O ENSINO DE ALEMÃO COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA
PARA CRIANÇAS

Valéria Barbosa Moreira Caetano

Toda criança que cresça sob condições normais, apropria-se da língua de sua comunidade ao longo de poucos anos. O processo natural dessa aquisição pode ser prejudicado, caso ninguém fale com a criança ou caso ela não tenha a oportunidade de ouvir outras pessoas falarem. Pois assim como os pequenos pássaros se orientam pelo canto de seus semelhantes (Marler, 1970), as crianças aprendem quando alguém se dirige a elas, ou quando podem observar e escutar com atenção. Se faltarem tais estímulos, a criança não desenvolverá a habilidade da fala.

Toda pessoa adquire em sua vida ao menos uma língua (sua 1ª língua). Entretanto, a maioria das pessoas adquire no decorrer de suas vidas uma ou outra língua nova. Esta aquisição pode ser simultânea com a 1ª língua (no caso do Bilingüismo) ou posterior à ela.

Bilingüismo

Existem diferentes contextos sociais, políticos e afetivos nos quais pode ocorrer o bilingüismo. A criança cujos pais são de nacionalidades diferentes e que, portanto, o pai fala com ela num idioma e a mãe em outro ou aquela que fala com os pais em uma língua em casa e utiliza outro idioma na escola e no dia a dia, como no caso de pais que emigraram para um país de língua diferente, são exemplos de crianças que cresceram bilíngües. Muitos acreditam que a criança que cresce bilíngüe poderia ter seu desenvolvimento lingüístico prejudicado, pois poderia se confundir entre os dois idiomas. Entretanto o bilingüismo pode ser visto de uma forma bem positiva. A partir de uma perspectiva de Piaget (1987), que estudou o desenvolvimento da criança e sua interação com o mundo, pode ser levantada a hipótese de que a exposição a língua e culturas diferentes na 1ª infância beneficiaria o desenvolvimento da criança. Crianças bilíngües adquirem mais cedo a distinção entre significante e significado, uma vez que desde cedo têm a noção de que um objeto chama-se de determinada forma em uma língua, mas de outra forma em outra língua. Assim estariam sendo estimuladas a perceber a relatividade dos conceitos e a colocarem-se no lugar do outro para considerar qual língua é inteligível a ele.

As crianças bilíngües aprendem o outro idioma como 2ª língua e não como língua estrangeira. Cabe ressaltar aqui, qual seria a diferença entre 2ª língua e língua estrangeira.

Diferença entre 2ª língua e língua estrangeira

De um modo geral a 2ª língua é mais importante na vida do aprendiz do que a língua estrangeira, pois desempenha uma função central onde esta pessoa vive. É a língua alternativa necessária para sobrevivência dentro de uma sociedade estrangeira. As crianças turcas residentes na Alemanha, por exemplo, aprendem o alemão como 2ªlíngua, pois não só podem, como devem, utilizar a língua alemã na rua, em brincadeiras, nas compras...

Se estivessem na Turquia, a aquisição do alemão seria como língua estrangeira, ou seja, aprenderiam a língua sob condições formais, com aulas na escola ou em cursos. O uso da língua não é possível fora do espaço de sala de aula, pois faltam estímulos para o seu uso em situações do cotidiano. Por isso, o domínio de um idioma adquirido como 2ªlíngua é muito mais rápido do que aquele alcançado como língua estrangeira. Durante minha estadia de 13 meses na Alemanha, quando tive a oportunidade de ensinar alemão como 2ª língua para crianças curdas refugiadas da Turquia, pude observar o quão rápido essas crianças conseguiram se comunicar em alemão, formando frases novas, entendendo o que lhes era solicitado e expressando sua opiniões. O nível de oralidade alcançado foi muito bom. E muitas crianças, principalmente as menores, falavam alemão como 1ª língua. Segundo Lenneberg (apud Biaggio, 1988) a magnitude do sotaque estrangeiro é diretamente correlacionada com a idade em que a criança aprendeu essa língua. Com três ou quatro anos de idade praticamente qualquer criança que entre em uma comunidade estrangeira aprende a nova língua sem sotaque.

Quando ensinamos um idioma como língua estrangeira, sabemos que os resultados não serão tão imediatos. As crianças não falarão fluentemente em um curto espaço de tempo, o que não significa que não terão prazer nessa caminhada de descobertas.

Ensino do idioma como língua estrangeira
para crianças

Nós adultos ao aprendermos uma língua estrangeira nos orientamos pelas estruturas e elementos da nossa 1ª língua. Já as crianças lidam com a nova língua de forma objetiva e sem preconceitos, por exemplo: não se amedrontam com o fato de existirem palavras na língua alemã com tantas consoantes juntas e nem fazem alarde com relação aos artigos (masculino, neutro e feminino). Imitam as estruturas com prazer e não se envergonham de falar, mesmo quando corrigidas. Adquirem a nova língua de uma forma descontraída sem dificuldades, ou seja, sem considerações formais. Acima de tudo demonstram grande facilidade para a pronúncia e entonação, pois imitam não só a fala como também o movimento corporal e o sotaque.

Ensino da língua alemã no Colégio Cruzeiro

Há 16 anos trabalho em uma escola no Rio de Janeiro, Colégio Cruzeiro, onde a língua alemã é obrigatória e ensinada como 1ª língua estrangeira. O idioma é ministrado aos alunos desde a Educação Infantil até o 2ºano do Ensino Médio. Nosso objetivo na Educação Infantil é despertar no aluno o prazer e a alegria em aprender esta nova língua. Sendo assim, procuramos trabalhar de uma forma lúdica através de músicas, brincadeiras, fantoches, dramatizações e jogos. As aulas são diárias, com duração de 30 minutos. Neste segmento são trabalhados o ouvir e o falar. Na Classe de Alfabetização as crianças aprendem a ler e escrever na sua língua materna, não havendo interferência da língua alemã neste processo.

No segmento de 1ª à 4ª série procuramos intensificar o vínculo afetivo já existente com a língua, trabalhando com mais duas competências: a leitura e a escrita. Os alunos começam a fazer relações entre o idioma aprendido e o seu cotidiano. As aulas são diárias com duração de 45 minutos e os alunos são divididos em grupos para que possamos trabalhar melhor a parte oral. A partir da 5ª série há uma ampliação considerável do vocabulário sendo o ensino da gramática intensificado através de textos.

Confecção do livro didático
“Deutsch mit Kasper”

Uma de nossas preocupações sempre foi fazer um trabalho que integrasse a realidade brasileira com a cultura alemã. Por isso resolvemos elaborar um livro didático para a 1ª série do Ensino Fundamental, quando nossas crianças têm o primeiro contato de fato com a língua escrita.

Nosso primeiro pensamento na elaboração desse livro foi encontrar uma figura que servisse de fio condutor entre as unidades. Escolhemos um fantoche muito conhecido dentro da cultura alemã: o Kasper, figura esta muito amada por nossos alunos na Educação Infantil. Após a escolha da figura principal selecionamos os temas a serem trabalhados no nosso livro. Para não deixar cair em esquecimento as estruturas e o vocabulário aprendidos no jardim de infância, resolvemos ampliar esses temas na 1ª série. Ao mesmo tempo, tínhamos como objetivo construir uma ponte para o próximo livro usado na 2ª série. Então desenvolvemos histórias com o Kasper como personagem central. Assim foram criados seus amigos da escola, o professor, a professora, sua família e parentes. Surgiram também situações nas quais os personagens se relacionavam: o 1º dia escolar do Kasper, a apresentação de sua família, o aniversário do avô, a casa do Kasper, sua escola, suas atividades em casa e na escola até a chegada do Natal.

Já na 1ª unidade, quando são apresentados os amigos do Kasper, procuramos trabalhar através de seus nomes fonemas pertinentes à língua alemã que se diferenciam da língua portuguesa: “Eva” [efa]; “Kleiser” [klaisәr], “Walter” [valtәr], “Franz” [frants]. Nesta unidade os alunos não só aprendem a se apresentar, como também a seus colegas. Com o uso de jogos, músicas e exercícios essas estruturas são intensificadas.

Na 2ª lição o tema “Números” é trabalhado. Nesta unidade são incluídos ainda os dias da semana, meses e idade.

E o que o Kasper faz na Páscoa? Ele pinta ovos. As cores são o tema da unidade 3. Na unidade 4 finalmente as crianças conhecem a família do Kasper. Curiosidade esta que traziam desde a Educação Infantil. Nesta unidade fazemos uma pequena inserção na parte geográfica, apresentando às crianças algumas cidades alemães. Em seguida seguem a apresentação da casa do Kasper e suas atividades (conjugação verbal no presente do indicativo com as pessoas do singular). A escola é o tema da lição 5 ( partes da escola, material escolar e atividades ). Naturalmente, não poderíamos esquecer da hora do recreio, quando o Kasper se delicia com seu lanche. Chegamos então a lição 6, onde são trabalhados os alimentos. Ao comer demais o Kasper adoece. Este é o estímulo para a lição 7, onde trabalhamos as partes do corpo. Quem fica doente, recebe visitas. E quem recebe visitas, ganha um presente. Para alegrar o doente Kasper sua avó lhe dá de presente um cachorrinho. Com isso entramos no tema animais. A última lição abrange a festa de Natal, coincidindo assim com as férias escolares.

Resultados práticos

Tão prazeroso quanto a confecção desse livro, tem sido o trabalho prático com nossos alunos todos os dias em sala de aula. Os resultados alcançados não poderiam ser melhores, pois conseguimos também um trabalho integrado com as outras disciplinas. Em Música foi feito o tema do Kasper, em Educação artística foram feitos os fantoches do Kasper e de sua família e em Educação física o Kasper foi a mascote das olimpíadas.

Conclusão

Observamos que o vínculo afetivo estabelecido com a língua alemã desde a Educação Infantil tem servido de suporte para a assimilação dos conteúdos. A significação positiva dada a essa língua sem dúvida facilita seu aprendizado. Entretanto é importante ressaltar que todo trabalho pedagógico pode ser prejudicado pela ansiedade dos pais em cobrarem das crianças resultados imediatos na língua. A aprendizagem deve ocorrer num ambiente de segurança para que as crianças possam desabrochar em sua plenitude.

Há um poema em alemão que traduz o que é aprender uma língua estrangeira:

Eine Fremdsprache

Lernst du eine Fremdsprache,

werden deine Augen grösser

deine Ohren spitzer

deine Füsse schneller

deine Hände begreifen das Fremde

es wird ihnen vertraut

Lernst du eine Fremdsprache,

wachsen dir zwei Flügel

 

Uma língua estrangeira

Você aprende uma língua estrangeira,

seus olhos se tornam maiores

seus ouvidos mais aguçados

seus pés mais rápidos

suas mãos compreendem o estrangeiro

este se torna conhecido

Você aprende uma língua estrangeira,

em você crescem duas asas.

 

Bibliografia

APELTAUER, Ernst. Grundlagen des Erst- und Fremdsprachenerwerbs. 5ª ed. Berlin: Druckhaus Langenscheidts, 2001.

BAUSCH, Karl-Richard; CHRIST, Herbert; KRUMM, Hans Jürgen. Handbuch Fremdsprachenunterricht. 3ª ed. Tübingen: Francke, 1995.

BIAGGIO, Ângela M. Brasil. Psicologia do desenvolvimento. 16ª ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

PIAGET, Jean. O nascimento da inteligência na criança. 4ª ed. Rio de Janeiro: LTC, 1997.

PIAGET, Jean. A construção do real na criança. 3ª ed. São Paulo: Ática, 1996.