através do qual a interpretação da realidade e sua superação se podem relacionar. O malogro do modelo esclarecido, assim como o blefe da plena positividade, dos quais resultaram um mundo destruído em seus valores humanos e destrutivo pela voragem negocista, são confrontados na análise adorniana de seus resultados: a indústria cultural, a ontologia do Estado falso, a razão autoritária e suas estratégias de subordinação de todo indivíduo, entre outros sintomas de “vida danificada”. A interpretação dessa realidade se viabiliza, se se constitui simultaneamente em teoria e ação; se nega o primado lógico da identidade e as respostas enfáticas, que dissolvem os enigmas, sem apreender-lhes o sistema, o seu mecanismo, o seu jogo interno; se joga o jogo da resistência ao interesse dos sentidos (Widerstand der Interesse der Sinne kantiana, § 29, ou 1995: 114) e, superando-a, se exerce como dialética negativa. Em Adorno é mais clara a conexão que se origina em Kant (“a liberdade é representada antes no jogo do que sob uma ocupação legal”, idem, 115) e passa por Shiller (“para resolver na experiência o problema político é necessário caminhar através do estético, pois é pela beleza que se vai à liberdade”; 2002, 22, ou ainda, falando do artista, “deve moldá-lo [ao Ideal] em ilusão e verdade, nos jogos de sua imaginação e na seriedade de suas ações”, idem, 51), tendo em vista o percurso escolhido (do pensamento político ao estético).

O pensar dialético é, em si, plena expressão lúdica, pelo pluralismo que o determina, pelo esfacelamento de uma ratio auto-centrada, pelos saberes que ele convoca. Nessa perspectiva, quando pensamos dialeticamente, estamos jogando com um enigma. Algo cuja constituição se pode deduzir. Exatamente como Schiller chega à tendência humana ao jogoem termos abstratos, perfeita, para compor a arquitetônica da antropologia schilleriana, tanto quanto para conferir o grau de objetividade à sua teoria estética. Em correspondência a Körner, Schiller (2002) admitiria que sua estética não se podia organizar apenas racionalmente; não podia prescindir da experiência sensível e da empiria. Parece que, recursivamente, ao ensaísta clássico se poderiam atribuir as palavras do frankfurtiano:

O gesto transformador do jogo do enigmanão a mera solução como tal – dá o protótipo das soluções, de que unicamente a práxis materialista dispõe. (...). dialeticamente me parece possível a interpretação filosófica. Quando Marx reprovava aos filósofos que apenas haviam interpretado o mundo de diferentes formas, que apenas o haviam confrontado, tratava-se de transformá-lo. Essa frase não somente é legitimadora da práxis política mas também da teoria filosófica. No aniquilamento da pergunta se confirma a autenticidade da interpretação filosófica e o puro pensamento não é capaz de levá-la a cabo a partir de si mesmo; por isso leva à práxis forçosamente. É supérfluo procurar uma concepção de pragmatismo, em que teoria e práxis explicitamente se cruzem de tal maneira, como na dialética.

Não seria simplismo falar de paralelismo, nos percursos de Schiller e Adorno, a despeito das respectivas peculiaridades: ambos são levados, da questão política à estética; nos dois, teoria e prática se dialetizam e implicam a resultante crítica, negativa, tradutória das racionalidades que arte pode unificar. Continuam os dois a concordar, quando atribuem aos esquemas lúdicos competências análogas às da arte (afinal, os jogos – à custa da ficcionalidade – mimetizam realidades que, de outra forma, não se conseguiriam expressar[9]).

 

O jogo no campo poético

A incorporação da metáfora lúdica, desde Kant e em Schiller, fundamentalmente, à teorização sobre estética, pode ser fartamente ilustrada, em Derrida, Iser e Adorno, apenas para citar alguns de seus maiores representantes. A análise de textos poéticos, entretanto, como a ode de Ricardo Reis (PESSOA: 1972, 267-269) que narra o confronto de dois enxadristas, sai vitoriosa sobre todo o discurso pragmático em torno dos jogos estéticos. Nela, os volteios sintáticos, as figuras de linguagem, a seleção vocabular, o imaginário textual estipulam a realidade à parte presidida pelo pensamento lúdico e organizam a mímesis poética, consoante a realidade do jogo e do enxadrismo mesmo.

 

Conclusão

Nesse horizonte atento às astuciosas camuflagens do ludismo e às aporias que ele encerra, a retórica e a poética funcionam como acervos teóricos, nos quais o ludismo estético arquiva suas regras, estratégias de constituição e reservas de um imaginário tão práxico e plurissígnico quanto o dos jogos. A teoria da literatura de extração contemporânea, seguindo os passos abertos pelos filósofos iluministas, que recuperaram a dimensão epistemológica do jogo, vai desfazer a injustiça praticada pela tradição aristotélica claramente contrária aos jogos e ao pensamento lúdico.

 

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[1] Aos mais remotos rituais da civilização grega e européia se associam as primeiras noções de direito natural, cuja primeira cláusula, a lei justa por excelência, consistia no: dever de sepultar os mortos, que era. no caso dos heróis ou de notoriedades políticas, acompanhado de soleníssimos jogos fúnebres (cf. Ilíada, Canto XXIII, em honra a Pátroclo) O tema retorna na Antígona de Sófocles, no ambiente de plena era democrática e vigência da prática jurídica. A peça explora a dramaticidade dos jogos advocatícios e se organiza, como de resto inúmeras peças do teatro grego, como uma disputa tribunalesca.

[2] Os jogos atléticos se originam dos rituais fúnebres arcaicos, nos quais a vitalidade dos vivos funcionava religiosa e misticamente como nutriente para as almas desvalidas e enfraquecidas dos mortos. Nessa operação de infusão que a escatologia grega preconizava, interferiu em grande medida a concepção democrática, que, por meio do direito sagrado ao sepultamento e às honras fúnebres, convalidava, na vida pós-tumular, a isonomia entre todos os mortos, assim como a solidariedade entre vivos e defuntos.

[3] Platão tem uma posição controversa em relação às práticas lúdicas: aprova-as, para a formação física de cidadãos, mas os desabona, se o jogo é empregado como mediador técnico para outros fins que não o prazer. Por outras palavras, se escapa às prerrogativas do seu programa educacional (é o caso das práticas teatrais e judiciário-democráticas).

[4] Iniciam-se com Pascal as pesquisas matemáticas que provocam uma verdadeira reavaliação intelectual do jogo. Pascal tem duplo interesse nos jogos: como campo de estudo e de reflexão moral. É o que se nas Pensées:
A
única coisa que nos consola de nossas misérias
é o
divertimento, que é, no entanto,
a
maior de nossas misérias
”.

[5] Em carta a seu amigo Montmort, Leipzig declara: "Os homens jamais são mais engenhosos do que na invenção dos jogos; o espírito encontra-se então à vontade” (Apud DUFLO: 1999, 30).. A revalorização leibniziana do jogo vem também do modelo matemático de análise dos problemas (seu interesse pelas probabilidades é maior do que a paixão lúdica).

[6] Nas Cartas (1995), Schiller dá seguimento ao pensamento de Kant, principalmente na Terceira crítica, onde o jogo funciona como termo mediador que coloca em circulação as faculdades ali descritas (cf. KANT: 1995, 90).

[7] No original: "(Interaktion aber ist schon ein) Spiel des Hin und Her, das sich zwischen making und matching genauso wie zwischen Schema und Korrektur vollzieht." (1993: 491).

[8] Remeto ao texto de Maria Antonieta Jordão de O. Borba, “Construção do objeto estético: as relações entre mímesis/performance e schema/correção”, que se encontra em NUÑEZ: 2003. Um interessante desdobramento da noção de “jogo do texto” foi dado por Mela Kocher, em sua análise de alguns jogos virtuais à luz da teoria iseriana da textualidade (Spielwelten. Pixel-Bücher machen Geschichte), em http://www.ds.unizh.ch/kjmedien/publis/dd_mk_2.pdf.

[9] O caso de Hamlet cabe perfeitamente aqui: sem provas contra o assassino de seu pai e sua cúmplice, o príncipe se propõe a dirigir a cena incriminatória. Com a fala final (Ato II, cena 2) - ”The play is the thing” (grifos nossos) - ficam simultaneamente justificados o impedimento psicológico e a encenação, num único verso, exatamente naquele em que se acumulam outras associações: a de play, como peça e como jogo, possível em algumas línguas, como o inglês e o alemão; o dúplice play e o que lhe subjaz, inacessivel, inominável, fundo absoluto de todas as razões e desrazões, designado psicanaliticamente por das Ding.