O lugar e a vez da literatura paradidática
na
sala de aula de e/le

Ana Cristina dos Santos (UERJ e UVA)
Léa de Sousa
Campos de Menezes (UVA)

 

Uma língua abandonada pelos seus escritores estaria ameaçada de perder seu estatuto. As obras apenas passam pelo canal da língua, mas cada ato de enunciação literária, por mais irrisório que possa parecer, vem fortalecer a mesma em seu papel de língua digna de literatura, e, além, de simplesmente língua. Longe de levar em consideração uma hierarquia intangível, a literatura contribui para constituí-la, reforçá-la ou enfraquecê-la. (MAINGUENEAU, D. O contexto da obra literária, p. 103)

 

Considerações iniciais

O ensino de língua, tanto a materna como a estrangeira em todos os níveis de escolaridade, deve estar centrado na natureza sociointeracional da linguagem. Entende-se por natureza sociointeracional da linguagem a construção e a desconstrução plural de sentidos obtidos através do uso que fazem seus enunciadores nos diferentes contextos: histórico, cultural e social. Nesse aspecto, fornecer aos alunos as ferramentas necessárias para compreender a função da língua como instrumento de produção de significados no mundo social é muito mais importante que ensinar os conteúdos gramaticais e lexicais com um fim em si mesmos.

O modelo sociointeracional da linguagem vem sendo discutido através dos respectivos PCN’s dos níveis fundamentais e médio, o que não se estende ao nível superior de ensino de língua estrangeira de forma sistematizada. O ensino ainda se pauta por parâmetros tradicionais, privilegiando os conteúdos sistêmicos da língua em detrimento do conhecimento da organização textual e do conhecimento de mundo, previstos nos PCNs, quando na realidade deveria integrá-los.

Mesmo quando a práxis docente envereda pelo caminho da integração dos três conhecimentos, a opção se restringe à seleção de discursos de tipologias específicas: jornalísticos, de propaganda, canções ou entrevistas, muitas vezes para atender as propostas do enfoque comunicativo de ensino de língua estrangeira – desconsiderando, porém, as marcas inerentes a cada organização textual. Essa limitação tipológica, associada à proposta de atividades que ignoram a organização do texto, subtrai do aluno o conhecimento da função social inerente a cada um dos discursos. Além do mais, impede o contato com outras tipologias discursivas que não deixariam de atender as propostas do enfoque comunicativo, que são mostras autênticas de língua.

Com freqüência, essa práxis denuncia um preconceito ou despreparo docente em relação a uma ou outra tipologia, como é o caso do texto literário. Proscrito da sala de aula de língua estrangeira ou alvo de críticas, quer por sua complexidade, quer pela suposta incompatibilidade com os objetivos metodológicos, via de regra o texto literário é sub-utilizado, transformando-se em pretexto para o ensino de língua estrangeira.

 

A literatura como recurso didático

É lugar comum na prática pedagógica de língua estrangeira que os objetivos a serem abordados em sala de aula devem enfocar e entrecruzar os conteúdos lingüísticos, históricos, culturais e sociais entre outros. Esta reflexão propicia um questionamento no que concerne à ausência de atividades com textos literários neste contexto, uma vez que a sua dimensão dialógica permite uma abertura a esses diversos conteúdos.

As propostas com os textos literários não vislumbram essas possibilidades; detém-se apenas nos conteúdos lingüísticos e culturais. Não se propõem atividades que analisem as suas particularidades tipológicas ou os seus aspectos estilísticos, que ressaltem o valor estético do discurso literário e mostrem que o enfrentamento com este tipo de texto exige a aplicação de estratégias peculiares e, em certa medida, diferentes das utilizadas em outras tipologias.

Transforma-se, pois, o texto literário em mais um recurso para a prática da produção oral e/ou escrita, para a compreensão leitora de nível ascendente ou descendente ou para a prática de aspectos gramaticais e, o discurso literário, como ilustrativo, hermético e sem atrativos para quem não o domina. Esta prática é o que resulta em sua subutilização ou o seu total desaparecimento das salas de aula de língua estrangeira.

Considerando-se que a Literatura configura-se como mostra autêntica de diversos registros de língua demarcados por um espaço e tempo social, o uso de textos literários de autores espanhóis ou hispano-americanos facilita a inserção do aprendiz de espanhol como língua estrangeira (E/LE) em um universo sócio-cultural e lingüístico que ele procura apreender. Através do discurso literário o aluno pode aprender que a língua estrangeira, como a sua própria língua materna, está presa a sistemas e estruturas, mas que dentro delas surgem novas combinações de palavras ou de sentidos. Além disso, amplia-se a relação entre significante e significado e extrapola-se o uso comum da língua por meio da simbiose entre os valores universais e os característicos de sua própria cultura.

Dessa forma, o texto literário ajuda o aluno a perceber que uma seqüência de palavras pode adquirir matizes de sentido conforme a situação comunicativa[1]; que cada conjunto de contratos comunicativos firmados dentro de um dado texto literário é específico de uma cultura em uma determinada época - varia no tempo e espaço. Leitores de épocas e culturas diferentes, pois, fornecem novas significações ao texto, caracterizando-se assim como peculiaridade do texto literário a plurissignificação.

O contrato comunicativo varia de acordo com a natureza estrutural de cada discurso literário. Segundo Oliveira (2003:42 e ss.), não são iguais os contratos comunicativos do romance, da fábula, da epopéia, do conto de fadas... Cada gênero ou subgênero possui suas especificidades contratuais, uma vez que cada gênero, dentro de uma determinada situação comunicativa, está intrinsecamente unido a um único contrato. Há que se considerar, portanto, essas particularidades contratuais quando da utilização do texto literário nas aulas de E/LE.

 

O espaço da literatura paradidática

Como medida conciliatória entre a ausência total do texto literário e a presença de um texto literário denso em sala de aula, o que, cada um ao seu modo, impede ou dificulta o processo iniciático do estudo da Literatura nos cursos de E/LE, a literatura paradidática surge como uma alternativa por sua adequação à competência textual do aprendiz. Essa adequação é inerente ao discurso paradidático, cujas narrativas são especialmente criadas e graduadas para o fim a que se propõem, no caso o ensino do idioma espanhol. Por outro lado, veicula o próprio discurso literário, nivela o discurso lingüístico, sem deixar de abordar os inúmeros discursos que fazem parte do mundo como um todo: o cultural, o social, o histórico e o político, entre outros. Estabelece, portanto, novas relações com o mundo, na medida que cria uma nova realidade, a ficcional, que se diferencia da que se costuma chamar de real. Assim sendo, evidencia-se o objetivo precípuo da literatura paradidática: funcionar como uma ferramenta auxiliar no processo de ensino e aprendizagem de E/LE.

Essa ferramenta, inclusive, é um elemento facilitador que inicia o aluno nos procedimentos contratuais comunicativos particulares a cada gênero. Isto porque o discurso paradidático geralmente trabalha com intertextos que resgatam o conhecimento prévio do aluno nas diferentes áreas do saber. De forma geral, a enunciação na literatura paradidática se dá através de um fio narrativo que seqüencia as peripécias da vida de determinados personagens, em torno do qual, gravitam e se entretecem diferentes intertextos que organizam o discurso. Dessa interseção discursiva resulta um macrodiscurso em que estão contidos os diversos contratos comunicativos. Estes contratos fornecem marcas discursivas próprias que ao serem identificadas desenvolvem o conhecimento da organização textual.

Sob este ponto de vista, a literatura paradidática longe de ser um instrumento didático menor, deve ser considerada como um instrumento potencializador de formação de saberes. Desmistificada, assim, a concepção preconceituosa ante os livros paradidáticos, não convém ao professor de E/LE perder de vista o lugar e a vez da literatura paradidática na sala de aula.

A comprovação prática do valor instrumental da literatura paradidática no espaço da sala de aula nos níveis iniciais de aprendizagem de língua espanhola no nível superior teve por objeto o livro Guantanameras (1997) de Dolores Soler-Espiauba, da Coleção “Venga a leer”, da série “América Latina”, concebido para o nível intermediário de ensino.

A escolha do material deveu-se principalmente ao fato de que, como puderam observar as autoras deste trabalho, o título da obra remetia a outros discursos sobre o universo sócio-político-cultural de Cuba: a) o literário, o poema do cubano José Martí, musicado por Joseíto Fernández; b) o cinematográfico, o filme Guantanamera, do cubano Tómaz Gutiérrez Alea de 1995; c) o não-verbal: os mapas geográficos de Cuba e dos Estados Unidos e; d) o informativo, sobre José Martí, a cidade e a Baía de Guantánamo. Deste modo, a narrativa abria espaços para potencializar a construção de um hipertexto, produto dialógico de diferentes linguagens discursivas.

 

As interseções discursivas no âmbito do livro

O eixo narrativo está formado pela história de duas irmãs gêmeas, Lisa e Priscilla (cujo nome de batismo é Yolanda), que vivem separadas desde pequenas. A primeira vive na cidade de La Habana com o seu pai e, a segunda, em Miami com a sua mãe. Depois de 18 anos sem contato, Priscilla decide visitar a irmã, para comemorarem juntas a data de seu aniversário, em Guantánamo.

Os passeios que fazem Lisa e Yolanda por La Habana configuram-se como recurso literário para que personagens e leitor adentrem-se nas minúcias culturais, sociais e políticas que diferenciam os estilos de vida de Cuba e dos Estados Unidos.

Ao longo do texto, várias palavras e/ou expressões aparecem em itálico. O itálico, como recurso tipográfico, destaca não as peculiaridades da fala cubana, bem como as interferências lingüísticas do inglês no espanhol (idioleto) da personagem Priscilla/Yolanda e mais esporadicamente no “spanglish” de Lisa. Cabe esclarecer que a autora cria duas formas de explicitar a significação do termo que aparece em itálico; ora o faz no curso da narrativa, ora através de notas remissivas. Paralelamente, o itálico veicula informações sobre as figuras mais importantes da sociedade cubana dos diferentes campos do conhecimento: Celia Cruz, Nicolás Guillén, Pablo Milanés, Gloria Stefan, Silvio Rodríguez, Fidel Castro, José Martí e Compay Segundo.

Algumas dessas informações intercalam-se no texto através de poemas, de letras de canções, de remissões a filmes cubanos, como Morango e Chocolate. A existência dessas informações dentro do texto de Dolores Soler-Espiauba, acrescidas dos diversos discursos sobre o universo sócio-político-cultural de Cuba, a que remetia o título da obra, possibilitou o diálogo com o visual, o escrito e o auditivo. Simultaneamente ao trabalho com o conhecimento da organização textual dos diversos discursos (tanto o oral quanto o escrito), incrementava-se a utilização das quatro habilidades que orientam a metodologia comunicativa de ensino de E/LE: o falar, o ler, o escrever e o ouvir, aproveitando-se, inclusive, os exercícios (que vão desde uma mera ampliação do léxico, passam pelas marcas discursivas da descrição e chegam à compreensão leitora) propostos pela autora, ao final do livro. É bem verdade que estes exercícios estão aquém do padrão de exigência que requer a prática de ensino de língua espanhola em nível superior. Apesar disto, tal discrepância foi resolvida com a proposta didática levada a termo pelas autoras.

O discurso literário, vez por outra, reveste-se de tom político: a) na fala do primo Oswaldo, ao discorrer sobre o tratamento dado à Saúde no país ( p. 14), que é imediatamente retorquido por Priscilla/Yolanda (“Ejem, la propaganda política después, primo.” (p. 14); b) na intervenção de Priscilla/Yolanda, quando comentava com Lisa o desaparecimento da fotografia de Che Guevara da Plaza de la Revolución: “Pobre Che, el último héroe romântico de la historia.” “Mi mamá no quiere oír hablar del Che...” (p. 19); c) por meio das ponderações do pai das gêmeas e de Priscilla/Yolanda ao tecerem comentários sobre os restaurantes do estado e os conhecidospaladares”: “pero actualmente las cosas están cambiando, m’ijita, hay uma apertura.” “...esta práctica crea desigualdades sociales; nuestro sistema está basado en la igualdad, todos tenemos los mismos derechos”. “Los seres humanos no nacen iguales... Todos [en EE.UU.] tenemos derecho a poder trabajar libremente, eso sí” (p. 25); d) através das informações de Lisa a respeito do comprometimento social e político que têm os jovens cubanos (p. 26):

No es perder el tiempo, Priscilla. La zafra y la caña de azúcar forman parte de nuestra cultura. Además, compañerita, todos debemos estar preparados para todo, para el ejército también, para defender a Cuba de los ataques.

Subjaz, pois, o discurso ideológico que alinhava as diferentes posturas dos cidadãos, verdadeiros coadjuvantes do regime vigente em seus respectivos países. De alinhavo em alinhavo, o leitor acompanha a evolução pela qual passa a personagem Priscilla/Yolanda. Abandona a moça seu comportamento fútil do início da trama e começa a interessar-se pelos clássicos da Literatura; decide freqüentar um curso superior e se engaja na iniciativa de ajuda às pessoas idosas reclusas em um asilo, participa de reuniões políticas, apesar de sua total ignorância do fenômeno político; assume-se como filha da terra, como cubana: “¡Soy otra vez Yolanda!, afirma (p. 42-3). Este amadurecimento da personagem é exemplar para o jovem leitor, independentemente da sua opção ideológica, pois revela um crescimento humano, pautado na solidariedade e respeito pelo outro; estimula sua cidadania, na medida que o incita a participar da construção de sua sociedade; conscientiza o leitor de sua responsabilidade cívica, na condução do destino de sua pátria. Esta leitura, portanto, cumpre também o papel de formar comportamentos, que orienta dialogicamente para a busca profunda da verdade. Ou ainda, nas palavras de Hegel, mostra “a realidade como movimento incessante e contraditório, condensável em três momentos sucessivos (tese, antítese e síntese) que se manifestam simultaneamente em todos os pensamentos humanos”. Logo, a literatura paradidática pode construir, como nesta obra constrói, um espaço de reflexão que eleve a alma humana ao mesmo tempo em que transmite informações. Cumpre, assim, uma ampla diretriz educativa que desborda de seus limites acadêmicos e molda o caráter do indivíduo.

No caso concreto da obra Guantanameras, há mais um apelo à reflexão do leitor, através do convite explícito que lhe faz o enunciador para ser co-partícipe, co-enunciador, propondo o seu próprio desfecho para a narrativa. Cumpre-se, então, o propósito de conciliar conhecimento, criatividade e prazer, iniciativa plenamente compatível com o fazer literário, ao considerar-se que a busca pela literatura se dá por condicionamentos intelectuais, emocionais ou por razões exclusivamente estéticas. Ao participarem da construção da trama, os leitores acrescentam ao texto os seus próprios discursos, imiscuindo-se na rede discursiva, vindo à luz uma sucessão de novos textos, inaugurados por uma infinitude de combinações discursivas possíveis.

 

A interseção texto-ilustração

O discurso escrito requer do leitor maior capacidade de abstração, pois o curso da leitura conduz a um universo de imagens em construção, tantas quantas forem as leituras realizáveis de um mesmo texto.

Desta forma, satisfazendo mais um fim, a introdução da literatura paradidática na sala de E/LE desenvolve a criatividade do aprendiz que tem a oportunidade de antecipar cenários, caracteres físicos das personagens, confeccionar figurinos, a partir de algumas pistas que a narrativa vai fornecendo. Constrói-se, portanto, um conjunto plástico imaginário ao qual se agrega outro conjunto plástico constituído pelas costumeiras ilustrações que acompanham esta tipologia textual, que passam a dialogar, entretecendo um novo discurso, promovendo assim um número infinito de significados visuais.

Logo, o discurso escrito, de um lado, organiza as informações de modo mais lógico, seqüenciando os fatos no cronos, estabelecendo as dimensões espaciais, ao mesmo tempo que verbaliza afetos; enquanto o discurso visual, de outro, “intervaliza” a narração, cria seu próprio tempo de leitura, ocupa um espaço extrínseco à enunciação.

Em Guantanamera, a ilustração é o que se pode chamar estilizada, de traço leve, em P&B, mas nem por isso sua função dialógica com o texto escrito deixa de ser exeqüível. Ao contrário, a ausência de cor e a ligeireza do traço possibilitam um trabalho mais: a modificação das cores ou mesmo das linhas e traços físicos de seres, espaços e objetos que são fornecidos pelo texto escrito ou a atribuição de matizes e formas não tão explícitas pelo desenho.

 

As interseções pluridiscursivas:
uma
proposta didática

Essa relação dialógica na narrativa não se restringe ao binômio texto e imagem. Vai mais além, na medida que permite uma vinculação com as imagens formadas através das palavras nos diferentes gêneros intercalados no discurso: a poesia, a canção, a menção a filmes cubanos. Essa amálgama de discursos, permitiu ampliar a competência discursiva dos alunos, em quatro momentos diferentes propostos pelas autoras: o primeiro, através da leitura do livro Guantanameras; o segundo, por intermédio do filme Guantanamera; o terceiro, por meio da canção Guantanamera e, finalmente, o quarto, sustentado em textos informativos sobre Martí e Guantánamo. Aproveitando-se do fato de que as três formas discursivas versavam sobre um mesmo tema, que entrelaçavam o universo sócio-político-cultural de Cuba e permitiam um entrecruzar de informações, o foco do trabalho centrou-se nas marcas textuais específicas de cada gênero discursivo e no modo como um gênero contribuía para complementar as informações do outro. Pode-se afirmar que esta abordagem tornou-se o facilitador, para que ao final das tarefas os alunos houvessem construído um hipertexto, um macrodiscurso.

Nessa perspectiva, o professor não é mais que um mediador entre a informação nova e o hipertexto que o aluno está construindo. O professor deve guiar os alunos de modo a poderem complementar uma informação existente em um determinado discurso com outra contida em outro discurso. Deve apenas desempenhar o papel de intermediário entre aluno-texto-autor. Caberá, pois, ao aluno, inter-relacionar os diversos discursos, a fim de resgatar uma informação implícita no texto e organizar um hipertexto significativo. Este foi o caso prático da letra da canção Guantanamera apresentada no texto paradidático. Constava do segundo verso a palavra caña (p. 38): “yo soy un hombre sincero/de donde crece la caña”. Ao escutarem o poema-canção de José Martí, os alunos perceberam a mudança ocorrida no verso impresso no livro, uma vez comparando-o ao que haviam acabado de ouvir: “Yo soy un hombre sincero/ de donde crece la palma”. As explicações do porquê desta mudança vinham fornecidas pelo texto informativo (explicitava que a economia de Cuba está assentada no cultivo da cana-de-açúcar) e pelas imagens de trabalhadores no cultivo da cana que permeavam o filme Guantanamera. Desta maneira, os alunos analisaram os motivos que levaram a autora a mudar a letra da canção e, aqui está o ponto chave deste trabalho, perceberam que a construção do significado é social; vai depender do objetivo que tinha o enunciador com o discurso; de sua intenção.

Os alunos depreenderam esta particularidade também no filme. Nele, o autor utiliza a melodia da canção Guantanamera com o objetivo de construir parte do discurso da própria narrativa do filme. A melodia serve de base para a história que se está contando como substituta da letra da canção. Tem um objetivo específico, acelerar o tempo da narrativa, que estas informações que chegam por meio da canção são simultâneas ao andamento dos fatos que ocorrem ante o espectador. Era fundamental, pois, que o aluno determinasse o objetivo com que a linha melódica do poema-canção foi resgatada pela história do filme, pois assim ser-lhe-ia factível perceber que as interseções discursivas (os intertextos) não ocorrem de forma gratuita; são, na verdade, peças chave para a construção de significados.

Ante o exposto, um texto que poderia ser considerado fácil e, inclusive, menosprezado para alunos de nível superior de ensino de E/LE cobrou importância, uma vez que o projeto didático buscou suplantar as arestas do discurso narrado. Exigiu dos alunos a assimilação dos significados construídos através dos diferentes discursos dos enunciadores, a espanhola Dolores Soler-Espiuaba e os cubanos José Martí y Tomáz Gutiérrez Alea, para criar um retrato do contexto cubano.

 

Considerações finais

A experiência ratificou o lugar da literatura paradidática na sala de aula de E/LE. Entretanto, como as autoras pretenderam mostrar ao longo deste trabalho, o texto paradidático sem as diversas inserções discursivas: o filme, a canção, a informação, fica muito aquém da proposta de ensino de E/LE para o nível superior. A abordagem para este nível deve ser mais ampla e mais profunda, abarcando as quatro habilidades lingüísticas e, conseqüentemente, as três áreas de conhecimento que constroem o significado sócio-cultural do discurso.

O êxito deste experimento incitou as autoras a trabalharem com outros materiais paradidáticos. Escolheram os outros títulos da coleção, com os quais puseram em prática outras experimentações. Entre elas o estabelecimento de seqüências narrativas, procedimento que ressalta as idéias principais e secundárias de um texto, valoriza a coerência das informações e a coesão; a análise das marcas discursivas não da narração bem como da argumentação; a participação efetiva do aluno em inúmeras atividades: a produção de textos narrativos, no momento em que é solicitado a narrar, fazer resumos e sinopses; a construção de argumentos, quando inquirido a justificar e opinar sobre os comportamentos das personagens; o estímulo a atuar, vendo-se na situação da personagem, através de simulação em sala de aula, assumindo, portanto, o próprio discurso ou o discurso do outro.

Após todas estas considerações é dedutível que uma proposta paradidática, sem sombra de dúvida, pode ser ampliada de modo a alcançar os diferentes discursos das artes: a música, a literatura e o cinema. O presente ensaio, pois, vem cobrar uma nova postura crítica, que ultrapassa o lugar comum de que o texto paradidático insere-se no espaço de sala de aula apenas com o propósito de ensinar o aspecto cultural da língua-alvo. Esta é uma das opções, mas não a única. E tampouco pode ser levada a termo, sem que se considerem as particularidades do discurso para as quais deve-se chamar a atenção do aluno.

 

Bibliografia

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SOLER-ESPIAUBA, Dolores. Guantanamera. 2ª ed. Barcelona: Difusión, 1999.


 


 

[1] Segundo Oliveira (2003: 27 e ss.), o contrato comunicativo é definido pelo papel que o Eu-enunciador e o Tu-destinatário desempenham em uma determinada situação comunicativa. É a compreensão do texto como um conjunto de situações comunicativas previamente negociadas entre o leitor e o autor dentro de um determinado discurso literário.