PRESENÇA DO LATIM CLÁSSICO

Amós Coêlho da Silva (UERJ e UGF)

Não foi apenas o domínio militar que impôs a língua latina na Europa Ocidental, durante a campanha geopolítica de Roma. Historicamente são mais de vinte séculos de hegemonia do latim. Os avanços científicos eram sempre escritos em latim e a Igreja rezou, esporadicamente ainda ocorre, em todo o mundo cristão, a missa em latim. Nas escolas o latim ocupava destaque nos currículos acadêmicos. Para muitos estudiosos, o latim perdeu o prestígio devido à exigência irrefutável e rigorosa de aprendê-lo com esmerada dedicação, o educando teria de praticá-lo ex cathedra, pois o domínio do latim substituiria o saber do conhecimento restante.

O fato é que a história de Roma Antiga se confunde com a necessidade do estudo da língua dos antigos romanos. Através do que o latim assimilou das civilizações antigas é que temos a dimensão histórica daquelas civilizações. A conseqüência disso é a constatação nas línguas modernas de irrefutável presença do latim. Os romanos dominaram militarmente quase toda a Europa e todas as colônias gregas, mas não de maneira predadora, porque, agindo como ótimos alunos, assimilaram as lições dos povos dominados. Da Grécia, em particular, assimilou os fundamentos de sua civilização e múltiplos aspectos lingüísticos.

Inspirados na literatura, filosofia, história e outros segmentos da civilização helênica, os escritores latinos assimilaram processos lingüísticos do grego. O latim, em relação à sua matriz - o indo-europeu, havia perdido alguns elementos lingüísticos, que ainda eram praticados pelos gregos. O poeta Lucrécio é continuidade da linguagem limada de Lívio Andronico, o primeiro dramaturgo latino, Névio, que ultrapassou o seu antecessor por imprimir em sua obra características do pensamento romano, Ênio, o introdutor do hexâmetro datílico.

Ora, Lucrécio, como elo dessa corrente, notou que havia uma rerum nouitatem, novidade de assunto (De rerum natura, I, 139), entre os gregos, exigindo uma criação de neologismos para que se pudesse dar competência ao idioma do Lácio, superando a egestatem linguae (idem), a pobreza da língua (latina); por isso, no seu esforço de expressão clara, recriou um novo item de processo de formação vocabular, compondo em latim uma nova forma, que contém numa única palavra uma estrutura frasal, como era comum entre os gregos, como nestes três exemplos do livro I: squamigerum (v.162) (squamirger= squama + ger- - o que leva escama sobre si); siluifragis (v.275) (siluifragus= silua + frag-, o que quebra as árvores das florestas); montiuagus (v.403) (mons +vagus - o que percorre as montanhas) etc. Alguns nomes compostos de radicais em português conservam a disposição habitual da sintaxe clássica dos helenos e latinos, além de, às vezes, preservar as desinências casuais latinas: jurisprudência (-is, genitivo singular da terceira), crucifixo (-i, dativo singular da terceira), Deodato (o primeiro -o, dativo singular da segunda), fidedigno (-e, ablativo singular da quinta). Na modernidade, poderemos encontrar os elementos gregos e latinos em vários idiomas modernos, neolatinos ou não, com finalidade de classificação científica de seres e objetos, ou como o caso da nomenclatura de ciências novas, como psicologia, sociologia, etc.

Há também um jogo de prefixação e sufixação, mais do que estilístico, que já vinha ocorrendo, por exemplo, com o sufixo -ura, em Plauto: cursura, fictura, desultura, sont les substantifs verbaux de ‘currere, fingere, desilire’ (MARROUZEAU, 1949: 113)

L’usage de in- privatif s’est particulièrement dévolppé dans la latinité imperial (dans Ovide seul, on compt comme neologismes ‘incommendatus’ (desrespeitado, ultrajado), ‘inconsumptus’ (não consumido, eterno), ‘incustoditus’ (desprovido de guarda) (etc.) (ERNOUT, A. & MEILLET, A., 1985: 311)

Através dos séculos, operaram-se muitas mudanças na língua latina, até que se transformasse em romanço lusitano com padronização de vocabulário a partir de uma estrutura popular tanto fonológica e quanto morfológica. De modo que os empréstimos vieram a se adaptar ao novo sistema fonêmico e estruturação silábica, conforme um aporte do latim vulgar, que se encontra numa constante tendência nas mudanças das formas das palavras latinas impostas pelo romano vencedor. Por exemplo, a desnasalização em sinu > senu > seo > seio; arena > area > areia; frenu > freo > freio; a crase em lana > lãa > lã, pede > pee > pé, nudu > nuu > nu, videre > veer > ver, sede > see > sé; a queda das sonoras intervocálicas em gradu > grau, nodu > noo > nó. Desde a influência positivista do século XIX, se passou a denominar essas mudanças de evolução e as suas causas seriam provenientes de leis fonéticas. Modernamente, tais termos (evolução, família de línguas...) continuam sendo empregados, apesar das restrições. Quanto às leis fonéticas, adotemos tendência fonética ou correspondência fonética pela freqüência das ocorrências fonéticas, exemplificadas acima.

Há, no entanto, os doublets de radicais ou formas divergentes ou alotrópicas, quer dizer, existência de vocábulos diferentes que têm o mesmo étimo, como: macula > malha, mancha, mágoa e mácula; actu > auto e a(c)to; claue > chave e clave. Sendo mácula, a(c)to e clave classificados como eruditos e mancha como semi-eruditos. Os primeiros vocábulos eruditos e semi-eruditos entraram no português pela Igreja, administração romana e ensino escolar. No Renascimento, porém, se não tivesse acontecido a intervenção de escritores, que tinham consciência do parentesco latino do português, não teríamos um vocabulário tão rico nos nossos dias, porque no processo histórico de evolução do latim para o português quase apenas nos restariam aqueles étimos do caso lexicogênico, ou seja, os provenientes por via do acusativo como inteiro, trevas, cadeira. Não reaproveitaríamos o termo íntegro, como primitiva de integralizar, desintegrar, integrante etc.; assim, desconheceríamos tenebroso, tenebrífero, tenebrário etc.; bem como, não disporíamos de catedrático, cátedra etc.

Não teríamos também formas derivadas no nosso vernáculo do Latim Literário das seguintes, que não eram faladas assiduamente pelo povo: domus, equus, bellum, ludus - domicílio, doméstico, domar etc.; eqüino, equitação etc.; bélico, belonave, rebelar, debelar etc.; lúdico, ludismo.

E mais: não teríamos a recondução na Renascença ao modelo latino ao invés do resultado ocorrido no português arcaico de: abundância (em latim: abundantia) pelo arcaico avondança, estimar (em latim: aestimare) por esmar; formoso (em latim: formosus) por fremoso; martírio (do grego ‘martýrion’ pelo latim: martyrium, ii) ao invés de marteiro. Influência da grafia etimológica gerou: digno ao invés de dino; /au/ > /ou/ era o freqüente, mas passamos a ter em português áureo que é do mesmo étimo de ouro e o doublet causa e cousa.

Essa operação lingüística se tornou bastante compacta durante o Renascimento, cujos autores recriaram os recursos de ampliação vocabular nos moldes dos clássicos antigos. Assim, são lidos múltiplos exemplos em Luís Vaz de Camões, o marco inicial do português moderno: Tágide (ninfa do Tejo - pelo latim Tagus, -i + sufixo -ide, variante de -ida: Ilíada, Eneida e Os Lusíadas. O termo grego ‘eupatrídes’ significa nascido de “bom pai”, composta com um sufixo indicativo da filiação (-ides). Por isso, o gramático latino Varrão batizou o caso latino de patricus casus ou patrius casus (LL VIII, 66, 67; IX, 54, 76, 85) - transposição de geniké ptôsis.). Na Grécia antiga, estruturada no patriarcalismo, se recebia o nome do pai, bem como no mundo germânico, ora dominador do Império Romano, o que provavelmente era comum no indo-europeu - é o que se chama patronímico. No mundo ibérico, se formou este patronímico com o sufixo -ici (sendo o a terminação -i, um genitivo - com o seu real significado de “relativo ao que foi gerado”). A evolução desta forma veio a dar em espanhol -ez e em português -es, que manteve a significação de filho de, como em: Álvares, Gonçalves, Henriques.

Os particípios presentes entraram no português como adjetivos: amante, (de amare, amar); cadente (de cadere, cair), conveniente (de convenire, convir)... Por influência do Renascimento italiano, entra no português clássico o adjetivo na forma superlativa similar ao latim clássico: felicissimu-; facilimu; pauperrimu-... com preservação do tema clássico de felix, felicis: felic- e pauper, pauperis: pauper-. Os nomes próprios em latim eram dispostos em forma tríplice: o nome de seu grupo consangüíneo, devido ao seu antepassado comum, a gens de onde a família descendia: Cornelius, Tullius, Iulius, etc.; cognome, identificando o grupo familiar menor: Scipio, Gracchus, Cicero, Caesar, etc.; os prenomes, a identificação individual: Publius, Tiberius, Marcus, Caius. O que formava um tria nomina, uma característica do povo romano: Tiberius Cornelius Gracchus, Marcus Tulius Cicero, Caius Iulius Caesar. A Igreja consagrou o prenome no batismo.

Ora, se passamos em português de cem mil no dicionário do Antenor Nascentes a mais ou menos trezentas mil palavras no Antônio Houaiss, é porque dispomos desse inventário em aberto, fundamentalmente graças à estruturação dos elementos latinos de prefixação, sufixação e radicais gregos e latinos, estruturação essa proveniente do modelo da língua clássica da Antigüidade e como prática renascentista.

Já se comentou acima o resultado da aproximação do latim clássico com a literatura helênica, no qual tomamos, por exemplo, a contribuição de Lucrécio, nas palavras compostas por radicais, dada a sua necessidade de dispor de um vocabulário capaz de traduzir o pensamento filosófico de Epicuro e a de Plauto na sufixação -ura, que denota ação. Sufixação também se ampliou no emprego e se especializou cientificamente. Alguns sufixos formadores de nomes técnicos são:

-ite: (inflamação) pleurite, rinite, estomatite, nefrite. Mas não em dinamite, grafite, estalactite; neste três exemplos, o sufixo -ite indica mineral;

-ose: (do gr. -osis, estado mórbido, doença) neurose, psicose, esclerose (‘sklerós’,duro);

-oso (do lat., cheio de - variante de -ose, em ancilostomose) e -ico (do gr., relativo a): (distinguem óxidos, anídridos, ácidos e sais, reservando-se o último para os compostos que encerrem maior proporção do metalóide empregado) cloreto mercuroso, cloreto mercúrico. O elemento -oso, cheio de, é mais comum que -ose e, além do emprego técnico, é mais fluente no âmbito da comunicação em geral: -oso: belicoso, amoroso, cheiroso...

Os prefixos, que são antigas preposições e advérbios do grego e do latim, continuam a denotar movimento e situação no tempo e no espaço, conforme esquema abaixo:

Quanto ao movimento temos, por exemplo (NUNES, A.V. & LEITE, R. A. S., 1975: 134):

1 - para frente: projetar, progredir;

2 - para trás: retroceder, regredir

3 - para dentro: importar, introjetar;

4 - para fora: exportar, extrair, por exemplo.

Quanto à posição ou situação, por exemplo:

1 - dentro: intramuscular, introspectivo;

2 - fora: extraordinário;

3 - embaixo: subsolo, subchefe;

4 - em cima: superposição, supercílio;

5 - contrária: contraveneno, antipático;

6 - dos dois lados: ambidestro, anfíbio, etc.

Donde, temos o seguinte quadro sinótico:

 

 

 

 

 

 

 

Os sufixos e prefixos, bem como os radicais gregos e latinos, compõem um inventário comensurável que favorecem a memorização bem ampla do vocabulário português. Segue-se breve exemplo (NUNES, A.V. & LEITE, R. A. S., 1975: 129 e 130) de sua aplicação:

Formação de múltiplos vocábulos com apenas duas das formas de um mesmo verbo:

1 - premo, premis, premere, pressi, pressum: apertar - Português: -prim- / -press- 2 - duco, ducis, ducere, duxi, ductum: levar - Português duz- / -duc- / -dut- 3 - pello, pellis, pellere, pepuli, pulsum: impelir - Português pel- / -puls-

-prim- / -press-: a) Verbo b)Subst. -ão c)Subst./adj. -or

1 - Formas simples

2- Re- _________________________________________________
3 - In-/im- ______________________________________________
4 - Com-/con- ___________________________________________
5 - Ex- ________________________________________________
6 - Pro- ________________________________________________
7 - De- ________________________________________________

II) -duz- / -duc- / -dut-: a)Verbo b) Subst. -ão c)
Subst./adj. -or

1 - Formas simples

2 - Re- ________________________________________________
3 - In-/im- ______________________________________________
4 - Com-/con- ___________________________________________
5 - Ex- ________________________________________________
6 - Pro- ________________________________________________
7 - De- ________________________________________________


III) -pel- / -puls-: a)Verbo b)Subst. -ão c)
Subst./adj. -or

1-Formas simples pulsar pulsão

2-Re-_________ repelir____ repulsão_____ repulsor ______
3 - In-/im- ______________________________________________
4 - Com-/con- ___________________________________________
5 - Ex- ________________________________________________
6 - Pro- ________________________________________________
7 - De- ________________________________________________

O estudo da formação do vocabulário português não é muito freqüente nos bancos escolares hoje em dia. Esta nova moda nas escolas corresponde o que já se observou na modernidade: a prática de estudar o português com apenas frases soltas, sem recorrer à leitura dos clássicos.

Bibliografia

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CÂMARA JR., J. Mattoso. História e Estrutura da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Padrão, 1976.

------. Princípios de Lingüística Geral. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1970.

------. Dicionário de Filologia e Gramática. Rio de Janeiro: J.Ozon, s/d.

COUTINHO, Ismael de Lima. Pontos de Gramática Histórica. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1969.

ERNOUT, A. & MEILLET, A. Dictionnaire Ethymologique de la langue latine: Histoire des mots. Paris: Klincksieck, 1985.

FIGUEIREDO, J. N. & ALMENDRA, M. A. Compêndio de Gramática Latina. Porto: Porto Editora, 1977.

JOTA, Zélio dos Santos. Dicionário de Lingüística. Rio de Janeiro: Presença, 1976.

MACHADO, J. P. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Lisboa: Confluência, 1967.

LUCRÈCE. De la nature. Texte établi et traduit par Alfred Ernout. Paris: Les Belles Lettres, 1948.

NUNES, Amaro Ventura & LEITE, Roberto Augusto Soares. Comunicação-Expressão em Língua Nacional. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1975.