AS MUDANÇAS LINGÜÍSTICAS: ONTEM / HOJE

Nícia de Andrade Verdini Clare (UERJ)

Parte I

De acordo com Charles Bally (Apud COSERIU, 1979: 15), “a língua muda sem cessar e não pode continuar funcionando senão não mudando”. Trata-se do paradoxo da linguagem que nos leva à compreensão de que a língua vive em equilíbrio instável.

A cada momento, termos são considerados obsoletos, como é o caso do arcaísmo treição e, mais recentemente, em língua moderna, o mata-borrão. Paralelamente, com o avanço da tecnologia, muitos termos são incorporados à língua, como, por exemplo, xérox, videocassete, hipermercado, deletar e outros.

A língua é, como diz Coseriu, um fazimento (Id., p. 100) e as mudanças lingüísticas pertencem à ordem final, o que significa dizer que a língua é um sistema para cumprir uma função: a comunicação. A língua faz-se continuamente porque o falar é atividade criadora.

Desde que a Lingüística passou a ser encarada como ciência, na segunda metade do século XIX, a mudança passou a ser uma preocupação dos estudiosos de língua. A princípio, acreditava-se que a língua evoluía paulatina e gradualmente para atingir uma fase final de plenitude, quando estacionaria, caracterizando, assim, uma civilização superior.

A partir do século XX, com o avanço dos estudos lingüísticos, o conceito de evolução passou a ser objeto de questionamento. Necessitava-se de uma definição para o conceito de plenitude a ser atingida pela língua. Para Grimm (Apud CÂMARA JR., 1979: 66), da escola alemã, a plenitude só foi atingida pelas línguas clássicas indo-européias, altamente flexionadas, como o latim, o grego e o sânscrito; já para Jespersen (Id., p. 67) e outros lingüistas, a plenitude é atingida nas línguas modernas do ocidente europeu, pouco flexionadas, como o inglês moderno.

O impasse só foi solucionado com o conceito de deriva (drift), de Edward Sapir (Id. ibid. ), da escola americana. Deriva não significa evolução. As mudanças lingüísticas não são casuais nem desconexas. Seguem uma diretriz; há uma corrente nas mudanças. O conceito é neutro: a língua não melhora nem piora; apenas constata-se que ela muda.Várias são as razões dessa mudança, mas a principal situa-se na relação que se estabelece entre língua e cultura. A rapidez ou lentidão no processo de deriva está condicionada a condições histórico-sociais. Observando-se uma cantiga de amigo, um soneto de Camões e um de Vinícius de Moraes, observar-se-á que as diferenças de linguagem entre os dois primeiros, pertencentes, respectivamente, à fase galego-portuguesa e ao português moderno, são bem mais sensíveis que entre os dois últimos, embora entre Camões e Vinícius tenhamos quatro séculos. Talvez a explicação para esse fato resida no grande prestígio social trazido pela língua dos colonizadores, ensinada nas escolas, principalmente no litoral, com aspecto bastante conservador. Não sofrendo as mudanças operadas na Metrópole, a língua portuguesa do Brasil conserva-se, até hoje, próxima da língua do século XVI.

Por outro lado, no interior do Brasil, as grandes massas nativas tiveram de aprender rapidamente a língua dos senhores e o fizeram de modo imperfeito, acelerando, assim, a deriva. A linguagem rural ou dialetal brasileira teve, por conseguinte, rápida mudança em termos fonéticos e morfológicos, como se pode ver em maiada (por malhada, com iotização da líquida) e na redução de flexões: nós vai, as mesa.

Assim ,conclui-se que a mesma força transformadora da língua dos trovadores na dos clássicos quinhentistas, embora tenha sido parcialmente travada pela gramaticalização e pelo ensino nas escolas, continua viva e atuante. Suas manifestações são sentidas, não apenas nos falares interioranos, mas na língua despoliciada do povo, em geral, e até no coloquial distenso dos gramaticalizados.

Há, entre a deriva e a escola, uma relação de oposição, como se fossem os dois pratos de uma balança. Se a escolarização entra em declínio, a deriva acelera; se, ao contrário, a escola insiste na divulgação de uma língua formal, muitas vezes artificial, a deriva é contida. Mas até certo ponto. Segundo Mattoso Câmara (CÂMARA JR., 1979: 69), dentro da flutuação, há uma corrente de mudança, que vai marcando a história da língua, da mesma forma que uma série de corredeiras, determinadas por depressões de terreno e pequenas angras, estabelecem flutuações num curso de água, ou seja, na corrente principal, que leva o rio para sua foz. Da mesma maneira, a língua popular continua seu fluxo, impulsionada pelo declive do terreno, embora, na superfície, tudo pareça fixo pela imobilidade da norma culta.

Toda mudança significativa que se verifique na língua é, inicialmente, uma variação individual, mas nem todas as variantes fazem parte da deriva, só “as que se movem em certa direção” (SAPIR, 1971: 155). Cada traço característico da deriva existe, a princípio, como tendência, muitas vezes encarada com desprezo. Seria o caso de uma pessoa dizer largato em vez de lagarto.

Não obstante, a deriva continua, as mudanças se processam e, se quisermos ter uma previsão do movimento lingüístico futuro, é para a fala despoliciada do povo que teremos de nos voltar. Segundo Sapir (Id., p. 156), “as mudanças dos séculos próximos estão em certo sentido prefiguradas em algumas tendências obscuras do presente”.

Observando, por exemplo, o coloquial carioca, conclui-se que, em relação à 2ª pessoa do singular, há uma tendência à simplificação, igualando-a às formas de 3ª pessoa. Assim, “tu vai”, “tu disse”, “tu sabia”, “tu achou”...vão, pouco a pouco, substituindo, no Rio de Janeiro, “tu vais”, “tu disseste”, “tu sabias”, “tu achaste”, formas essas que permanecem apenas em locais de grande influência lusitana. É interessante notar que a forma simplificada já não se acha marginalizada entre pessoas pouco escolarizadas; ao contrário, vem sendo adotada em todas as camadas da população, especialmente entre jovens, em situações informais. Por outro lado, o tratamento você, de Vossa Mercê, através de vosmicê, originariamente cerimonioso, passou, pouco a pouco, à linguagem familiar e, hoje, é comum, pelo menos entre jovens cariocas, ser usado em oposição ao tu, em situações que exigem maior respeito.

Mas, como disse Sapir, “não podemos antecipar a deriva e manter, ao mesmo tempo, nosso espírito de casta” (Id., p. 157). Fica-se, portanto, em relação à flexão da segunda pessoa, com o conflito mental: a aceitação consciente e incômoda da forma flexionada e o desejo inconsciente de empregar a forma simplificada.

Língua falada e língua escrita também se contrapõem. Diz-se “-Me empresta a caneta?”, mas, dependendo das circunstâncias, ainda se escreve ”Empresta-me a caneta?”, procurando, de forma artificial, seguir as diretrizes gramaticais que preconizam não iniciar períodos com pronomes oblíquos átonos. O assunto é apaixonante e já foi alvo de muitas discussões, até que Said Ali chamou a atenção para o fato de que a pronúncia brasileira difere da lusitana, daí a impossibilidade de nossa disciplina gramatical, no que tange à colocação de pronomes, seguir a norma culta de lá. Mesmo assim, muitos professores ainda consideram errada essa construção e exigem de seus alunos a ênclise do pronome.

O brasileirismo no emprego de “lhe” como objeto direto em frases do tipo “Eu lhe conheço” ainda é repelido na forma escrita culta, mas bem aceito na língua falada.

E o que dizer da passiva do verbo “assistir”? Quem nunca escutou dizer “O espetáculo foi assistido...”?

Quem não usa, distensamente, o verbo “ter” pelo “haver”? Formas como “Tem aula hoje” ou “Tinha muitos alunos na sala” já são usuais. Por que alguns professores ainda insistem em corrigi-las sem nem ao menos fazer uma observação a respeito?

Ensina-se, ainda, a construção “Alugam-se casas”, considerando a passiva sintética e o sujeito determinado “casas”, quando, na verdade, a intenção do falante é construir um sujeito indeterminado com “Aluga-se casas”. Não seria o caso de pensarmos em suprimir essa passiva “sintética”, que, aliás, nada tem de sintética?

Examine-se o caso do futuro. Sintético no Latim Literário, analítico no Vulgar, veio a dar, em português, uma nova forma sintética, contraída. Pouco a pouco, na língua falada, com repercussões na língua escrita, substitui-se essa forma sintética por outra analítica, empregando uma locução verbal. Quem, hoje em dia, diz “sairei” ao invés do mais expressivo “vou sair”, que revela uma intencionalidade? E que dizer das crianças, como sempre intuitivas com relação ao sistema, que dizem, com tanta graça, “Eu vou ir”?

Estará o futuro do indicativo sempre fadado à deriva da língua? Constitui ele um ponto frágil do sistema? O movimento sintético-analítico, analítico-sintético será, em termos de futuro do indicativo, uma constante? Será que, um dia, iremos dizer “voamá”, em forma contraída, no lugar de “vou amar”?

Conclui-se, portanto, que as mudanças, sejam elas fônicas, lexicais, semânticas, sintáticas ou morfológicas, estão sempre latentes, convivem com os usuários da língua em qualquer momento sincrônico e podem, a qualquer momento, fazer parte da deriva e incorporar-se ao sistema.

Às pessoas que julgam ter a língua portuguesa se estruturado no século XVI, com Camões, e, a partir daí, permanecendo fixa, inalterável, respondemos que a língua é processo dinâmico e apresentamos algumas variantes na segunda parte desse trabalho. É certo que algumas se diluirão com o tempo e a pressão da norma culta ensinada nas escolas; outras, entretanto, impõem-se, seguem o rumo da deriva e “ficam para sempre assinaladas na história da língua” (SAPIR, 1971: 155).

Parte II

Os casos que se seguem foram extraídos da linguagem dos cantadores nordestinos (segundo pesquisa de Clóvis Monteiro em textos coligidos pelo escritor cearense Leonardo Mota); da língua do Nordeste, apresentada por Mário Marroquim; do dialeto caipira, estudado por Amadeu Amaral, e de muitas manifestações da língua falada, coloquial e vulgar, através de observações diretas ( linguagem televisiva, contato interpessoal etc)

Acréscimo de fonemas

Desde o Latim Vulgar até o português arcaico, muitos casos de prótese, epêntese e paragoge podem ser mencionados. Também o fenômeno da aglutinação foi uma tendência a ser verificada. O advérbio depois surgiu do reforço, pela preposição de, ao monossílabo post. A tendência analítica do povo, desde o latim vulgar, repelia monossílabos significativos. Cor foi substituído por *coratione , que deu coraçon e, depois, coração.

Ainda nos dias atuais, sente-se a tendência a evitar o monossílabo tônico, acrescentando a ele outro monossílabo átono. À pergunta “Ele tem que fazer...?”, é comum a resposta “Tenque”.

Sabe-se que memorare, do latim clássico, deu *mem`rar, com síncope do o, e, depois, membrar, por epêntese. Nos empréstimos modernos, é comum acrescentar-se e por motivos eufônicos: beef deu bife.

Hoje, temos, extraído de A língua do Nordeste, “passarim avoe mais baixo” (MARROQUIM, 1945: 122), com prótese do a.

Outros exemplos: alembrar por lembrar; arripitir por repetir; alevantar por levantar; assentar por sentar. É freqüente a epêntese de e ou i para desfazer os chamados encontros consonantais disjuntos: adevogado por advogado; peneu por pneu; obiturar por obturar. A tendência a desfazer grupos consonantais foi notada em pleno português arcaico, quando *bratta (de blatta) > barata e *fevrairo (de februariu) > fevereiro.

Subtração de fonemas

Fenômeno comum no Latim Vulgar foi a apócope, que se observa principalmente nos infinitivos verbais (amare > amar). Os exemplos de síncope se fazem mais notados em casos de proparoxítonos. Parece que evitar o proparoxítono é tendência da língua popular. Assim, oculu > oclu ( e olho por palatalização); veritate > verdade.

Também a crase foi fenômeno freqüente: coor > cor ; pee (de pede) > ; veer (de videre) > ver.

Mas estes fenômenos, iniciados no Latim Vulgar, continuaram no português arcaico (see > sé; avoo > avô) e permanecem na língua popular, no coloquial distenso e nos falares regionais de nossos dias. A deriva continua e ninguém pode deter o seu fluxo.

Observem-se os seguintes textos extraídos de A língua do Nordeste, de Mário Marroquim: De duas coisa a mais feia / Progunto aos home do ensino: / Se é muié que fala grosso / Se é freguei falando fino. (MARROQUIM, 1945: 189)

Temos coisa por coisas, simplificando a flexão, ao omitir o morfema de plural (fenômeno não apenas regional, mas uma constante na fala dos pouco escolarizados); idem em relação a home, onde se suprime, também, a nasalidade; muié, com apócope e iotização.

Analisando a linguagem dos cantadores, Clóvis Monteiro faz, entre outros, o seguinte comentário:

Desnasalização - e final ( = i) não conserva, em regra, a ressonância nasal que na escrita se representa por m: home-, orde-nuve-, image-, corage- etc; Queda: a) - o final ( = u), precedido da semivogal i, cai algumas vezes nos dissílabos, principalmente em próclise, e quase sempre nos polissílabos: mei-dia, ferroi- etc. cai igualmente quando o i que o precede é vogal nasal: vizio (com i nasal) > vizim ( = vizinho), camio (com i nasal) ( = caminho) > camim, nio (com i nasal) ( = ninho) > nim. Em virtude desta tendência, de que às vezes nem sequer se isentam, pelo menos no falar corrente, as pessoas cultas, reduz-se a im o sufixo inho; , b) - Nos paroxítonos, tende a desaparecer a protônica, assim esteja entre r e outra consoante que possa com o r formar grupo: embaraça > embraça; c) - Nos proparoxítonos, que a língua popular sempre repele, cai a postônica, embora esteja entre consoantes que se não possam agrupar: sábado > sabo, espírito > esprito, véspera > vespra e vespa (não aparece nos textos senão a última forma),título > titlo > tito (somente a última é que vem nos textos) etc. (MONTEIRO, 1933: 55)

Seguem-se outros exemplos: O home que rapa a croa / Ou é padre ou frade ou reis (Jacob Passarinhos - cantadores,52) (Id., p. 104); Ô muié ! mas ocê não vê que vem bem dize nua!... (Cantadores, 335) (Id., p. 235)

Citemos ainda: güentar por agüentar; peraí por espera aí; magina por imagina; gibera por algibeira; isprito por espírito; ridico por ridículo; nego por negro; poblema por problema; Petropis por Petrópolis; fosfo por fósforo; abobra por abóbora; veno por vendo (fenômeno comum em MG, SP, GO e BA); quano por quando; arvre por árvore; vibra por víbora; jorná por jornal; vestidim por vestidinho; padim ou padrim por padrinho; revolves por revólveres; figo por fígado; passo por pássaro; arfere por alferes.

Permuta de fonemas

Na passagem de *monisteriu, do latim vulgar, a mõesteiro, houve metátese do / i / em favor de um ditongo decrescente; também uma permuta ocorreu de fermosa para fremosa, atingindo a líquida.

Pela observação dos fatos, chegou-se à conclusão de que as metáteses tinham por função evitar hiatos e ditongos crescentes, transformando muitas vezes a vogal / i / em semivogal / y / , ou atingiam as líquidas por sua instabilidade.

Também movimentos de sístole e diástole foram comuns no Latim Vulgar: amassemus (por amavissemus) deu amássemos; muliere (com e breve) deu muliere (com e longo) e esses movimentos também atingiram a língua portuguesa. Assim, a forma arcaica benção ( de bençon, do latim benedictione) deu bênção.

Nos dias atuais, a permuta de fonemas continua. O povo mantém a ojeriza a hiatos e ditongos crescentes . Dizem tauba por tábua. A dificuldade com a líquida continua: lagarto ou largato? Foge-se dos proparoxítonos: crisântemo ou crisântemo? Quem , hoje em dia, diz azálea em vez de azaléia? E quantas vezes ouvimos perguntar se “o parto tá na partelera”? E quantas pessoas falam que estão sastifeta (com metátese, absorção do / i / e simplificação da flexão)? E que dizer de bicabornato, estauta, areoporto, açalpão?

Mário Marroquim menciona: “Vou fazê-lhe uma pregunta / Pra você me destrinchá... (MARROQUIM, 1945: 212)

Clóvis Monteiro apresenta a metátese de determinado em: Ficou cento e oitenta e três / Mas homes ditriminado... (MONTEIRO, 1933: 48)

Vocalização, ditongação e monotongação

Na passagem de Latim Literário a Vulgar, desse ao romanço e ao português arcaico, inúmeros casos de vocalização, ditongação e monotongação foram observados. A forma grão, apocopada de grande, usada em títulos, como grão-vizir, era, a princípio, grã, ditongando-se no século XIII, ocasião em que as formas an e on se igualaram em ão. O mesmo processo se deu em relação a verbos: mandarõ passou a mandaram.

A absorção do u semivogal levou à monotongação em formas como duodeci que deu doze.

A vocalização é notada em casos, como nocte > noite.

Observe-se, agora, a linguagem dos cantadores: Aí chamaro pra janta (Idem, p. 67). A forma chamaram , ditongada, foi substituída por chamaro, monotongada. Formas como velho, abelha ,orelha, filho vocalizaram-se em veio, abeia, oreia, fio. Por sua vez, nascer, cruz, nós, fruta, caranguejo, ditongaram-se, apresentando-se como naiscer, cruiz, nóis, fruita, carangueijo, mais.

Assimilação, dissimilação, nasalação, metafonia

A forma arcaica moesteiro, de *monisteriu, deu moosteiro por assimilação. Também manairo (de manuariu) deu maneiro por assimilação.

Eo (por ego) passou a eu por oclusão (ditongação com metafonia). A forma esta (ê) de ista (com i breve) passou a esta (é) por influência do / a / aberto.

Formosa passou a fermosa por dissimilação. Igual fenômeno ocorreu com membrar (de memorare), que passou a nembrar e, posteriormente, a lembrar, sempre ocorrendo dissimilação

O / n / de inimicu desaparece, deixando a nasalação na vogal anterior: eemigo (com til no primeiro e). Assim também, luna > lua (com til no / u / ) > lua, desnasalizando; lana > lãa > lã, por crase; vinu > vio (com til no i) > vinho, com deslocamento da nasalidade e palatalização.

Esses fenômenos não se interromperam com a estruturação da língua no século XVI. A deriva continua. Não pára nunca, porque a língua é, como disse Coseriu, um permanente fazer-se. (COSERIU, 1979: 32)

Clóvis Monteiro extrai da linguagem dos cantadores o seguinte exemplo de nasalação: Só pros outros se inzemplá (tomar como exemplo) (MONTEIRO, 1933: 49). Mário Marroquim observa, na língua do Nordeste, um exemplo de assimilação parcial, em que a palatal / i / atrai o / a / para formar o ditongo / ei / , fato esse que demonstra o aspecto arcaizante registrado no português do Brasil: Paxão é onça cabrera / Qui se amoita nas vareda / E pega a gente às treição.... (MARROQUIM, 1945: 69)

Vejam-se outros casos esparsos registrados no falar brasileiro: interesse = enteresse = enterese; flagrante = fragrante (com rotacismo, proporcionando a confusão entre parônimos); discussão = discursão; touro = toro; roupa = ropa; trouxe = truxe; soube = sube; ignorância = inguinorância; mendigo = mendingo; eleição = inleição; mortadela = mortandela; sobrancelha = sombrancelha.

Oscilações: om / am / ão; b / v; a / e; l / r; e / i

Assim como oraçon (de oratione) deu oração, nõ deu não, bõo > bom, por fenômenos de oscilação ocorridos no século XIII. Mas, nos dias atuais, vemos as variantes bom / bão, tom / tão, estão / estam (este, fenômeno apenas gráfico).

A degeneração b / v existiu no latim vulgar. Observem-se os seguintes casos: habebat > haveva (origem de havia); parábola > paravra; tenebras > treevas (com til no primeiro / e / ). Ainda hoje notamos esse fenômeno em casos como: bilhete = viete, mangaba = mangava;vamos = bamos. É uma diferença fônica que se nota, sobretudo, entre a língua portuguesa falada no Brasil e em Portugal. Entre os portugueses, é comum a fricatização do / b / , pronunciado quase como / v / .

Estudando-se a língua diacronicamente, sentem-se oscilações freqüentes entre a / e, e / i. Vejam-se: havea > havia por fechamento; alfaça > alface, por analogia com couve, espinafre etc.. Hoje, nas variedades , tanto diastráticas quanto diatópicas, notam-se, ainda, essas oscilações: seja = seje; Bartolomeu = Bertolomeu; esteja = teje, com aférese; espiral = aspiral; cárie = caria; alpiste = alpista.

Observando as consoantes líquidas / l / e / r / , desde o latim vulgar até a formação da língua portuguesa, chegamos à conclusão de que representaram um ponto frágil no sistema, sendo constantes, não só as metáteses por elas provocadas, mas também a oscilação entre ambas, com nítido predomínio do rotacismo, que mantém a consoante / r / . Vejamos: eclésia > igreja; affligere > afrigir (arc.); implicare > empregar; parábola > paravra, passando a palavra por dissimilação.

Nos dias atuais, o fenômeno continua: Cheguei agora, moçada, / já escoí meu cumpanhero: / quem é bão nua trucada / rebusque quarqué parcero (AMARAL, 1955: 141) / / Hóme, bamo vortá pra casa. Notamos, ainda, entre outras, flauta = frauta, planta = pranta; Flamengo = Framengo; flor = frô...

Poder-se-iam citar mais e mais exemplos. Nossa língua é rica em variedades. Mas o que importa é a constatação pura e simples de que a língua não parou com Os Lusíadas nem com a gramaticalização e o estabelecimento de uma norma culta. A deriva continua porque a língua é processo e seus resultados, sob o ponto de vista da Lingüística Histórica, são tão válidos hoje quanto o foram outrora.

O estudo da língua como um diassistema, abordando todas as suas variedades, não é apenas importante, mas também indispensável para o conhecimento da língua. Descrever uma língua sincronicamente é apresentá-la diastrática e diatopicamente e proceder à análise de seus fatos. Seria conveniente, pois, sugerir-se que os compêndios de História da Língua ressaltassem também esse aspecto de mudança contínua e abonassem os estudos históricos com a apresentação de fatos lingüísticos atuais.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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