O CIENTISTA E O PROFESSOR
NOS LABIRINTOS DA LINGUAGEM

Há uma idade ideal para crianças e adultos aprenderem a notar
o
extraordinário e o mutante nos usos da linguagem
(
língua materna ou estrangeira) comum?

José Roque Aguirra Roncari (UEM e UNESP)
Susilene Cristina Tavares e Souza
(UEM)

 

Introdução

Há uma idade ideal para crianças e adultos aprenderem a notar o extraordinário e o mutante nos usos da linguagem (língua materna ou estrangeira) comum? É a este tipo de entendimento sobre os usos comuns da linguagem que, neste artigo, desejamos destacar. Tanto é que pretendemos que os discentes, neste processo, lidem com usos tão insólitos e sobrenaturais, porém, tão reais, fisicamente possíveis e comuns, que eles aprendam a dar nexo ao que antes não lhes fazia nexo algum; que passem a escrever e falar, quer enquanto crianças, quer enquanto adultos, vivendo histórias extraordinárias instituídas por palavras rotineiras: aprendam a notar como mortos ressuscitam, como moedas se tornam gnômicas e voltam a ser simples moedas, como tijolos se tornam comestíveis, como alguns defuntos reagem e se ofendem em presença dos vivos, etc., enfim, aprendam como é tão corriqueiro nos misturarmos, confundirmo-nos e tornarmo-nos personagens de ações tão absurdas quanto normais, todos os dias. Oportunizá-los verem, reverem e viverem entre si, em sala de aula, algumas atividades causadoras de reações humanas fantásticas, não-metafóricas, puramente reais, recorrentes na rotina de cada um; praticarem, conforme as palavras de John Searle, a filosofia da linguagem no mundo real, ingressarem no interior de uma dimensão em que mundo e linguagem são duas faces indissociáveis de uma mesma medalha.

Portanto, desejamos realizar as atividades de ensino de língua através de alguns jogos ou rituais de linguagem criados com propósitos bastante específicos e vivenciarmos experiências com palavras em circunstâncias constantemente mutantes, com Wittgenstein estimulando nossa inspiração assim, parágrafo 109:

109. ....[os problemas] they are solved, rather, by looking into the workings of our language, and that in a such way as to make us recognize those workings: in despite of an urge to misunderstand them. The problems are not solved, by giving new information, but by arranging what we have always known. Philosophy is battle against the bewitchment of our intelligence by means of language.(Itálico do Autor)

As atividades que desenvolvemos na disciplina Seminários de Dissertação, no segundo semestre de 2003, por exemplo, deram-nos pequenas demonstrações de como o fenômeno do intrigante é um modo humano de ser e viver imensamente cotidiano, óbvio, rápido e fugaz. Ali, aprendemos que o extraordinário está na natureza evidente do uso rotineiro das palavras; conforme o uso que normalmente fazemos delas, às vezes, curamo-nos, às vezes, enfeitiçamo-nos com o que elas nos querem dizer. Qualquer que seja a atitude, acreditamos piamente nestas curas e feitiços e, assim, permanecemos prisioneiros do que fazemos com elas. Enfim, quando não foi fantástico afirmar a proposição “A Terra é plana”? Quando foi fantástico afirmar a proposição “A Terra é redonda”? Que proposições tácitas estas duas figuras proposicionais diretamente expostas, por exemplo, estão pressupondo como pano de fundo? Até que ponto podemos afirmar que a Terra é realmente plana? Até que ponto podemos afirmar a Terra é realmente redonda? Até que ponto podemos afirmar que cada uma destas proposições é verdadeira ou falsa? No interior de que jogos ou rituais de linguagem característicos estas proposições são aprendidas, entendidas e aceitas como absolutamente estáveis e perenes? O fato de não constatarmos patologia sintática, fonológica, semântica e normativa nestas proposições, não nos ilude e desperta a tentação de considerá-las absolutamente corretas em ambos os casos? Como responder a estas questões em sala de aula? Pois, foi com tal disposição investigativa que nos embrenhamos nesta gramática e adentramos nas atividades de ensino e pesquisa.

 

O extraordinário e o comum das conexões
entre evento científico (pesquisa)
e evento-ensino

Será importante tomar conhecimento da noção de causalidade, que estamos adotando aqui, para entender corretamente os argumentos deste artigo. Wittgenstein expressa a conexão de causalidade física entre eventos assim, no parágrafo 169: “Causation is surely something established by experiments, by observing a regular concomitance of events for example.” Isto é, em linhas gerais, a causalidade é certamente algo estabelecido por experimentos, pela observação da ocorrência sistemática de eventos regularmente concomitantes; esta é a definição também da Física clássica. Assim é que, disto, decorrem os eventos acima referidos e os dos itens a seguir.

 

O ambiente pecaminoso de pesquisa

Neste artigo, optamos por adotar um raciocínio e atitudes pesquisa e ensino inspiradas por idéias desta natureza acima e por opiniões políticas de pessoas influentes e por demais conhecidas. Elas são freqüentemente postuladas no ambiente das discussões educacionais e científicas quando tratam de ensino e pesquisa no âmbito da universidade pública brasileira e no mundo. Consideremos particularmente as posições de Carlos Henrique Brito Cruz e Renato Janine Ribeiro. Declaram, eles:

....Carlos Henrique de Brito Cruz, presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e diretor do Instituto de Física da Unicamp. ‘... a pesquisa ajuda o professor a oferecer um ensino muito melhor’. Brito cita um professor da Universidade de Princeton, nos EUA, que dizia que a pesquisa está para o ensino como o pecado para a confissão: ‘Se não fizer um pouco do primeiro, não tem o que dizer no segundo’....

...’Pesquisa não é resultado, é também ambiente’, acrescenta o filósofo Renato Janine Ribeiro, da USP.[1]

Isto quer dizer então que, nas opiniões do físico Carlos Henrique Brito Cruz e do filósofo Renato Janine Ribeiro, não havendo ambiente pecaminoso, não haverá pesquisa. E as afirmações acima também pressupõem que os nexos causalidade concomitantes entre estes dois eventos, pesquisa e ensino, vão adiante, caso, simultaneamente, estes dois eventos concomitantes mantiverem a conexão física adequada, caso contrário, acontecerá o que corrobora com a afirmação abaixo:

Anybody who teaches at the age of fifty what he was teaching at the age twenty-five had better find another profession. If in twenty-five years nothing happened which proves to you that your ideas were wrong, it means that you are not in a living field, or perhaps are part of a religious sect. (Chomsky, 1977:177-8)

Enfim, este é o ambiente e esfera de ação dos homenspuros”.

 

O ambiente pecaminoso
do Wittgenstein
professor

Pois bem, embora não pareça, verificamos este mesmo nexo de causalidade na atuação científica e pedagógica de Wittgenstein e Karl Popper, por exemplo. Ambos pecaram teorias sofisticadas, conviveram em Cambridge mais tarde, porém, antes disso, no período do pós-guerra (Primeira Grande Guerra Mundial) participaram ativamente de reformas educacionais e reconstrução das escolas públicas de Viena, sobretudo nos subúrbios pobres da cidade. Em parte, amadureceram os pecados também ali - enquanto exerciam o magistério - muito daquilo que pecaram em suas investigações sobre filosofia, ciência, lógica e estudos da linguagem ordinária. A convivência deles entre si e entre Alfred Adler, Karl Bühler, Otto Glöckel, Margareth Stonborough e outros fomentava o ambiente das divergências inteligentes - a expressão que Bertrand Russell tornou famosa posteriormentenecessário às reformas de ensino, em Viena, por volta desta época:

The reform of education was another aspect of the city’s cultural ferment which had a direct bearing on their philosophical development. Both Popper and Wittgenstein trained as teachers in Vienna - and within four years of each other. Both spent time teaching children - Wittgenstein in primary schools in the Austrian countryside, Popper in primary and secondary schools and, under the aegis of the psychiatrist (and former colleague of Freud) Alfred Adler, with disadvantaged children in Vienna. Both came under the influence of the exuberant Karl Bühler, Professor of Philosophy at the Pedagogic Institute, and Otto Glöckel, Vienna’s Councillor for Education and the moving spirit of a short-lived experiment in Austrian schooling. Glöckel is thought to have been in close touch with Margareth Stonbororugh when she was Hoover’s representative.

Wittgenstein turned to teaching after his release from an Italian prisoner-of-war camp in 1919.. This change of direction was no passing fad; he taught for some six years in villages deep in the countryside...He became an ascetic, bringing his schoolteaching to the children of Austria’s rural poor, working in remote areas, in villages reachable only on foot.

For Karl Popper the move into education was...for enrolling in Vienna’s new Pedagogic Institute that it shared some courses with the university, thus enabling him to transfer into the higher education which had been out of his reach because he had been unable to take his final leaving examination - the Matura. As we will see, his father’s sudden impoverishment forced him to leave school early. (Edmonds & Eidinow, 2002: 60)

Portanto, ambiente pecaminoso, aqui, quer dizer uma convivência humana especificamente guiada por parâmetros de conduta social, por exemplo, uma vez explicitados, com a simplicidade e elegância formais, por Bertrand Russell (1972:71-2), em seu conhecido Decálogo Liberal. Conforme, matematicamente, projetou o filósofo inglês em 16 de dezembro de 1951, em artigo publicado em The New York Times Magazine, nomeadamente, em título bem apropriado, “The Best Answer to Fanaticism: Liberalism”:

1. Não te sentirás absolutamente certo de coisa alguma.

2. Não pensarás ser vantajoso progredir escondendo as provas, pois estas virão à luz inapelavelmente.

3. Não temerás o raciocínio, pois com ele vencerás.

4. Quando encontrares oposição, mesmo que seja a de teu marido ou de teus filhos, esforçar-te-ás por superá-la pela força dos argumentos e não pela da autoridade, pois uma vitória que depende da autoridade é irreal e ilusória.

5. Não respeitarás a autoridade de outros, pois encontrar-te-ás com autoridades contraditórias.

6. Não usarás do poder para suprimir opiniões que julgas perniciosas, pois se o fizeres as opiniões suprimir-te-ão.

7.Não temerás ser excêntrico em tuas opiniões, pois toda e qualquer opinião hoje aceita foi outrora excêntrica.

8.Encontrarás mais prazer na divergência inteligente do que na concordância passiva, visto que, se apreciares devidamente a inteligência, a primeira implica um acordo mais profundo do que a segunda.

9. Serás escrupulosamente verdadeiro, mesmo que a verdade seja inconveniente, pois mais inconveniente será quando tentares ocultá-la.

10. Não sentirá inveja da felicidade daqueles que vivem num paraíso de insensatos, pois somente um insensato pensará que isso é felicidade. (Russel, 1972:71-2)

Eram estes os parâmetros que o ambiente pecaminoso respeitava, isto é, acima de tudo, o respeito pela autoridade da livre expressão das idéias restritas pela força dos argumentos.

 

Métodos de autodescoberta (“selfdiscovery”),
solução de problemas (“problem-solving”)
e
disciplina de compromisso ético-comportamental rígida

Era este o ambiente que criou o programa destas reformas; imbuída de espírito tão esclarecido, aberto e liberal quanto as reflexões teóricas da mente pecaminosa das pessoas que o fomentavam:

The Pedagogic Institute had been established to further the Austrian educational reform programme. This attempted to steer education away from a ‘drill school’ approach, in which schoolchildren were treated as empty vessels to be filled by the accumulation of dictated knowlledge and respect for authorithy, towards seeking children’s ative engagement through selfdiscovery and problem-solving. Both Popper and Wittgenstein were trained in the methods of encouraging this. Integral to the vision was a general view of the mind as innately capable of producing frameworks within which information could be organized.(Id. Ibid., p.61) (Itálico nosso)

Wittgenstein confessou às crianças austríacas parte do que pecou sobre linguagem ordinária no Philosophical Investigations e outros conhecimentos mais, porém não confiava cegamente nosslogans” da reforma que, como toda reforma, também era política e, em relação à qual, ele mantinha clara autocrítica e consciência de seus limites pedagógicos:

Although Wittgenstein poked fun at the programme’s ‘more vulgar slogans and projects’, his dictionary for schoolchildren, Wörterbuch für Volksschulen, using the dialects of the Austrian countryside and respecting its culture, was well within the spirit of the reforms. It was equally part of the Philosophical Investigations, that communities might use language in manifold perfectly valid ways. It could also be seen as informing his mode of teaching, conjuring up examples and interrogating the student’s responses.(Id. Ibid., p.61) (Itálico nosso)

Como verificamos acima, apesar de tudo, o Philosophical Investigations também rendeu frutos pedagógicos às crianças da nação austríaca. No entanto, é sabido que a práxis dos processos históricos é sempre por demais complexa e inesperada. Daí, o filósofo, conhecendo as circunstâncias históricas específicas e o gênero humano como conhecia, decidiu não desprezar o que havia de eficiente nos métodos de disciplina rígida da escola tradicional; atitude que freqüentemente não se tem assumido no caso brasileiro. E reincidiu, ele, nos pecados mortais da escola tradicional:

As Wittgenstein’s primary-school pupils would have testified, he was not slow to lash out at a head or an ear - sometimes making them bleed. A cuff to a pupil’s head featured in his 1930s confessions. (Id. Ibid., p.160)

Pecou! No entanto, pecou com todo o respeito e compreensão das autoridades de Estado austríacas (o ambiente), pois estas reconheciam seu talento e sabiam muito bem que, nestes casos limites, o professor devia ter boas razões éticas e pedagógicas para tanto. Ademais, era do mesmo modo que debatia ciência, lógica, matemática e filosofia da linguagem com seus iguais em Cambridge. Menos que um método, era mais um traço peculiar de personalidade e assim o explicava:

...as he went on to elucidate, it [o ato] was his ‘habit, when I like someone very much and have a good relationship, that in a jolly mood, in the same way I might pat someone on the back, I make threatening gestures with a fist or my stick. It is a kind of cuddle.’ (Id. Ibid, p.160)

está um pecado que nos permite repensar seriamente, pelo avesso, algumas variações de muitos métodos permissivos - sacrossantos - de disciplina escolar, no caso brasileiro. É também com tal disposição investigativa destes pecados alheios que estamos procurando aprender por nós próprios como pecar e administrar por nós mesmos nossas próprias confissões nas atividades de ensino e pesquisa, na área de linguagem.

Naturalmente, estamos no estágio de um complexo de leituras longe de estar suficientemente consolidado. Ainda falta explorar muito a gramática deste mundo rizomático de proposições que a linguagem do Philosophical Investigations expressa. Há numerosas cadeias de argumentos que nos permanecem obscuras. Enfim, nos dias atuais, Wittgenstein é e tem sido, com freqüência, intensamente polemizado nos mais diferentes domínios de estudo, inclusive neste em que acabamos de nos introduzir.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHOMSKY,Noam. New horizons in the study of language and mind. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.

––––––. Linguagem e mente pensamentos atuais sobre antigos problemas. (Trad. Lúcia Lobato). Brasília: UnB, 1998.

––––––. Language and responsibility based on conversations with Mtisou Ronat. New York: Pantheon Books, 1977.

––––––. Problems of knowledge and freedom the Russell lectures. New York: Vintage Books, 1972

DALE, Philiph. An innate capacity for language? In: Language, development, structure and function. Hinsdale, Illinois: The Dryden Press, 1972, p. 63-80.

EDMONDS, David & EIDINOW, John. Wittgenstein’s poker. London: Faber and Faber, 2002.

HEATON, John & GROOVES, Judy. Wittgenstein. Cambridge: Icon Books, 1999. Notas Anatol Rosenfeld). São Paulo: Herder, 1965, p. 31-3.

PROUST, Marcel. Sobre a leitura. Trad. Carlos Vogt. Campinas: Pontes, 1989.

RUSSELL, Bertrand. Um decálogo liberal. In: Autobiografia de Bertrand Russell [último volume 1944-1967]. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972, p. 71-2.

SEARLE, John. Mind, language and society philosophy in the real world. New York: Basic Books, 1999.

––––––. Minds, brains and science. New York: Penguin Books, 1991.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical investigations. 2nd edition. Trad. G. E. M. Anscombe reissued German-English edition. Oxford: Blackwell, 2001.

––––––. On certainty. Trad. G. E. M. Anscombe & G. H. von Wright. New York: Harper Torchbooks, 1972.


 


 

[1]In O Estado de São Paulo. Geral, Universidades Públicas, 10/marco/2002,A17.