ANÁLISE CONTRASTIVA
DO PROCESSO DE FORMAÇÃO DE PALAVRAS
POR CONVERSÃO EM PORTUGUÊS E EM INGLÊS

Susilene Cristina Tavares e Souza (UEM)

INTRODUÇÃO

A evolução de uma língua depende da evolução das necessidades comunicativas do grupo que a emprega, o que, de acordo com Martinet (1975: 178), encontra-se em relação direta com a evolução intelectual, social e econômica do grupo, o que é óbvio quanto ao desenvolvimento do léxico. Assim, mesmo sabendo que o inglês e o português têm origens diferentes é interessante notar que ambas as línguas possuem características semelhantes quanto ao processo de formação em questão, o da conversão. A observação das semelhanças, e até mesmo das diferenças entre as línguas, constitui-se como um fator de aproximação entre elas, tornando o entendimento de seu funcionamento mais prático. Além disso, segundo o que afirma Quirk et al (1989: 976),

As regras utilizadas na constituição de palavras são importantes para o estudo da gramática por duas razões: primeiro, elas nos ajudam a reconhecer a classe gramatical de uma palavra por sua estrutura e, segundo, elas nos ensinam que há uma flexibilidade na aplicação de regras gramaticais.

Enveredando-nos por nossa escolha, uma razão para realizarmos um estudo, especificamente, sobre o mecanismo de conversão, justifica-se por sua produtividade e por sua contribuição para a economia lingüística. Assim sendo, por meio do processo de conversão, é possível através da construção de novas estruturas, a partir de um vocábulo já existente, mas empregado com um novo significado, atender a uma necessidade comunicativa que, talvez, exigisse um outro vocábulo. Contudo, haverá a necessidade de conhecimento contextual, pois em casos de conversão é o contexto que revela, dentro do processo comunicativo, o novo significado (e a nova classe gramatical) assumido pelo vocábulo selecionado.

Diante da complexidade do tema, não houve qualquer pretensão de se dar conta de todo o extenso e rico quadro das palavras formadas por conversão. O trabalho aqui proposto representa apenas uma visão sucinta do tema em questão, evidenciando-se os casos de conversão que envolvam os principais grupos de palavras e, por ventura, alguns casos que se apresentem como uma curiosidade, nas línguas em estudo.

O desafio de definir classes de palavras

As palavras e suas famílias

O primeiro questionamento que surge ao tocarmos nesse assunto está relacionado à vantagem e ao porquê de atribuirmos palavras à classes. Segundo Perini (2001: 307), existem várias vantagens para se definir classes, fatores tais como a economia, a depreensão dos grandes traços da estrutura da língua, ou o estudo da organização para elementos lingüísticos. Ao colocarmos palavras em classes, torna-se possível fazer uma única afirmação gramatical sobre um grupo de palavras, no lugar de milhares de afirmações idênticas separadas. Por exemplo, percebemos que algumas palavras têm em comum certas características morfológicas. Em alguns casos, por exemplo, as mesmas palavras podem ocorrer como sujeito de uma oração, logo as palavras que já apresentavam características morfológicas em comum, também apresentam características sintáticas. E, assim, à medida que descobrimos mais características que as palavras têm em comum, aumenta a utilidade da classe estabelecida.

Faz-se necessário mencionar que nem todas as palavras, que são tradicionalmente consideradas como pertencentes a uma mesma classe, possuem as mesmas características. Detalhes como esses se revelam como os grandes desafios para o enquadramento de palavras a classes. Na verdade, nem sempre as palavras estarão registradas no dicionário naquela classe em que aparecem em determinado contexto, tudo dependerá dos papéis sintático e semântico que elas são capazes de desempenhar em um ambiente de uso lingüístico.

O aparecimento das famílias das palavras

Segundo Basílio (1998: 7-8), dentre as necessidades que nos levam à formação de palavras, está a de usar uma palavra de uma classe ou de uma categoria gramatical, como um verbo, por exemplo, no lugar de um substantivo, ou seja, deseja-se utilizar o significado de uma palavra já existente em um contexto que requer uma classe gramatical diferente.

O fato é que, segundo Basílio (1998: 54), o que podemos concluir é que a questão da definição de classes de palavras é bastante complexa, tanto em relação aos critérios, quanto à adequação de definições de classes. Então, como não daríamos conta de apreciar todos os critérios de classificação e não é esse o objetivo desse trabalho, tomaremos os critérios Semântico, Morfológico e Sintático, discutidos por Basílio.

Se analisarmos isoladamente, veremos que o critério semântico é de fundamental importância para a definição das classes vocabulares produtivas do léxico, mas não é um critério suficiente, assim como o morfológico e o sintático. No caso de algumas palavras, o critério morfológico mostra-se eficaz em sua definição, por exemplo, o verbo, devido a sua peculiaridade da flexão, e o advérbio, por ser morfologicamente invariável. Mas esse mesmo critério, no entanto, não dá conta da distinção adequada entre substantivos e adjetivos.

Já o critério sintático define facilmente o advérbio, dada a sua função modificadora junto ao verbo, mas, por outro lado, a definição puramente sintática dos adjetivos não é suficiente, visto que não os distinguem de determinantes. O fato é que um único critério não é suficiente para definição de todas as classes.

Segundo Basílio, “em princípio, um item lexical é um complexo de propriedades morfológicas, sintáticas e semânticas. Assim, sua pertinência a classes deve ser estabelecida em termos morfológicos, semânticos e sintáticos” (1998: 54).

Considerando a dificuldade para determinar a natureza das classes de palavras, no que se refere à hierarquia dos critérios, a autora sugere a observação da relevância da função sintática e da função semântica nos processos de formação de palavras.

Conceito e características do processo por conversão

Conversão é o processo derivacional através do qual um item é adaptado ou convertido a uma nova classe de palavra sem a adição de afixo. Ou ainda, como afirma Kehdi (1992: 29), um vocábulo pode ser formado quando passa de uma classe gramatical a outra, aparentemente sem alterações formais.

Na língua inglesa a conversão é vista, excepcionalmente, como um processo de formação de palavras devido a sua variedade de regras de conversão e de sua produtividade. Segundo Quirk et al.(1972: 1011-13), as principais classes de palavras envolvidas em casos de conversão são: substantivos, verbos e adjetivos, destacando que as conversões de substantivo em verbo, e de verbo em substantivo são as categorias mais produtivas. Enquanto que, na Língua Portuguesa, os casos de conversão propostos por Basílio (1998: 61-64) são adjetivo em substantivo, verbo em substantivo, advérbio em substantivo / adjetivo, substantivo em adjetivo e adjetivo em advérbio. Sendo que, as maiores incidências ocorrem na conversão do adjetivo em substantivo e adjetivo em advérbio, constituindo-se nas categorias mais produtivas.

Uma questão de comparação

Vejamos exemplos em Língua Portuguesa e em Língua Inglesa. Para efeitos de uma identificação mais clara, trataremos os exemplos da língua Portuguesa acompanhados de P e da Língua Inglesa acompanhados por I:

(1P) Adjetivo em Substantivo

a. Os alunos pobres enfrentam tantas dificuldades

quanto os alunos negros.

b. Na verdade, as cotas nas universidades não deveriam

ser para os negros, mas sim, para os pobres.

(2P) Substantivo em Adjetivo

a. Os ursos pandas estão ameaçados de extinção.

b. Tomé Cássio era grosso, de ursos ombros.

(Guimarães Rosa)

(3P) Verbo em Substantivo

a. Os alunos devem olhar para os novos conteúdios

com mais atenção.

b. Os professores devem direcionar um olhar especial

aos alunos com dificuldade.

(4P) Adjetivo em Advérbio

a. João sempre foi um menino diferente dos outros.

b. João correu diferente do que se esperava.

c. O professor teve de falar alto porque os alunos estavam gritando.

d. O professor teve de subir em um patamar mais alto para chamar atenção dos alunos.

e. Fala sério!

f. Fala seriamente!

h. A cerveja que desce redondo.

(1I) Adjetivo em Substantivo (padrão pouco produtivo)

a. She learned from bitter experiences.

b. I’d like two pints of bitter, please. (type of beer, BrE)

(2I) Substantivo em Adjetivo

a. There is a pile of bricks to build the wall.

b. It is a brick wall.

c. The wall is brick.

O caso (2I) c. ocorre apenas quando o substantivo é utilizado como predicativo, bem como em posições atributivas.

(3I) Verbo em Substantivo

a. The acclaim was enthusiastic.

b. People acclaim the President enthusiastically.

(4I) Adjetivo em Advérbio

a. He spoke loud and clear.

b. He spoke loudly and clearly.

Em outros casos não há a forma adverbial correspondente do mesmo item lexical, neste caso a forma adjetiva é usada.

c. He always thinks big. (informal)

d. They are running fast.

e. We are working late.

Comentemos alguns casos que se destacam. Por exemplo, para a conversão em substantivo, é relevante a observação de Faraco & Moura (2001: 184), ao destacar que, é muito comum a substantivação, isto é, a transformação de qualquer classe gramatical em substantivo. Também, faz-se relevante nesse momento, uma observação a respeito do último caso de conversão proposto por Basílio, a de adjetivo em advérbio. Em (4P) a., nota-se um adjetivo exercendo o papel de um advérbio, mas em (4P) c., alto é uma palavra que se encontra classificada, de acordo com Ferreira (1995: 33) como adjetivo e como advérbio. Traçando um paralelo entre as línguas em questão, percebemos que o processo dá-se da mesma forma. Poderíamos comparar diferente com big, adjetivos atuando como advérbio em caráter informal; e, ainda, alto com fast que são palavras classificadas, no dicionário, como adjetivo e como advérbio.

Segundo Hummel, a conversão do adjetivo em advérbio não surgiu em época moderna, como se pretende por vezes, e constitui-se no tipo de formação mais comum e de tradição oral em todas as línguas românicas, o que o faz supor que este mecanismo já funcionou em latim vulgar, isto é, no latim falado inculto (disponível em www.geocities.com / ail_br / ail.html).

O exemplo (4P) e. apresenta uma expressão popular inserida no nosso cotidiano pela mídia e representa os casos nos quais ocorre este tipo de conversão, por exemplificar justamente uma típica fala da linguagem informal (coloquial), sobretudo falada, devido ao fato de que os falantes consideram o advérbio terminado em -mente como mais correto do que o adjetivo adverbializado, enquanto o exemplo (4I) f. carrega consigo uma carga muito maior de formalidade, exemplificando uma típica fala da linguagem culta formal, sobretudo escrita.

Hummel compara o Brasil a Portugal e afirma que os casos de conversão de adjetivos em advérbios são muito mais freqüentes no Brasil, concluindo que a freqüência dos advérbios em -mente depende historicamente da influência da norma lingüística e nomeadamente do grau de escolaridade atingido em um país. Nunes afirma que a conversão é um processo herdado do latim, especialmente o falado na época imperial (apud HUMMEL, disponível em www.geocities.com / ail_br / ail.html. E parece que já naquela época houve gramáticos que censuraram o tipo popular de conversão. É, portanto, possível que as críticas normativas dirigidas a conversão sejam tão antigas como o processo criticado.

Apesar de o mecanismo de conversão de adjetivo em advérbio fazer parte do código informal, percebemos a sua grande utilização na publicidade, como é o caso do exemplo (4P) h. Atualmente, a conversão de adjetivo em advérbio constitui-se em um recurso bastante usado pela televisão brasileira. De acordo com Basílio (1998: 64),

A utilização de adjetivo em advérbio não provoca alterações semânticas, nem diferença de funções, o que ocorre é uma sensível mudança de tom expressivo, o que está diretamente ligado ao grau de formalidade do discurso, já que a forma adjetiva expressa uma idéia mais direta e forte, enquanto a forma em -mente apresenta um tom mais neutro e formal.

Por meio deste raciocínio, é fácil entender que ao se utilizar um discurso menos formal, estabelece-se uma proximidade maior entre aquele que anuncia um produto e aquele que se constitui em um consumidor em potencial, criando-se, assim, de forma até inconsciente, uma relação de maior intimidade. Além disso, os slogans, parecem mais fáceis de serem incorporados pelo público.

Hummel explica unindo sua própria abordagem com a de Kock / Oestereicher e a de Bühler, que “o adjetivo adverbializado pertence ao código informal que tem como função sintomática (Bühler, 1982:28) a da proximidade e como função apelativa (Bühler), no caso da publicidade, a da persuasão.” Disponível em www.geocities.com / ail_br / ail.html. No entanto, é interessante observar a pluralidade de opiniões. Segundo Hummel, a tradição gramatical apresenta a formação do advérbio pelo sufixo -mente como única regra produtiva do sistema da língua atual. Mas, Evanildo Bechara (1999: 294) admite a existência do mecanismo da conversão: Muitos adjetivos, permanecendo imóveis na sua flexão de gênero e número, podem passar a funcionar como advérbio.

Considerações Finais

A conversão, apesar de ser o único mecanismo comum a todas as línguas românicas, já utilizado no latim vulgar de acordo com vários estudos realizados, constitui-se em um processo que apresenta, também, muitas semelhanças quando comparado entre as línguas portuguesa e inglesa, apesar das diferentes origens.

Podemos afirmar que a conversão é um mecanismo produtivo em ambas as línguas contrastadas. Este mecanismo contribui para a economia lingüística, devido ao fato de utilizar um mesmo vocábulo em diferentes contextos, auxiliando o homem na redução de sua atividade mental.

Quanto à atribuição de palavras em classes, percebemos que os mecanismos utilizados nas línguas contrastadas são praticamente os mesmos, como por exemplo critérios morfológicos e sintáticos.

Observamos com esta pesquisa que esse é, ainda, um caso pouco estudado, mas que se revela como um material muito rico a ser apreciado. Além disso, faz-se necessário mencionar que várias palavras estão registradas, no dicionário, como pertencentes a mais de uma classe gramatical, mas mesmo assim fica caracterizado o processo de conversão, partindo-se da idéia de que existe uma palavra base pertencente a uma classe primeira, e que a partir dela, ocorre uma conversão em outra classe, que originará a palavra derivada. Por outro lado, há diversos casos de conversão nos quais os vocábulos em questão não aparecem, no dicionário, como pertencentes àquela classe.

Podemos afirmar que esse fato se dá por ser a língua muito dinâmica, não havendo condições de se prever todos os casos de conversão que nela possam ocorrer. Por este motivo, a língua e seu uso sempre será objeto de constantes estudos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BASÍLIO, Margarida. Teoria Lexical. São Paulo: Ática, 1990.

FARACO & MOURA. Gramática. 12ª ed. São Paulo: Ática, 2001.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda; Assistentes: Margarida dos Anjos et alii. Novo dicionário da língua portuguesa. 1a ed. (10a impressão). [Rio de Janeiro]: Nova Fronteira 1995.

KEHDI, Valter. Formação de Palavras em Português. São Paulo: Ática, 1992. (Série Princípios)

MARTINET, André. Elementos de Lingüística Geral. 6ª ed. Lisboa: Sá da Costa, 1975.

PERINI, Mário A. Gramática descritiva do português. 4ª ed. São Paulo: Básica Universitária, 2001.

QUIRK, Randolph et al. a Grammar of Contemporary English. Longman, 1989.