A intertextualidade
e o ensino de Língua Portuguesa

Renata da Silva de Barcellos
(C.E.Ten. Otavio Pinheiro)

O texto e o ensino de Língua Portuguesa

Primeiramente, faz-se necessário dizer que, neste trabalho, texto é entendido como “toda unidade de produção de linguagem situada, acabada e auto-suficiente do ponto de vista da ação ou da comunicação” (Bronckart, 1999). O texto é o elemento básico com que devemos trabalhar no processo de ensino de qualquer disciplina. É através do texto que o usuário da língua desenvolve a sua capacidade de organizar o pensamento/conhecimento e de transmitir idéias, informações, opiniões em situações comunicativas.

Pode-se dizer assim que, sobretudo, no ensino de língua portuguesa, os constantes desafios encontrados pelo professor são: compreender o texto como um produto histórico-social, relacioná-lo a outros textos já lidos e/ou ouvidos e admitir a multiplicidade de leituras por ele suscitadas.

Tal entendimento do que seja texto evidencia a necessidade de trabalhar, em sala de aula, com vários gêneros textuais, usados em diferentes situações e com objetivos diversos: construir e desconstruir esses textos, ressaltando os efeitos provocados pelas alterações, criar intertextos, verificar o gênero textual e modificá-lo etc. Portanto, para realizar esse tipo de trabalho com a língua portuguesa, o professor precisa ter consciência da diferença entre saber usar uma língua, adequando-a convenientemente a contextos e saber analisá-la, tendo conhecimento de conceitos sobre sua estrutura e funcionamento e a nomenclatura gramatical pertinente.

Atualmente, a escola enfatiza o trabalho da leitura e da produção de textos, tentando equilibrá-lo com a análise das estruturas da língua e com seu uso. Dessa forma, através da interação com vários gêneros textuais e o intertexto presente neles, o professor pode investigar a experiência anterior do aluno enquanto leitor de palavras e de mundo e seguir pistas deixadas pelo autor no texto para considerar também o implícito, inferindo, assim as intenções do autor.

Então, o aluno, por sua vez, desempenha ora o papel de leitor, ora o papel de produtor de textos, ou seja, aquele que pode ser entendido pelos textos que produz e que o constituem como ser humano.

A intertextualidade

O processo ensino/aprendizagem de Língua Portuguesa deve basear-se assim em propostas interativas a fim de promover o desenvolvimento do indivíduo numa dimensão integral. Portanto, nessa perspectiva, o trabalho do professor é, dentre outros, desenvolver no aluno a capacidade de identificar um intertexto. . A intertextualidade é “um fenômeno constitutivo da produção do sentido e pode-se dar entre textos expressos por diferentes linguagens” (Silva, 2002). O professor deve, então, investir na idéia de que todo texto é o resultado de outros textos. Isso significa dizer que não são “puros”, pois a palavra é dialógica. Quando se diz algo num texto, é dito em resposta a outro algo que já foi dito em outros textos. Dessa forma, um texto é sempre oriundo de outros textos orais ou escritos. Por isso, é imprescindível que o professor leve o aluno a perceber isso.

Assim, a utilização da intertextualidade deve servir para o professor não só conscientizar os alunos quanto à existência desse recurso como também utilizar um modo mais criativo de verificar a capacidade dos alunos de relacionarem textos.

A intertextualidade ocorre em diversas áreas do conhecimento. Eis abaixo algumas delas:

A literatura: por exemplo, entre Casimiro de Abreu “Meus oito anos” e Oswald de Andrade “Meus oito anos”. Aquele foi escrito no século XIX e este foi escrito no século XX. Portanto, o 2 texto cita o 1, estabelecendo com ele uma relação intertextual.

 

 

Meus oito anos Oh! Que saudade que tenho Da aurora da minha vida, Da minha infância querida Que os anos não trazem mais Que amor, que sonhos, que flores Naquelas tardes fagueiras À sombra das bananeiras Debaixo dos laranjas! Casimiro de Abreu Meus oito anos Oh! Que saudade que tenho Da aurora da minha vida, Da minha infância querida Que os anos não trazem mais Naquele quintal de terra Da rua São Antônio Debaixo da bananeira Sem nenhum laranjais! Oswald Andrade

A pintura: o quadro do pintor barroco italiano Caravaggio e a fotografia da americana Cindy Sherman, na qual quem posa é ela mesma. O quadro de Caravaggio foi pintado no final do século XVI, já o trabalho fotográfico de Cindy Sherman foi produzido quase quatrocentos anos depois do quadro. Na foto, ela recria o mesmo ambiente e a mesma atmosfera sensual da pintura, reunindo um conjunto de elementos: a coroa de flores na cabeça, o contraste entre claro e o escuro, a sensualidade do ombro nu etc. A foto de Sherman é uma recriação do quadro de Caravaggio. Aquela, explícita e intencionalmente, cita este ao manter quase todos os elementos do quadro original.

O jornalismo: - a publicidade - um dos anúncios do Bom Bril em que o ator se veste e se posiciona como se fosse a Mona Lisa de Da Vinci e cujo enunciado-slogan é “Mon Bijou deixa sua roupa uma perfeita obra-prima” Esse enunciado sugere ao leitor que o produto anunciado deixa a roupa bem macia e perfumada, ou seja, uma verdadeira obra-prima (se referindo ao quadro de Da Vinci).

Quanto à intertextualidade na publicidade, pode-se dizer que ela assume a função não só de persuadir o leitor como também de difundir a cultura, uma vez que se trata de uma relação com a arte (pintura, escultura, literatura etc). Assim, quando há a utilização deste recurso, boa parte do efeito de uma propaganda ou do título de uma reportagem é proveniente da referência feita a textos pré-existentes. Esses textos ora são retomados de forma direta, ora de forma indireta, levando o destinatário a reconhecer no enunciado o texto citado. (Portanto, segundo Almeida, pode tratar-se da citação tanto de um enunciado cuja autoria é reconhecida (Os documentos são “imexíveis) usando o neologismo criado pelo ministro do trabalho Magri “imexível”); quanto de um enunciado anônimo pertencente ao patrimônio social (um político) diz: “Se Lincoln fosse vivo, ele estaria rolando no túmulo”, fazendo alusão a este enunciado “Fulano deve estar rolando no túmulo” cujo valor é de descontentamento.

Intertextualidade
uma proposta de classificação

Apresentaremos a seguir uma proposta de classificação de intertextos com base no corpus selecionado a fim de trabalhá-lo em sala de aula de Português e de Literatura.

Clichê: é o enunciado que se transformou em uma unidade lingüística estereotipada por ser muito proferido pelas pessoas. Num jornal sobre esportes foi criada uma charge com o enunciado: “Por trás de todo grande time há um grande treinador”. Tal enunciado remete a outro pertencente ao patrimônio social “Por trás de todo grande homem há uma grande mulher”. O enunciado do jornal, na época, pretendia elogiar a conduta do treinador pelo fato do time Vasco ter ganhado o campeonato.

Outro exemplo destacado foi o da publicidade do Sesi a respeito de um concurso de empresas sobre a qualidade no trabalho. O slogan da publicidade era: “Se o trabalho dignifica o homem, o trabalho em equipe o torna um vencedor”. Observa-se que a partir de um clichê “O trabalho dignifica o homem”, utilizado numa estrutura com valor condicional “Se o trabalho...”, ressalta-se em seguida a importância do trabalho em equipe “...o trabalho em equipe o torna um vencedor”.

Proverbial: é um enunciado popular que expressa de forma sucinta uma mensagem. O título de uma reportagem sobre funcionários e ações trabalhistas: “Depois do suor, o desamparo” que remete ao provérbio “Depois da tempestade vem a bonança”. Sendo que ao contrário desse (depois dos fatos negativos vem o positivo), o título da reportagem sugere que depois de todo esforço “suor”, os funcionários não obtiveram o que almejavam: o reconhecimento. Foram vítimas do desemprego “desamparo”.

Palavrão: é o enunciado que apresenta uma palavra grosseira ou obscena. O jornalista Agamenon, responsável por uma matéria do Segundo Caderno do jornal O Dia, cuja característica é o humor, nomeou uma de suas matérias de Cuba se Fidel. No mesmo, observa-se a alusão ao palavrão “se foder” e um jogo entre este e o nome do presidente de Cuba, Fidel Castro, por causa da semelhança fonética “Fidel e fodeu”.

Bíblico: quando o enunciado menciona uma passagem da Bíblia. O título de uma reportagem sobre o turismo na Ilha Grande “A fé move turistas nas trilhas da Ilha Grande” se referindo à passagem bíblica que diz: “A fé move montanha”.

Literário: quando o enunciado se refere a verso(s), a passagem (ns) ou a título (s) de obra.

- Exemplo de título de obra: A publicidade da marca Ceramidas usa como slogan o seguinte enunciado: “Dona flor e seus dois produtos”, que, por sua vez, se reporta a uma das obras de Jorge Amado intitulada Dona flor e seus dois maridos. Observa-se assim que na publicidade Dona Flor é representada pela marca Ceramidas e os dois produtos pelo xampu e pelo condicionador.

Uma matéria da revista Isto é intitulada: “E o vento levou” sobre produtos de cabelo é o título de uma obra de Margaret Mitchell. Essa matéria mostra como os produtos mencionados deixam os cabelos leves e soltos.

- Exemplo de verso: O título de uma reportagem: “Infinito, mas enquanto durou” se referindo ao verso de Vinícius de Moraes “que seja infinito enquanto dure” que, por sua vez, faz alusão ao pensamento de Sofocleto: “O amor é eterno enquanto dura”.

Musical: quando a letra de uma música se reporta a outra letra já existente. Num trecho do rap Sem saúde de Gabriel O Pensador, o compositor diz: “... me cansei de lero-lero / dá licença mas eu vou sair do sério...” mencionando uma das músicas de Rita Lee.

Considerações Finais

O objeto de estudo deste trabalho, a intertextualidade, serviu para ilustrar a importância do conhecimento de mundo e como esse fator interfere no nível de compreensão do texto. Pois, embora o aluno-leitor não identifique o intertexto, vai entendê-lo. Mas ao relacionar um texto com outro, compreenderá o texto lido na sua profundidade e por conseqüência será capaz de refletir sobre o recurso adotado pelo autor para quando for compor textos. Dessa forma, na aula de Português, por exemplo, o aluno compreenderá que a intertextualidade é um das estratégias utilizadas para a construção de um texto. No caso específico da publicidade, quando utiliza a intertextualidade é uma forma diferente de persuasão cuja intenção é de levar o leitor a consumir um produto e de também difundir a cultura.

Enfim, a intertextualidade deve fazer parte do planejamento do professor de Português e de Literatura. Pois, afinal, é a cultura do país e do mundo que estão em movimento. Cabe a ele, então, levar o leitor a reconhecer intertextos e a redigir utilizando também esse recurso.

 

Referência bibliográfica

ALMEIDA, Fernando Afonso de. Desvios e efeitos na produção de enunciados. In Boletim da ABRALIM. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2001.

AMOSY, R. Imagens de soi dans le discours. Lausanne: Delachaux, 1999.

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1986.

BENVENISTE, E. Problemas de lingüística geral. São Paulo: National Edusp, 1976.

BRASIL. Secretaria de Educação. Parâmetros curriculares nacionais: Ensino Médio. Brasília: MEC, 2002.

BRONCKART, J. P. Atividade de linguagem, textos e discursos. São Paulo: EDUC, 1999.

LEMOS, Cláudia de. Aquisição da linguagem [Minicurso]. Rio de Janeiro: UFF, 2001.

CUNHA, José Carlos. Pragmática lingüística e didática de línguas. Belém: UFPA, 1991.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio Século XXI. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

GOFFMAN, E. A elaboração da face. In FIGUEIRA, S. A. (org.) Psicanálise e Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1980.

KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine. L implicite. Paris: A. Colin, 1986.

------. Les interactions verbales. Paris: A. Colin, 1990.

------. Les actes de langage dans le discours. Paris: Nathan, 2001.

KOCH, I. A interação pela linguagem. São Paulo: Contexto, 1997.

LEONARDO. Extra. Rio de Janeiro, 2004.

NANI. Vereda Tropical. O Dia. Caderno D. Rio de Janeiro, 2003/2004.

SILVA, Maurício da. Repensando a leitura na escola: um mosaico. Niterói: EdUFF, 2002.