O ENSINO DA FILOLOGIA ROMÂNICA EM SERGIPE
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
TEÓRICO-METODOLÓGICAS

Stefania Buonamassa (UNIT e UFS)

Mais do que uma pesquisa, este trabalho é uma reflexão e um convite ao debate acerca das condições de ensino da Filologia Românica e História da Língua Portuguesa em Sergipe. O cenário atual conta com a oferta de cursos de Letras em três instituições, junto às quais, procurou-se analisar a questão do ensino das disciplinas em tela, haja vista a sua peculiaridade em termos da necessidade de conhecimentos complementares, porém essenciais para uma visão suficientemente abrangente da história da ou das línguas. Assim, com o objetivo de investigar esse quadro, e movidos por uma inquietação profissional e pessoal, foi possível pôr em evidência a relação entre a visão de mundo, culturalmente falando, do estudante de Letras da atualidade e a dificuldade por este experimentada ao lidar de forma mais consciente e profunda com estas e outras disciplinas de seu currículo. Espera-se que essas reflexões gerem um debate salutar e possam servir de ponto de partida para uma renovação do modo de pensar o aprendizado da Filologia, tanto no Estado quanto nas demais regiões nas quais se dão essas mesmas características.

INTRODUÇÃO

Após as determinações governamentais acerca da situação dos professores, no nosso caso, de Língua Portuguesa, Redação e Literatura, que devem, até 2007, completar ou obter suas licenciaturas para regularizar o exercício da profissão, assistiu-se, em relação ao Estado de Sergipe, objeto da nossa pesquisa, a um crescimento significativo do número dos alunos dos cursos de Letras assim como do número de Instituições de Ensino Superior que oferecem tais licenciaturas.

Hoje, o Estado de Sergipe oferece cursos de Licenciatura em Letras, com várias habilitações, na capital do Estado, Aracaju, e várias cidades do interior, mantidos tanto pela Universidade Federal de Sergipe quanto por Instituições Privadas de Ensino Superior. A ampliação da demanda correspondeu assim a um aumento considerável da oferta; no entanto, o professor universitário que enfrente hoje, no Estado, a tarefa de ministrar determinadas disciplinas, irá deparar-se com uma realidade heterogênea e, não poucas vezes, problemática.

Diante desse quadro, faz-se necessário encontrar soluções adequadas e passíveis de implementação para que o estudo das ditas disciplinas históricas não se torne um mero cumprimento de créditos, e sim venha a acrescentar ao currículo do licenciado conhecimentos específicos que lhe permitam atuar com mais consciência em sala de aula.

OS CURSOS DE LETRAS, HOJE, EM SERGIPE

Como esboçado na introdução, é bastante variada a oferta de cursos de Licenciatura em Letras no Estado de Sergipe.

A Universidade Federal de Sergipe - UFS mantém cursos de licenciatura em Letras/Português, Português-Inglês, Português-Francês (além das habilitações em Francês e Espanhol), nos turnos diurnos e noturnos, na capital do Estado. Nas cidades do interior, graças a um bem-sucedido projeto conduzido em parceria com o Governo do Estado, através da Secretaria de Educação, a UFS mantém campi avançados, nas cidades de Itabaiana, Estância, Lagarto, Propriá e Nossa Senhora da Glória, nos quais são oferecidos cursos de Licenciatura, não só em Letras, reservados a profissionais do ensino que sejam professores da rede estadual ou municipal.

O acesso a esses cursos segue o padrão normal (Vestibular) assim como sua carga horária. A única diferença é que, tendo em vista as atividades profissionais dos estudantes, as aulas concentram-se nos dias de sexta e sábado, das 8:00 às 17:00, com a inclusão de algumas disciplinas em regime intensivo durante os recessos natalino e invernal.

O projeto, que responde ao nome de PQD - Projeto de Qualificação Docente, está em sua terceira edição, tendo já formado várias turmas de licenciados em Português (vernáculas) e Português/Inglês.

Quanto às Instituições particulares, o Estado detém uma universidade, Universidade Tiradentes - UNIT, e uma faculdade, Faculdade Atlântico, bem entendido, em relação aos cursos de Letras, sendo maior o presença de outras faculdades privadas que, entretanto, não contemplam cursos de Letras. Vale ressaltar a existência da Faculdade AGES, localizada no município de Paripiranga (BA), mas que, por sua situação geográfica, atende a alunos também do interior sergipano.

Esta última oferece curso de Licenciatura em Letras / Português no período noturno, assim como a Faculdade Atlântico, esta na capital do estado, Aracaju. Quanto à UNIT, a Instituição mantém cursos de licenciatura em Letras/Português em Aracaju (diurno e noturno), em Itabaiana, Estância e, recentemente, Propriá (no período noturno), além do curso de licenciatura em Letras Português / Inglês na capital, no período noturno.

Em termos numéricos, o número de alunos dos cursos de Letras da UNIT foi de pouco mais de 200 pessoas em 2001 a 1133 em agosto 2004. A UFS não ampliou a oferta de vagas, mas a concorrência para o curso noturno de Letras/Português no vestibular 2004 foi maior daquela do Curso de Direito, superando a marca dos 14 para 1.

Se, por um lado, é reconfortante perceber esse renovado entusiasmo para com o estudo das letras, por outro, ao observar mais atentamente os alunos, percebem-se algumas características que merecem a nossa atenção e reflexão.

Atuando como professora nas duas universidades do Estado, a autora deste ministra as aulas de Filologia Românica, História da Língua Portuguesa, Gramática Histórica e História da Literatura Clássica, disciplinas rotuladas com o adjetivo “histórico”.

A prática profissional permitiu observar uma certa discrepância curricular no que diz respeito ao ensino dessas disciplinas, a saber:

§ A UFS contempla, no seu curso diurno, a disciplina História da Língua Portuguesa no primeiro período, indo para o 6º no curso noturno, que é regulado por outra grade curricular. Em ambos os cursos, a disciplina Filologia Românica está alocada no 7° período, tendo como pré-requisitos as disciplinas Língua Latina I e II. A disciplina História da Literatura Clássica está no 8o e último período, tendo como pré-requisito Introdução aos estudos literários, do 1°. Os cursos do PQD mantêm a mesma formulação;

§ A UNIT apresenta a disciplina Gramática Histórica no segundo período, Língua Latina como optativa do terceiro, Filologia Românica como optativa do 6° e último período;

§ A Faculdade Atlântico mantém uma disciplina de Língua Latina, à qual é subordinada a Filologia Românica;

§ A Faculdade Ages apresenta dois semestres de Língua Latina, necessários para ter acesso à Filologia Românica I e II que, em seus conteúdos programáticos, satisfazem às exigências das disciplinas História da Língua Portuguesa e Filologia Românica das outras.

Nota-se uma certa contradição no que diz respeito à vinculação do Latim ao ensino da Filologia, pois nem sempre aquele é necessário para ter acesso a esta. A dificuldade se faz sentir também em relação ao ensino da Gramática Histórica e História da Língua Portuguesa, quando previstas antes (eventualmente) das disciplinas Língua Latina. Com efeito, a resposta da turma noturna da UFS de Letras/Português, que tem a disciplina História da Língua Portuguesa no 6o período, é muito mais satisfatória daquela das turmas de calouros.

A observação do desempenho de vários alunos de História da Literatura Clássica, que anteciparam essa disciplina para o terceiro ou quarto período, corroborou a necessidade de um maior amadurecimento acadêmico antes de o aluno deparar-se com a especificidade de algumas disciplinas.

Bem-entendido, não estamos aqui tecendo os louvores das disciplinas históricas contra as outras. È verdade, porém, ao nosso ver, que algumas disciplinas requerem uma bagagem intelectual, cultural e acadêmica que, salvo algumas honrosas exceções, o estudante dos primeiros períodos não detém ainda.

PECULIARIDADES E ESTRATÉGIAS
PARA O ENSINO DA FILOLOGIA ROMÂNICA

A prática em sala de aula nos permitiu verificar e afirmar, nessa sede, que a maior dificuldade para a absorção satisfatória dos conhecimentos ligados à Filologia Românica e disciplinas clássicas em geral reside na carga significativa de interdisciplinaridade que as caracteriza: não é concebível aproximar-se ao estudo da evolução das línguas românicas, da própria língua portuguesa e, por que não, da História da Literatura Clássica, desconhecendo as noções elementares de história antiga e geografia da Europa, como mínimo. Fatores secundários de geração de dificuldades são o desconhecimento da Língua Latina, de outras línguas românicas, além das deficiências básicas ligadas à própria língua portuguesa e a limitação do patrimônio relativo à cultura geral.

Longe de constituir uma razão de desânimo, essas peculiaridades nos estimularam na busca de alternativas pedagógicas válidas que pudessem constituir uma resposta ao quadro que se apresentava aos nossos olhos.

Em primeiro lugar, procuramos fornecer as informações relativas às questões históricas e geográficas. A adoção do, ao nosso ver, clássico Introdução aos estudos literários de Auerbach, com ênfase no capítulo dedicado à romanização, aliado ao Le origini delle lingue neolatine de Carlo Tagliavini (este, infelizmente, não traduzido em português), e coadjuvados, os dois, pela escolha de documentários e filmes sobre o período histórico em tela, proporcionaram uma consciência bastante segura no aluno da importância do processo de romanização (durante e depois do Império Romano) para o desenvolvimento das línguas neolatinas e da língua portuguesa, especificamente.

Evidentemente, a escolha dos textos citados ocorreu de forma a complementar a bibliografia oferecida por autores como Ilari, Teyssier, Elia, Silva Neto, entre outros.

Enfrentar a questão do Latim e sua evolução, ainda em período vulgar, foi tarefa que requereu um empenho maior, pois notou-se que mesmo o aluno que havia cursado dois semestres de Língua Latina, salvo algumas exceções, tinha suas dificuldades em absorver o conteúdo proposto. A isso, acrescente-se o desconhecimento de outros idiomas românicos, tornando praticamente impossível a comparação sem a orientação minuciosa do professor. Mais uma vez, a obra de Tagliavini serviu de decodificador para as demais. Notamos que, diante de uma mais demorada e aprofundada discussão “sociolingüística” do Latim, o aluno conseguiu absorver melhor os mecanismos de evolução deste para o Romanço e finalmente para as línguas modernas.

Quanto aos processos de derivação e interpretação de textos antigos, ainda é um problema a ser superado, pois, até o momento, não conseguimos encontrar uma maneira que permitisse ao aluno debruçar-se mais confortavelmente sobre esse tipo de análise. A utilização de CD de cantigas medievais de Provence e do território galego-português demonstrou ter certo efeito, embora ainda não possamos afirmar ter alcançado um patamar satisfatório.

Mas o que efetivamente demonstrou ser o cavalo de batalha de nossas experiências foram as questões dialetais. Partindo do debate acerca da situação dialetal do Brasil, comparando-a com a fragmentação dialetal da România, em suas características gerais, obviamente, notou-se um movimento espontâneo do corpo discente em relação à pesquisa acerca dessa temática. Embora filtrada pela perspectiva sociolingüística, os alunos absorvem satisfatoriamente os conceitos ligados à geografia lingüística e à dialetologia, tanto é que,se até o semestre passado a incidência de trabalhos de conclusão de curso sobre o tema era insignificante, hoje ela constitui cerca de 15% dos temas que estão sendo elaborados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não há disciplina mais fácil do que outra. Qualquer estudante ou docente universitário que seja consciente de seu papel no mundo acadêmico e na sociedade concordará conosco em afirmar que toda disciplina exige esforço e empenho para que a tarefa seja levada adiante de forma proveitosa.

No caso das disciplinas aqui examinadas, vale ressaltar, porém, que a carência, essencialmente, em termos de cultura geral, é o maior entrave para que o aluno efetivamente tome consciência do caminho percorrido por sua língua e por suas congêneres, e de como esses caminhos se cruzam.

Posto que a língua é apenas a ponta do iceberg de um processo de aculturação ocorrido há centenas de anos, é necessário despertar no aluno a sensibilidade para compreender que, mais do que a uma comunidade lingüística neolatina, pertencemos a uma comunidade cultural românica que, mesmo sem percebermos, deixa seus traços profundos em nosso modo de ser.

A dialetologia tem se mostrado uma boa maneira de despertar essa consciência, haja vista o interesse que os próprios alunos demonstraram em conduzir estudos mais aprofundados nessa direção e, o que é talvez o mais importante, vinculando-os a sua região, sua cidade, seu povoado. É o resgate não só da língua, como dos usos, costumes, enfim, da cultura do povo brasileiro.