A NOÇÃO DE LETRAMENTO
COMO HORIZONTE POLÍTICO
PARA O TRABALHO ALFABETIZADOR
QUESTÕES PARA A PRÁTICA E PARA A PESQUISA
*

Cecília Goulart (PUC-Rio e UFF)

 

Apresentação do estudo

O estudo tem como objetivo discutir a relevância da noção de letramento para a prática pedagógica de alfabetização e para a pesquisa da área, tomando como base as categorias de polifonia, linguagem social e gêneros do discurso da teoria da enunciação de Bakhtin.

O processo de alfabetização é concebido como a aprendizagem da escrita inserida no mundo social da escrita, o mundo letrado. O ponto de partida pressuposto é a ideologia do cotidiano, neste caso o conhecimento de mundo das crianças, especialmente aquele relacionado a práticas ainda que sutis de escrita, e seus desejos e necessidades em relação a esta prática cultural, dando concretude aos sistemas de referências constituídos. Estes sistemas caracterizariam modos diferentes de ser letrado.

No sentido do acima exposto, discute-se como a sala de aula, entendida como um espaço discursivo, pode ser um espaço em que estejam disponíveis e circulem diferentes linguagens sociais, por meio de variados gêneros do discurso, constituindo-se como um lócus polifônico. Novas textualidades, novas formas de conhecer o mundo e novos conhecimentos, estas são as relevantes introduções que o mundo da escrita possibilita às pessoas. Os modos como os textos se organizam espacialmente, discursivamente, sintaticamente, lexicalmente, argumentativamente, entre outras possibilidades, expressam modos de apresentar e de dividir o conhecimento das diferentes áreas, ordenando-o e, de uma certa forma, codificando-o.

A noção de polifonia é entendida na perspectiva dialética, tanto do que se repete nos discursos e cria, em diferentes grupamentos sociais, e de modo relativamente estável, significações e gêneros de discurso, quanto do que se diferencia nos discursos e permite pensar o signo ideologicamente aberto para diferentes interpretações. Como essa noção tem sido relacionada às vozes dos sujeitos, podemos pensar tanto em vozes que se aproximam, consonantes, quanto em vozes que se afastam, dissonantes.

A noção de polifonia é vista como básica para a compreensão da noção de letramento no sentido de que o letramento está relacionado ao conjunto de práticas sociais, orais e escritas, e a instituições, atravessados pelo poder que a língua escrita possui na sociedade e aos conteúdos a que, histórica e culturalmente, essa modalidade de linguagem está associada (ver Gnerre, 1985). Estaria, conseqüentemente, relacionado de modo forte à formação dos diferentes campos de conhecimento e das diferentes configurações discursivas. Assim, vivendo em sociedades letradas, tanto os sujeitos escolarizados, quanto os não escolarizados são afetados de alguma forma pelo fenômeno do letramento.

 

Contextualizando a relação
entre alfabetização e letramento

O conceito de alfabetização vem-se modificando através dos tempos. Podemos relacionar tais modificações a determinantes político-sociais que historicamente trouxeram mudanças para a própria organização discursiva da linguagem escrita, associadas a novas demandas culturais para esta modalidade de linguagem (ver Morrison, 1993).

O papel que a escrita assumiu, por sua vez, nas sociedades chamadas letradas forma o que Rama (1985) denominou de cinturão de poder, que se caracteriza pelo acesso de um grupo social privilegiado aos conhecimentos de ordem jurídica, científica e literária, entre outros, e que são produzidos na forma escrita, o que mantém afastada das decisões políticas parte expressiva da população. Desse modo não se escamoteia o caráter excludente das sociedades capitalistas.

Estes determinantes, brevemente aludidos acima, tensionam o conceito de alfabetização e a prática alfabetizadora, condicionando-os de diversos modos. Por conta de fatores relacionados àqueles determinantes, a luta contra o analfabetismo no Brasil, apesar de ser uma luta antiga, mostra resultados tímidos, se considerarmos a realidade dos países desenvolvidos. No contexto desta reflexão está a questão do alfabetismo funcional que tem sido largamente apresentada em pesquisas e em testes nacionais e internacionais, como o PISA, SAEB, INAF. Isto quer dizer que além dos cerca de 16 milhões de analfabetos, temos uma parcela significativa da população que, embora considerada alfabetizada pela escola, não e não escreve além do próprio nome, de pequenos bilhetes e de outras mensagens simples do cotidiano. Estas pessoas têm acesso à escrita, mas não participam do mundo da escrita de uma forma plena; estão fora do cinturão de poder, para usar a expressão de Rama.

A entrada da noção de letramento no contexto dos estudos e da discussão sobre alfabetização tem-se mostrado relevante, então, para melhor esclarecer a diferença posta acima entre acesso à escrita e acesso ao mundo da escrita, principalmente em países como o nosso, com alto índice de analfabetismo, como diz Soares (2003).

O processo de ensino-aprendizagem da língua escrita tem sido marcado por uma preocupação grande com o que vou chamar de micro-aspectos[1] da linguagem escrita, isto é, com a relação fonema-grafema, com o desenho das letras, com o tipo de letra a ser utilizado, contextualizados por uma visão estrutural da língua em que se destacam exercícios para separação de sílabas, para substituição de letras e sílabas na formação de novas palavras e, mesmo, frases, entre outros exercícios, voltados para o treino ortográfico e para estudos gramaticais de cunho normativista, como número e gênero de substantivos; grau de adjetivos; o uso de formas verbais, no singular e no plural, no presente, pretérito e futuro. Os micro-aspectos de um modo geral também são contextualizados pela crença de que a escrita é a fala por escrito, o que pode acarretar uma série de equívocos metodológicos.

A língua desse modo é trabalhada de uma forma fragmentária e descolada de seus usos e funções sociais. De um modo geral, o estudo de aspectos discursivos da linguagem escrita têm sido deixados para uma fase escolar posterior, acreditando-se que primeiramente a criança deve aprender a escrita para, em seguida, aprender a fazer uso da linguagem escrita, ou entrar no mundo da escrita. O uso da língua fica, então, subordinado à análise da língua. Esta questão vem sendo bastante discutida, principalmente a partir de 1980, quando os estudos lingüísticos, psicolingüísticos, sociolingüísticos e do discurso começaram a dialogar de modo mais efetivo com a área de Educação. Desde então, também, vem-se debatendo novas formas de conceber a alfabetização e, ao mesmo tempo, novos princípios e diretrizes para a prática de alfabetização.

Da forma como vimos considerando, a noção de letramento ganha relevância na relação com o processo de alfabetização, principalmente, porque destaque (i) aos usos e funções sociais da linguagem escrita; (ii) ao atravessamento da linguagem escrita na fala de quem é letrado; (iii) aos modos como instituições, objetos, situações, procedimentos, de vários tipos, estão impregnados das marcas da escrita e de seus valores sociais.

Conceber a alfabetização na dimensão do letramento possibilita aliar os micro-aspectos comentados anteriormente com os macro-aspectos, relacionados com o conhecimento da organização discursiva dos textos; de instituições, atividades e situações sociais que são marcadas pela linguagem escrita em diferentes esferas sociais de conhecimento; de gêneros discursivos e de suas particularidades e usos, entre outros aspectos. A aliança entre os micro-aspectos e os macro-aspectos do processo de aprendizagem da linguagem escrita vem recentemente merecendo a atenção de pesquisadores e professores, que se observa uma tendência para ou se privilegiarem uns, ou outros, e de uma forma e de outra se deixam conhecimentos importantes para aquela aprendizagem de lado. Segundo Soares (2003), os processos da alfabetização e de letramento, embora processos distintos, são interdependentes e indissociáveis.


 

Aprofundando a compreensão do problema: polifonia, linguagens sociais
e
gêneros do discurso

Os estudos que venho realizando desde 1992 (Pacheco, 1992; 1994; 1995; 1997; Goulart, 2001; 2003) vêm deixando à mostra caminhos que as crianças percorrem para se tornarem alfabetizadas, bem como conhecimentos que estão envolvidos nestes processos. Vêm, do mesmo modo, contribuindo para a reflexão sobre novas possibilidades de ação pedagógica com a língua escrita, na perspectiva de se repensarem metodologias de trabalho que favoreçam a formação de sujeitos letrados. A formação destes sujeitos estaria intimamente relacionada à construção da autoria e da cidadania, na medida em que associamos estas condições à condição letrada, isto é, à inclusão e participação efetivas dos sujeitos no tecido social que se constitui com apropriação da chamada variedade padrão da língua e da linguagem escrita. Nesta perspectiva, sugerimos a noção de letramento como horizonte ético-político para a ação pedagógica nos espaços educativos.

A teoria da enunciação de Bakhtin, entre outros autores, tem sido uma fonte importante para o aprofundamento da compreensão das especificidades do processo de alfabetização na dimensão do letramento, ou seja, mais especificamente para o entendimento dos macro-aspectos deste processo. E como as formulações teóricas de Bakhtin têm contribuído para adensar tal compreensão?

Partimos do princípio de que a constituição do sujeito, da linguagem e do conhecimento está irremediavelmente interligada, entendendo que constituir linguagem é constituir sistemas de referências do mundo (Franchi, 1992). Esses sistemas de referência são interpretações possíveis que grupos humanos organizam do mundo ou de aspectos do mundo e podem/devem ir-se tornando cada vez mais abrangentes. Ao mesmo tempo, existem interpretações diferentes para complexos de saberes semelhantes, sem que isso signifique que uma interpretação, ou um sistema de referências, possa ser a correta. Pode-se falar entretanto de interpretações mais e menos valorizadas socialmente.

Os modos como as pessoas expressam suas vivências, crenças, sentimentos e desejos são suas formas subjetivas de apresentar seus conhecimentos e suas relações com o mundo. São, portanto, as interpretações possíveis no/do interior de seus universos referenciais antropoculturalmente formados. A linguagem tem um papel fundador neste processo, não do ponto de vista da construção da singularidade dos sujeitos, mas também da construção das suas marcas de pertencimento a determinado(s) grupo(s).

O destaque dado por Bakhtin ao estudo da linguagem na perspectiva da enunciação ressalta a natureza social da situação de produção. É pela linguagem, na linguagem e com a linguagem que os feixes de sentidos se constroem, dialogam e disputam espaço, instaurando-se como signos ideológicos. O Outro, como parte constitutiva da situação social de enunciação, permite que o sujeito também seja parte constitutiva dessa organização, constituindo-se. O diálogo, então, é condição fundamental para se conceber a linguagem. A verdadeira substância da língua é constituída pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações (cf. Bakhtin, 1988: 123). No movimento dos sujeitos nas infindáveis situações de enunciação, os signos, pelo seu caráter vivo, polissêmico e ideologicamente opaco, têm sua significação determinada pelos contextos em que são produzidos.

As significações que os signos comportam estão ligadas às experiências da vida cotidiana e à tradição de formação de áreas de conhecimento, como a religião, a ciência, a filosofia, a arte, conformando o que Bakhtin chamou de dialética interna do signo.

Tanto no cotidiano, quanto na tradição de formação de áreas de conhecimento, o autor analisa que foram se constituindo linguagens sociais características, ou seja, foram-se formando modos de dizer a realidade, ou melhor, foram-se formando determinadas textualidades que organizam os discursos, como o religioso, o literário, o científico, o filosófico, entre muitos outros.

Esta reflexão remete à noção de gênero do discurso também desenvolvida por Bakhtin (1992). Para o autor todas as esferas da atividade humana estão relacionadas à utilização da língua. Esta utilização se organiza em forma de enunciados concretos e únicos, orais e escritos. O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma das esferas por meio de três aspectos: o conteúdo temático; o estilo verbal, ligado à seleção operada nos recursos da língua; e, sobretudo pela construção composicional. Este último aspecto estaria mais relacionado à formação de gêneros do discurso.

Cada esfera da atividade humana elabora tipos relativamente estáveis de enunciados que se constituem em gêneros do discurso. Esses gêneros são de uma riqueza e variedade infinitas e marcados pela heterogeneidade. Vinculados às esferas da atividade humana, vão-se diferenciando, e também se ampliando, no caso das esferas se desenvolverem e ficarem mais complexas. Os gêneros organizam os conhecimentos de determinadas maneiras, associadas às intenções e propósitos dos locutores.

O autor atribui grande relevância teórica à distinção dos tipos de gêneros primário e secundário. Os gêneros do discurso secundário aparecem em circunstâncias de comunicação cultural mais complexas e relativamente mais evoluídas, principalmente associados à escrita, diferentemente dos gêneros primários.

Com Bakhtin aprendemos que “o centro organizador de toda enunciação, de toda expressão, não é interior, mas exterior: está situado no meio social que envolve o indivíduo” (p. 121). A noção de polifonia, que entrelaçamos com a de letramento, então, se organiza a partir desse centro organizador, desse exterior, que é povoado de muitas visões de mundo, muitas palavras, muitas histórias, de várias origens, que dialogicamente se fundam no social. Um social não homogêneo, não transparente: um social ideologicamente opaco, constituído de signos.

A noção de polifonia é aqui entendida por meio do fenômeno social da interação verbal como realidade fundamental constitutiva da linguagem e da consciência dos sujeitos. No movimento de interação social os sujeitos constituem os seus discursos através das palavras alheias de outros sujeitos (e não da língua, isto é, ideologizadas), que ganham significação no seu discurso interior e, ao mesmo tempo, geram as contrapalavras, as réplicas ao dizer do outro, que por sua vez vão mobilizar o discurso desse outro, e assim por diante. É então num emaranhado discursivo que se formam o discurso social e os discursos individuais. Como nos acrescenta Bakhtin,

a experiência verbal individual do homem toma forma e evolui sob o efeito da interação contínua e permanente com os enunciados individuais do outro. (...) Nossa fala, isto é, nossos enunciados (...) estão repletos de palavras dos outros, caracterizadas, em graus variáveis, pela alteridade ou pela assimilação, caracterizadas, também em graus variáveis, por um emprego consciente e decalcado. As palavras dos outros introduzem sua própria expressividade, seu tom valorativo, que assimilamos, reestruturamos, modificamos.” (Bakhtin, 1992: 313-314)

Segundo o autor, é nesse movimento também que certos sentidos vão se tornando mais estáveis nas diversas situações sociais, marcadas historicamente, e vão se estabilizando gêneros do discurso, tanto ligados às situações da vida cotidiana, quanto às diferentes esferas simples e complexas da vida social. Ainda de acordo com o autor, os gêneros do discurso primários e secundários se inter-relacionam e, de uma forma imediata, sensível e ágil, refletem a menor mudança na vida social.

Quando Bakhtin afirma que “a variedade dos gêneros do discurso pode revelar a variedade dos estratos e dos aspectos da personalidade individual” (1992, p.283), estabelecemos uma ponte da noção de polifonia com a noção de letramento que é central no nosso estudo. Entendemos que a variedade dos gêneros do discurso (vinculados a linguagens sociais) utilizada por uma pessoa pode revelar a sua variedade de conhecimentos (conhecimentos de vários estratos sociais) e aspectos de sua personalidade, em duas medidas: (i) na medida em que os conhecimentos produzidos pelas diferentes classes sociais circulam na sociedade de um modo geral; e (ii) na medida em que classes sociais diferentes atribuem valores diferentes aos signos ideologicamente constituídos e vivenciam as situações sociais de modos diferentes. O fenômeno do letramento está, na perspectiva que adotamos, associado a diferentes linguagens sociais e gêneros discursivos caracterizando as classes sociais de modo diferente.

Uma questão interessante aparece ao nos colocarmos na perspectiva da noção de letramento e dos aspectos envolvidos. Diz respeito ao modo como o autor encara o processo de formação desses gêneros. Segundo ele, os gêneros secundários absorvem e transmutam os gêneros primários ligados à comunicação verbal espontânea. Nessa transformação, os gêneros primários adquirem uma característica particular: perdem sua relação imediata com a realidade existente e com a realidade dos enunciados alheios.

Refletindo sobre o espaço da sala de aula, podemos pensá-lo como um espaço discursivo e polifônico. Discursivo porque se caracteriza pela produção de linguagem verbal pelos diferentes sujeitos: professores, alunos, autores de livros e materiais escritos, em geral; e polifônico, na mesma direção, que muitas vozes povoam este espaço de várias maneiras. Neste sentido, o letramento visto como o conjunto de práticas sociais, orais e escritas, está relacionado de modo forte à formação dos diferentes campos de conhecimento e das linguagens sociais associadas e dos diferentes gêneros do discurso. A condição letrada é pressuposta intimamente relacionada tanto aos discursos que se elaboram nas diferentes instituições e práticas sociais orais e escritas, quanto aos muitos objetos e formas de expressão sociais, entre elas a expressão em língua escrita.

Trabalhamos com a hipótese de quediferentes modos de ser letrado. As diferenças estariam relacionadas aos cotidianos dos alunos, envolvendo sujeitos, objetos, atividades, e às linguagens sociais que permeiam estes cotidianos por meio de diversos gêneros de discurso.

 

Para finalizar,
algumas
considerações e dados anedóticos
relacionados à
problemática tratada

Na perspectiva de não dissociar alfabetização de letramento, ou seja, os micro-aspectos dos macro-aspectos, nos preocupamos em nãoesconder e camuflar a história das pessoas, do seu trabalho e de sua produção lingüística”, como defende Moyses (1985, p. 87), assim como, por meio da própria escrita dessa história contada, preocupamo-nos em gerar espaços para tornar a análise da língua possível, gerando ao mesmo tempo em cada criança a necessidade e o desejo de assumir a própria escrita. Isto implica compreender o funcionamento do sistema alfabético-ortográfico de dentro do funcionamento discursivo da linguagem, isto é, junto com os modos como os textos se organizam espacialmente, graficamente, morfossintaticamente, lexicalmente, argumentativamente, entre outras possibilidades, expressando modos de apresentar e de organizar o conhecimento das diferentes áreas.

Apresentamos, a título de ilustração, três textos escritos, em sala de aula, por uma menina de seis anos, Pâmela, em processo de alfabetização. O primeiro texto foi produzido no início do ano letivo do primeiro ano do ensino fundamental, depois que a professora leu uma história para as crianças, conversou sobre a mesma e solicitou que elas escrevessem sobre a parte da história que mais tivessem gostado.

ACACIACRIPELPRPALLA. (A sereia estava na pedra...)

EFLELRIPER. (e se assustou com o polvo.)

LAELA (Fim.)

Pâmela nos diz com a escrita e leitura (entre parênteses) de seu texto que sabe que são necessárias letras para escrever, que se escreve da esquerda para a direita e de cima para baixo, e também que produziu um texto narrativo significativo, de acordo com a proposta da professora.

O segundo texto é a escrita de uma receita de pipoca. A professora havia conversado com a turma sobre pratos e receitas culinárias e sobre a organização deste gênero do discurso. Trabalhou no quadro de giz com a receita de pipoca, distinguindo a pipoca doce e a pipoca salgada. Em seguida, solicitou que os alunos escrevessem a receita, deixando claro o tipo de receita que estavam elaborando.

PIOPCA SALHDA

 

MILO DE POR (milho de pipoca)

MIHO (milho)

O SAL. DOT O OLOHO (Bote o óleo)

SAL

E DE POR (e depois)

MANTAHA (manteiga)

TAMPA PARA (tampe para)

ASUH (açúcar)

NA NÃO POR LA (não pular)

 

MANTAHA. ASADA. (manteiga assada)

Como podemos observar, a escrita do texto de Pâmela apresenta as duas partes, ingredientes e modo de fazer, embora com alguns problemas, mas com uma textualidade própria do discurso de receitas culinárias, como os verbos no imperativo, por exemplo.

o terceiro texto foi escrito, ao final do primeiro ano letivo, quando a professora estava trabalhando sobre características das aves. As crianças haviam tido muito acesso a materiais escritos sobre aves: revistas, álbuns, enciclopédia e jornais. Ouviram muitas leituras sobre aves também.

AVES

AS AVES SÃO ORISINAIS AU RÉPTEIS HÁ MILHÕES DE ANOS ATRÁS.

ELA TEM O SANGUE QUENTE E O CORPO COBERTO DE PENAS.

ESSE ANIMAIS TEM O BICO NO LONGAR DE DENTES ELA TEM DUAS PERNA SEUS OSSO SÃO OCOS PARA FACILITAR O VÔO ESXISTEM APROXIMADAMENTE 8.600 ESPECE DE AVES NO MUNDO

AS AVES NASCEM DE OVOS

ELAS TEM ASAS.

Neste terceiro texto, a menina apresenta um gênero de discurso em que ela expõe o que aprendeu sobre as aves, um relato. Destacam-se o uso dos verbos no presente e alguns recursos expressivos que devem estar sendo utilizados como palavras alheias, como na primeira linha “As aves são orisinais au répteis há milhoes de anos atrás”. Algumas palavras, por solicitação de alunos, foram escritas no quadro de giz pela professora.

Ilustra-se assim a possibilidade que as crianças têm de se alfabetizarem, sem dissociar o processo de alfabetização, aqui relacionados aos micro-aspectos da linguagem escrita, do processo de letramento, relacionado aos macro-aspectos do discurso da linguagem escrita. No processo, as crianças vão-se apropriando de novas textualidades, novas linguagens sociais, ampliando seus sistemas de referências do mundo e do próprio objeto em questão, a linguagem escrita. Este é um terreno que necessita de muitas pesquisas para que se tornem mais claros os fatores que intervêm no processo de apropriação desta modalidade de linguagem verbal.

Assim, pressupomos que seja no encontro das linguagens sociais e dos gêneros do discurso, construídos no cotidiano dos alunos, e que são trazidos para a escola, com as linguagens sociais e gêneros que a escola tem a oferecer aos alunos, que se um processo íntegro de ensino-aprendizagem da linguagem escrita. Os micro-aspectos e os macro-aspectos do objeto em questão estão intimamente relacionados e assim devem ser trabalhados, analisados, ensinados e aprendidos.


 

Referências bibliográficas

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[1] Vou estabelecer uma separação entre micro-aspectos e macro-aspectos por uma necessidade metodológica. Não atribuição de valor nesta separação e tampouco prioridade de uma categoria sobre a outra; na verdade, no processo de alfabetização, os micro e os macro-aspectos se inter-relacionam complexamente e têm papéis fundamentais na produção de sentido na leitura e na produção textual.