Requisitos para especificação
de
um software educacional

Mirian Rosa de Freitas Montin (UNIOESTE)
Jorge Bidarra (UNIOESTE)

 

A questão da aprendizagem, especificamente no que concerne à aquisição de vocabulário por crianças em fase de alfabetização, é um assunto de alta complexidade e bastante polêmico. Diferentes teorias no campo da pedagogia e de áreas afins têm sido usadas para tal discussão. Dentre os principais estudos produzidos, podemos citar o legado deixado por dois importantes pesquisadores, Jean Piaget e Lev Semyonovitch Vygotsky. Nesse artigo, enfocaremos, particularmente, os estudos desenvolvidos por Vygotsky, tomando por referência básica duas de suas obras, A Formação Social da Mente (2000) e Pensamento e Linguagem (1998). Também neste trabalho estarão sendo considerados autores tais como Barrett (1978), Clark (1995) e Levelt (1989), de quem, aliás, adotamos o modelo de compreensão e produção da linguagem como uma das bases teóricas para a sustentação dos requisitos que pretendemos levantar para a especificação de um software educacional (léxico eletrônico) para auxílio à criança em aquisição de vocabulário. O que apresentamos neste artigo é o resultado de uma investigação criteriosa que a nossa equipe vem desenvolvendo ao longo de algum tempo e que agora se encontra em fase de consolidação e sistematização. Fundamentalmente, as questões tratadas aqui enfocam dois aspectos. Um deles, o modo como, teoricamente, uma criança se apropria de novos conceitos e o outro, que mecanismos de processamento lingüístico estariam em jogo nesse tipo de processamento.

 

Vygotsky e os processos de formação de desenvolvimento dos conceitos e da aprendizagem

Para Vygotsky, a formação e o desenvolvimento dos conceitos acontecem de forma dinâmica, imbricada e em dois grandes grupos: conceitos espontâneos e conceitos científicos.

Por conceitos espontâneos, compreende aqueles trabalhados e adquiridos pelo sujeito na interação com outras pessoas e com o mundo que o cerca. Eles são divididos em três etapas: do pensamento sincrético, onde a criança faz associações desordenadas entre palavra e objeto nomeado; do pensamento por complexos, onde inicia a apreensão da relação objeto/significado, considerando seus atributos perceptuais e funcionais; e dos conceitos por meio de generalizações e abstrações (VYGOTSKY, 1998).

Os conceitos científicos são aqueles adquiridos formalmente, visto que “envolvem uma atitude mediada” (VYGOTSKY, 1998: 135).Têm seu aprendizado iniciado pela definição verbal e/ou sua aplicação em operações não espontâneas.

Reconhecendo que “o aprendizado das crianças começa muito antes de elas freqüentarem a escola” (VYGOTSKY, 2000: 110), Vygotsky propõe dois níveis de aprendizagem: O nível de desenvolvimento real, envolvendo “os ciclos de desenvolvimento das funções mentais que se estabeleceram como resultado de certos ciclos de desenvolvimento completados” (VYGOTSKY, 2000: 111); e o nível de desenvolvimento potencial, que “define aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão em processo de maturação, funções que amadurecerão, mas que estão presentemente em estado embrionário” (VYGOTSKY, 2000: 113). Entre esses níveis de desenvolvimento, aponta para uma zona de desenvolvimento proximal que é “determinada através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração de companheiros mais capazes” (VYGOTSKY, 2000: 112).

 

A psicolingüística e a construção do significado

Diversas pesquisas vêm sendo desenvolvidas por psicolingüistas quanto à construção do significado pelas crianças. Consideraremos, aqui, as propostas elaboradas por Clark e Barrett.

Para Eve V. Clark (1995), as crianças parecem ser orientadas por dois princípios em relação à aprendizagem e uso de palavras: convencionalidade e contraste. Com base nesses princípios é que os falantes estariam de acordo na forma como conduzem o significado e estabeleceriam palavras levando em consideração seus significados convencionais. Tais acordos podem ser decisivos quanto à utilização de determinada palavra em uma ocasião específica. Partindo desses princípios, as crianças aprendem as palavras e seus significados por três processos distintos, não seqüenciais e possíveis de co-ocorrerem em algumas crianças. O primeiro deles é quando as crianças aprendem a palavra pelo fluxo da fala. Elas identificam quando a ouvem em ocasiões e situações diferentes. Um segundo processo seria quando elas podem identificar significados potenciais das palavras que parece mostrar os tipos de categorias ontológicas[1] que elas possuem, ou seja, um conjunto de representações sobre a palavra[2]. No terceiro processo, as crianças podem mapear possíveis significados sobre as formas identificadas por elas. Para tanto, poderão fazer alguns ajustes, tais como expansão ou redução da palavra, sobrepondo-a parcialmente, e até mesmo, em algumas ocasiões, utilizando-a incorretamente.

Barrett parte das pesquisas de Clark e outros pesquisadores para fundamentar seus estudos sobre a aquisição do significado, mas, por seu turno, postula processos mais complexos e direcionados a aspectos perceptuais e funcionais.

Para Barrett (1982), a criança passa por quatro processos, seqüenciais, quanto à aquisição e desenvolvimento do significado ao nomear os objetos. Inicialmente a criança adquire a palavra juntamente com o seu referencial prototípico. A seguir, identifica, preliminarmente, os atributos que caracterizam o referente prototípico da palavra. Na terceira parte do processo, localiza a palavra em um campo semântico particular com base nas características previamente identificadas. Como última parte do processo, identifica as características que distinguem o novo referente prototípico das outras palavras, dentro de um campo semântico.

As pesquisas de Clark e Barrett parecem-nos passíveis de sustentação lingüística aos postulados de Vygotsky em vários momentos. Não significa, porém, que esses pesquisadores tenham elaborado seus estudos com tais objetivos. Mais do que aproximar as teorias, até aqui mencionadas, buscamos uma representação que pudesse elucidar, teoricamente, como tais processos aconteceriam.

 

Buscando a representação dos conceitos
de
palavras

Partindo da grande complexidade em representar como se dariam os processos de formação e desenvolvimento dos conceitos, optamos por adotar o modelo teórico desenvolvimento por e Levelt (1989). Nesse modelo encontramos elementos que parecem ter condições de sustentar os processos de aquisição de significado proposto por Clark e Barrett, bem como os postulados de Vygotsky.

A arquitetura de processamento da linguagem proposta por Levelt (1985) tem por objetivo demonstrar o sistema de produção, porém, nosso interesse é o sistema de compreensão. Portanto, faremos uma pequena adaptação no sentido de demonstrar, ainda que teoricamente, o processo de aquisição de novos conceitos.

Partindo da premissa de que, para Vygotsky (1989 e 2000), o sujeito constrói seus conhecimentos através da imersão na cultura, mediada pela linguagem, descreveremos como esses fenômenos aconteceriam, ainda que teoricamente, utilizando a estrutura de processamento da linguagem descrito por Levelt (1985). Essa estrutura propõe três níveis de processamento (conceitualizador, processamento lingüístico e processamento de baixo nível), bem como dois grandesdepósitos” de informação (base de conhecimento e léxico).

Ao receber um estímulo a criança iniciaria automaticamente o processamento do mesmo, através da análise visual ou acústica[3]. Aciona, então, a checagem de tal estímulo em seu léxico verificando sua interpretação sintático/semântica e aceitando, ou não, sua forma. Caso não encontre item com tal informação, inicia uma série de processos até que essa informação seja lexicalizada. Acessa a base de conhecimento, onde estariam as informações enciclopédicas, registro de experiências e interpretação pragmática, que interage com o conceitualizador, responsável pelo planejamento e geração da mensagem. Segue para o sistema de produção, que interagindo com o léxico, trabalha o lema e a forma resultando na saída, pela articulação do sistema fonológico ou escrita.

 

 

 

 

 

 

 

 

    Conceitualizador

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

   CONCEITUALIZADOR

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Gerador

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                BASE                   

 

 

 

 

de

 

Monitor

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                  DE                      

 

 

 

 

mensagem

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

        CONHECIMENTO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

    Processamento

 

 

 

           a

 

            b

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

   Lingüístico

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

              SISTEMA      

 

 

 

           LÉXICO           

 

 

 

             SISTEMA       

 

 

 

 

                  DE                

 

 

 

 

 

 

 

 

                 DE               

 

 

 

 

 

           PRODUÇÃO

 

 

 

Lema

 

Forma

 

 

 

        COMPREENSÃO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Processamento de

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Baixo Nível      

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

              SISTEMA      

 

 

 

 

 

 

 

 

 

             SISTEMA      

 

 

 

 

                  DE                

 

 

 

 

         ENUNCIADO     

 

 

 

                 DE                

 

 

 

 

 

                SAÍDA           

 

 

 

 

 

 

 

 

 

            ENTRADA     

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Figura n.º 1 - Estrutura do processamento da linguagem[4]

Levando em consideração tal representação de processamento da linguagem, podemos perceber, ainda que teoricamente, alguns requisitos que devem ser levados em consideração, quando da especificação de ferramentas educacionais computacionais.


 

Requisitos funcionais levantados
para a consideração
de
ferramentas educacionais computacionais

Um requisito de fundamental importância para uma ferramenta educacional, computacional ou não, é a possibilidade de trabalhar, assim como a atividade lúdica, na zona de desenvolvimento proximal. Com o avanço tecnológico hoje visto, podemos sugerir que o “companheiro mais capaz”, citado por Vygotsky, possa ser a própria ferramenta computacional. Esta deveria levar em consideração os níveis de aprendizado maturados e ter papel mediador, frente ao usuário, levando-o a atingir novos níveis de aprendizagem através da interação com o mesmo.

Para propor novas aprendizagens, torna-se necessária à verificação prévia de que conceitos relacionados tenham sido trabalhados. Essa verificação poderia ser realizada por meio da busca de resolução de algum problema, através de estratégias que avaliem tal conhecimento prévio necessário. Caso seja verificada a não compreensão do conceito, possibilitar, pela construção de novas estratégias, a aprendizagem desses conhecimentos para, em um segundo momento, continuar a construção do conceito novo.

Ao trabalhar na zona de desenvolvimento proximal outros aspectos serão considerado, tais como a autonomia e o tratamento do erro. Possibilitar que o usuário manipule a ferramenta respeitando seu próprio ritmo de aprendizagem, permitindo a este ir e vir quantas vezes forem necessárias. Tratar o erro não como impossibilidade, mas sim como etapa a ser trabalhada. Levar o usuário a ter consciência de quais as maneiras pelas quais sua aprendizagem seria mais eficiente (metacognição).

Os recursos áudio visuais também devem ser considerados. O uso crescente de programas para computador tem apontado para possibilidade de combinar as informações em diferentes formas, incluindo a geração de imagens e sons, porém não devem cair na superficialidade de apenas transmitir as informações com imagens mais bonitas ou agradáveis. Devem oferecer ao usuário a oportunidade de experimentar e criar, mesmo que virtualmente, de uma forma jamais imaginada anteriormente (PERRENOUD, 1999 e 2000).

A possibilidade de utilizar ícones associados a palavras deve ser outro aspecto considerado. Encontramos nas teorias, acima citadas, indicativos seguros de que a criança constrói seus conceitos levando em consideração aspectos perceptuais e funcionais entre os objetos e as palavras. Seguindo o processo de desenvolvimento do conceito, essas associações vão se tornando mais refinadas, até chegar à abstração. Quando uma criança associa uma palavra nova a um objeto, o que ela faz, na verdade, é a aplicação dessa palavra a um objeto que possui alguns atributos semelhantes a outros objetos que nomeou anteriormente. A criança iniciaria diferenciando características básicas do referente prototípico até, posteriormente, conseguir a diferenciação daquele referencial prototípico dentro de um campo semântico.

Com o desenvolvimento das ciências da computação, muitas áreas de conhecimento agregaram a si seus conhecimentos e desenvolvimentos. A educação também ganhou muito em termos de recursos que, mesmo não sendo construídos com finalidades educacionais, podem ser aplicados com eficiência e eficácia se utilizados de maneira adequada. Dentre eles podemos citar alguns recursos disponibilizados tais como o hipertexto, link, animações em flash e a possibilidade de verificar as formas de um determinado objeto tridimensionalmente. A possibilidade de manipulação virtual de objetos pode ser de grande valia, visto que proporciona à criança, ou usuário, a descoberta de detalhes que não seriam possíveis de serem captados em uma figura planificada. O software educacional tem condições de permitir a realização de simulações, proporcionando ao usuário ir além da teoria. Ele aprende fazendo, vivenciando uma interação real com aprendizagens realizadas e em andamento. Essa aprendizagem, portanto, poderá vir a ser produtiva, divertida e prazerosa, além de eficiente.

 

Perspectivas futuras

É natural que, pela própria natureza do trabalho aqui esboçado e pela complexidade dos assuntos inter-relacionados, não foi possível abordar todos os aspectos possíveis.

Utilizamos um boa parte do artigo para analisar e discutir como se processa o desenvolvimento dos conceitos, significados e linguagem, porque é essencial, para sustentação de proposição de requisitos necessários à construção, avaliação e implementação de ferramentas educacionais, principalmente as computacionais.

Parece-nos necessário que essa discussão, aqui iniciada, instigue outros profissionais, sejam eles professores, cientistas da computação, psicopedagogos, lingüistas, etc., ao questionamento de como uma criança se apropria de novos conceitos e quais mecanismos de processamento lingüístico envolvidos nesse tipo de processamento.

 

Referências Bibliográficas

BARRETT, Martyn D. Lexical development and overnextension in child language. Journal of Child Language, 1978.

––––––. Semantic development during the single-word stage of language acquisition. Unpublished doctoral thesis. University of Sussex, 1979.

––––––. Distinguishing between prototypes: The early acquisition of the meaning of object names. In: Stan A. Kuczaj (ed.) Language Development. Hillsdale: Lawrence Erlbaum, 1982.

BOWERMAN, Melissa. The Acquisition of Word Meaning: An Investigation into Some Current Conflicts. In: WATERSON, Natalie; SNOW, Catherine (eds.), The Development of Communication. New York: John Wiley & Sons, 1978.

CLARK, Eve V. What’s in a word? On the child’s acquisition of semantics in his first language. In: Moore, T. E. (Ed.) Cognitive development and the acquisition of language. New York: Academic Press, 1973.

––––––. Some aspects of the conceptual basis for first language acquisition. In: Schiefelbush, R. L. and Lloyd, L. L. (Eds.). Language perspectives – Acquisition, retardation and intervention. Baltimore: University Park Press, 1974.

––––––. Knowledge, context and strategy in the acquisition of meaning. In: Dato, D. P. Georgetown. University – Round table on Language and Linguistics. Washington: Georgetown University Press, 1975.

––––––. The Lexicon in Acquisition. Cambridge: Cambridge University Press, 1993.

––––––. Later Lexical Development and Word Formation. In: The Handbook of Child Language. Cambridge, Massachusetts, USA: Blackwell Publisher Inc., 1995.

HANDKE. J. The Structure of de Lexicon: Human versus Machine. Monton de Gruyter, 1995.

LEVELT, Willem J. M. Accessing words in speech production: Stages, processes and representations. 1992.

––––––. Speaking: From Intention to Articulation. Cambridge, Massachusetts, USA: A Bradford Book, 1989.

PERRENOUD, Philippe. Construir competências desde a escola. Porto Alegre: Artmed, 1999.

––––––. Dez novas competências para ensinar. Porto Alegre: Artmed, 2000.

VYGOTSKY, Lev Semenovich. A Formação Social da Mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

––––––. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1998.


 


 

[1] Ontologia, neste caso, refere-se a aquilo que vai dar a natureza da realidade, aspectos que tornam o elemento existente no mundo, qual conjunto de informações que deveríamos associar ao objeto de tal maneira que ele se torne real.

[2] Por exemplo, categorias de objetos, de ações e eventos, de relações e de propriedades.

[3] Esse estímulo poderia ser, segundo Handke (1995), acústico, via canal auditivo, e visual, via informação grafológica ou logográfica.

[4] Desenho originalmente in: HANDKE. J. The structure of de lexicon: human versus machine. Monton de Gruyter, 1995: 35. (a) Conforme desenho original e (b) adaptação para representação somente do sistema de compreensão.