BASES DIACRÔNICAS
PARA AS RELAÇÕES DE CAUSATIVIDADE
E PROCESSUALIDADE
EM PORTUGUÊS
A
GÊNESE DA VOZ MÉDIA

Paulo Mosânio T. Duarte (UFC)

 

Introdução

Este artigo tem por escopo fornecer elementos para o estudo das relações entre a chamada voz de ação / processo e a voz de processo, numa abordagem diacrônica. Infelizmente, não tivemos oportunidade de rastrear, como devíamos, as referidas relações, mostrando momentos em que algumas estruturações não ainda estavam em fase de consolidação. O motivo para tal insuficiência se deve a dois fatores: o primeiro deles diz respeito à falta de ampla bibliografia pertinente que nos oferecesse um corpus alentado; o segundo concerne à falta de um amplo espaço que motivasse uma investigação mais detida sobre o assunto.

Para levarmos a termo nosso desiderato, decidimos tratar do assunto sob dois prismas de base mórfica: a) os derivados emsc(ere); b) e os derivados emare. No que concerne ao primeiro, trataremos da distribuição, e do sentido do afixo, da transitividade e dos papéis semânticos actanciais, em seu trânsito de um emprego estritamente incepto-continuativo, para, no latim vulgar e, daí para o português, a admissão, também, do emprego causativo, bem como da assunção de um significado amplamente incoativo. No que tange ao segundo, trataremos das formas denominais causativas para, daí, hipotetizarmos a consolidação de um emprego também incoativo.

 

O sufixo –SC(ERE): seu comportamento gramatical e semântico

O sufixoSC(ERE) remonta a empregos bem antigos, uma vez que se encontra, às vezes, adjungido como se em nosco, pasco e posco. Era um sufixo que aparecia em formas do infectum, indicando que a ação, o processo ou o estado começam a tomar uma certa intensidade, designando assim o começo de cada um dos referidos estados de coisas[1]. Sendo forma privativa do infectum, gerava oposições verbais do tipo: cresco / crevi, nosco / novi, scisco / scivi; em que cada segundo membro de cada par constituía forma de perfectum.

O sufixo em tela passou a anexar-se a verbos estativos de segunda conjugação. Três possibilidades se delinearam. A primeira delas pode ser ilustrada pelos pares abaixo:

Verbos estativos

Verbos incoativos ou incepto-continuativo[2]

langueo (sou / estou lânguido)

languesco, ere (torno-me lânguido)

liveo (sou / estou pálido)

livesco, ere (torno-me pálido / empalideço)

madeo (sou / estou úmido)

madesco, ere (torno-me úmido)

tumeo (sou / estou inchado)

tumesco, ere (torno-me inchado)

Além do esquema acima, outro pode ser citado, constituído de uma tríade: adjetivo verbo estativo verbo incepto-continuativo (traduziremos apenas os adjetivos).

Adjetivos

Estativos

Incepto-continuativos

albus, a, um (branco)

albeo, ere

albesco, ere

clarus, a, um (ilustre)

clareo, ere

claresco, ere

niger, gra, grum (negro)

nigreo, ere

nigresco, ere

ruber, bra, brum (vermelho)

rubeo, ere

rubesco, ere

Nem sempre, porém, havia o verbo de estado ao qual se adjungisse o sufixo: o afixo final se acrescentava diretamente ao adjetivo sem a mediação de um verbo estativo. No entanto, como veremos, a vogale permanece no verbo formado (ela pertenceria ao verbo estativo caso este existisse). Se considerado uma forma estativa teórica, teríamos o sufixo sc (ere), mas, se levada em conta a mera anexação, temos o sufixo – esc(ere). Iremos desconsiderar as formas estativas virtuais. Apresentamos a seguir o terceiro quadro que prosperou em português.

Adjetivos

Incepto-continuativos

crassus, a, um (espesso)

crassesco, ere

gravis, e (pesado)

gravesco, ere

maturus, a, um (maduro)

maturesco, ere

Um quarto tipo, similar ao terceiro, diz respeito a verbos incepto-continuativos de raiz substantival. Neste grupo, reconhecemos dois subtipos: aqueles mediados por verbos estativos e aqueles mediados por estes verbos.

Substantivos

Estativos

Incepto-continuativos

flos, oris (flor)

floreo, ere

floresco, ere

frons, frondis (fronde)

frondeo, ere

frondesco, ere

lac, lactis (leite)

lacteo, ere

lactesco, ere

 

Substantivos

Incepto-continuativos

aurora, ae

auroresco, ere

aurum, i

auresco, ere

cinis, eris

cineresco, ere

lapis, idis

lapidesco, ere

As formas emesco ostentavam mais alto rendimento em relação às formas emasco, obtidas por analogia com derivados de verbos emare. São exemplos deadjetivais: tenerasco, ere (de tener, eris; “tenro”); veterasco, ere (de vetus, eris; “velho”); dessubstantivais: purpurasco, ere (de purpura, ae ); vesperasco, ere ( de vesper, eris).

Convém reiterar o que asseveramos no início desta secção: o sufixo é originariamente uma marca de infectum e continua a sê-lo mesmo nas formas incepto-continuativas, que são subdomínio das infectivas. As incepto-continuativas lograram assim chamar-se, por um efeito estrutural e analógico, a que Bréal (1998) denomina irradiação.

Privativo que era do perfectum, a forma sufixal se ausentava do infectum. Acrescentavam-se assim, se fosse o caso, as desinências próprias deste micro-sistema aspectual. Às vezes os dicionários, convém salientar, não assinalam a forma básica de perfectum, o que significa que não foram consignadas, não que inexistissem em uso, permitido pelo sistema de possibilidades que é a língua. Podemos tão somente especular que as formas perfectivas fossem evitadas em virtude da homonímia com as formas perfectivas dos verbos estativos. À guisa de ilustração, temos candesco / candui (torno-me / tornei-me branco brilhante); candeo / candui (sou / fui branco brilhante). No entanto, o dicionário em que nos apoiamos (cf. Saraiva, 1993) não consigna formas pretéritas para as formas verbais crassesco (torno-me espesso) e mitisco (torno-me doce). Independentemente das abonações lexicográficas, relativas, porque dependem da extensão da fonte, admitimos, de boa vontade, que a referida homonímia deve ter sido um tanto incômoda.

 

Aspectos sintáticos e semânticos das formas inceptivo-incoativas

Podemos afirmar que, como regra, as formas inceptivo-incoativas tendiam a ser intransitivas, a exemplo de:

·  homo senescit ( o homem envelhece).

·  vultus feminae pallescit ( o rosto da mulher empalideceu).

Frases como estas eram tipicamente indicadoras de voz medial, que um actante, o sujeito, que é paciente do processo verbal.

Semanticamente, a oração se configura como de processo, isto se nos utilizamos da nomenclatura de Chafe (1979). Em termos da terminologia de Dik (1989), esses verbos codificam estados de coisa de eventos, em que há dinamicidade, mas não controle. O mesmo ponto de vista é acolhido por Peres (1984). Assim sendo, o latim evitava construções do tipo ação-processo, em que o verbo tem à esquerda um agente ou um causador e à direita um elemento afetado ou paciente. Eram, portanto, agramaticais frases do tipo:

·   * tristitia oculos feminae pallescit.( a tristeza empalidece os olhos da mulher).

·   * dolor militem senescit. (a dor envelhece o soldado).

Neste particular, o latim difere do português, que admite duas construções com formas emesc(er):

·  a tristeza empalidece os olhos da mulher.

·  a dor envelhece o soldado.

O motivo para esta divergência de transitividade será apresentado ainda neste artigo.


 

A herança latina das formas em –sc(ere) no português

Distribuição e sentido

Em português, o sufixo é –esc(er), derivado de esc(ere), deadjetival e dessubstantival. Não prosperou o padrão estativo → incoativo → inceptivo-continuativo. Afinal, como bem assinala Maurer Jr. (1959), o emprego dos verbos de estado era limitado, mormente na língua vulgar. Não havia, portanto, possibilidades ‘normais’ (correntes no uso) de formas como * crasseo, ere, *crebeo, ere, * graveo, ere, *miteo, ere, *noteo, ere, etc, apesar de possíveis no sistema.

Um segundo fato sobre o qual se deve fazer menção é a extensão do elemento sufixal a todas as formas verbais em português. Este fato merece considerações mais detidas.

Em primeiro lugar, ressalte-se que a supressão do sufixo, para receber desinências, constituiria um fato ímpar em português e mesmo em outras línguas românicas. Não lugar para um esquema destoante e caprichoso, semelhante ao latino, o qual engendraria hoje oposições do tipo: * alvorece / alvoreu, * escureço / escuri, * amareleço / amareli, * obscureço / obscuri.

O aludido fato ampara-se em uma condição estrutural mais ampla: a derrocada do harmonioso sistema verbal latino, que se fundava na oposição infectum / perfectum. A distinção das séries, ancorada no aspecto, foi perturbada, sobretudo pela necessidade de expressar as relações temporais.

Para Câmara Jr (1985:125), as raízes deste desarranjo se encontravam no próprio latim clássico. Apresentamos abaixo a interpretação do lingüista brasileiro, tomando como eixo apenas as formas do indicativo:

IMPERFEITO

amava

Amaria

amo

amarei

PERFEITO

amei

 

 

 

MAIS-QUE-PERFEITO

amara

 

 

 

 

PRETÉRITO

FUTURO

PRESENTE

FUTURO

Desaparecidas as condições que davam sustentação ao esquema opositivo original, fundado no aspecto, alterou-se conseqüentemente a caracterização semântico-gramatical do sufixoec(er), que se estendeu a todas as formas verbais, passando a indicar o processo ou a ação / processo no começo, no curso ou no término. Em outras palavras, a noção de tornar-se deixa de ser incepto-continuativa, para ser amplamente incoativa.

 

A transitividade

Em latim, como asseveramos, o caráter incepto-continuativo das formas em -sc(ere) se associava ao comportamento intransitivo das formas verbais, em que o sujeito era paciente, afetado. Se quiséssemos dar relevo a um agente, causador ou instrumento, teríamos de lançar mão da forma ablativa ou de uma preposição acompanhada do devido caso, a exemplo de:

·  Ignaviā animi hominum languescunt. (Por causa da covardia, o espírito dos homens enlanguesce).

·  Propter ignaviam, animi hominum languescunt. (Traduz-se como acima).

Assim, a estrutura básica intransitiva era mantida, diferentemente do que ocorre com o português, onde são possíveis os empregos intransitivo e transitivo consoante demonstramos na seção precedente.

Contudo, vale a pena atentar que a regra de intransitividade das formações em -sc(ere) não se manteve incólume nas formas vulgares, que resgatam inclusive usos transitivos do latim arcaico, como demonstra a seguinte passagem de Väänänen (1975):

Graças a sua expressividade e a sua unidade de acentuação no presente, esta formação conheceu uma sorte próspera. Por um lado, esta categoria se estendeu aos transitivos: assuescere, insuescere ‘acostumar” do latim antigo; no baixo latim augescere ‘aumentar’ ( = augere), innotescere “dar a conhecer”(1975:218). [3]

À guisa de reforço, acrescentamos esta outra de Ernout (1953):

Esta formação em –sco teve uma fortuna considerável em latim. Na língua vulgar, ela serve para criar não somente intransitivos, mas ainda causativos com sentido transitivo, assim no século V, d.C., encontra-se innotescere ‘fazer conhecer’, mollescere ‘amolecer’(1953:133).[4]

Os trechos acima, que concernem à língua vulgar, têm a vantagem de precisar o fenômeno da transitividade. Cabendo, todavia, fazer algumas ressalvas. Primeiro, os fatos históricos não ocorrem de súbito. Segundo, os processos históricos não se deixam fotografar com exatidão, a fim de serem surpreendidos punctualmente. Terceiro, todo fato oriundo da língua escrita jamais é totalmente representativo: ele reflete apenas tendências que se vão consagrando no uso diário, de modo que, quando são registradas na escrita, estão temporalmente em desvantagem ao que vinha consolidado na fala. Esta, mais representativa, tem natureza fluidia, no entanto; é um processo que apresenta tamanha dinamicidade e variedade que é difícil, senão impossível. Toda datação é, quando muito, aproximativa. Podemos, assim, inferir que a transitivação das formas incoativas vinha germinando no próprio latim antigo.

Ernout e Thomas (1953) fornecem alguns curiosos exemplos de verba timendi, atribuídos, respectivamente, a Virgílio e Cícero:

·  exhorrescere vultus (temer o que se mostra no rosto).

·  perhorrescere rem (temer vivamente uma coisa).

A título de mais corroboração, consultamos o dicionário de Sousa (s / d), de onde retiramos os seguintes exemplos, em que se registram o emprego transitivo dos verbos assuescere e insuescere:

·  assuescere mentem (fazer o entendimento acostumar-se).

·  insuevit pater optimus hoc me (meu boníssimo pai acostumou-se a isso).

Eis outras passagens do referido dicionário, com verba timendi (talvez por influência do verbo timere), embora os exemplos estejam truncados:

·  expavescere ensem. (recear a espada).

·  expavescere gradus (recear o passo).

·  pavescere bellum. (recear a guerra).

Outros exemplos referidos pelo autor, além de truncados, encontram-se fora de contexto frasal:

·  desuescere (desacostumar)

·  extimescere ( recear).

Ao generalizar-se a transitividade para as formações com sufixoesc(ere), alomorfe de sc(ere), a língua vulgar deu expansão a uma tendência. Em vez de um verbo marcado apenas pelo traço [+ intransitivo], podemos ter um verbo com traço [+transitivo]. Assim, reconfiguram-se plenamente os papéis semânticos no que concerne ao emprego transitivo: o sujeito pode ser agente e causador e o objeto direto ser um afetado. Propiciam-se assim construções como estas abaixo:

·  O dia escureceu.

·  A lua escureceu o dia.

 

Formações denominais emare.

O estudo do sufixoare, nesta secção, levará em conta a participação deste elemento mórfico em formações derivacionais portadoras da noção de tornar-se. O referido morfe será tratado como porte-manteau, pois comporta natureza de sufixo lexical propriamente dito e de desinência. No papel de sufixo lexical, concorre para enriquecer o acervo lexical, semelhantemente a qualquer outro afixo final e assume noções diversas. No papel desinencial, ele é o responsável por enquadrar o derivado no paradigma verbal de primeira conjugação.

Outra possível caracterização é postular sufixação zero, que tem amparo distribucional. No contexto da língua latina, confrontando-se, por exemplo, dois derivados, como albare e albicare, optaríamos pelas segmentações: alb-Æ-are e alb-ic-are. A presença do sufixoic imporia a existência de uma casa vazia no primeiro exemplo. Não seguiremos, todavia, esta orientação, em virtude de não julgarmos econômico postularmos zeros, de modo a sobrecarregar a descrição.

Isto dito, apresentamos as formações causativas emare, de natureza denominal.

 

Formações causativas denominais emare.

Abaixo apresentamos alguns derivados deadjetivais de natureza causativa.

Adjetivos

Verbos

angustus, a, um (estreito)

angusto, are (tornar estreito)

densus, a, um (denso)

denso, are (tornar denso)

maturus, a, um (maduro)

maturo, are (tornar maduro)

tenuis, e (tênue)

tenuo, are (tornar tênue)

Tais verbos participam de construções causativas, mais especificamente, de oração ação / processo, como estas abaixo:

·  tenebrae oculos caecant. (As trevas cegam os olhos).

·  tenebrae noctem densant. (As trevas adensam a noite).

·  Imber agros viridat. (A chuva enverdece os campos).

O sufixoare também se acrescentava a substantivos formando verbos transitivos e causativos. Parece-nos que as formações ocorriam, todavia, em escala menor que as adjetivais. Exemplificamos:

Adjetivos

Verbos

fortuna, ae (sucesso)

fortuno, are (dar sucesso)

sopor, oris (sono pesado)

soporo, are ( causar sono pesado)

tenebrae, arum (trevas, escuridão)

tenebro, are (fazer ficar escuro)

torpor, oris (torpor)

torporo, are (causar torpor)

Inserindo-se os derivados em sentenças exemplificadoras, tem-se:

·  odium mentem soporat. (o ódio entorpece a razão).

·  Fessitudo eos torporavit. (A fadiga os entorpeceu).


 

A incoativização dos verbos causativos

Para tornar os verbos de ação / processo verbos processuais, o latim recorria a formas de natureza médio-passiva, que, como todos sabemos, é mórfica nos tempos do infectum e perifrástica com esse, nos tempos do perfectum. Ilustremos:

Verbos ativos

Verbos médio-passivos

angusto, are (tornar estreito)

angustor, ari (tornar-se estreito)

denso, are (tornar denso)

densor, ari (tornar-se denso)

duro, are (tornar duro)

duror, ari (tornar-se duro)

laeto, are (tornar alegre)

laetor, ari (tornar-se alegre)

virido, are (tornar verde)

viridor, ari (tornar-se verde)

·  homines pugnis laetantur. (Os homens se alegram com as lutas).

·  Dies luna densatur. (O dia se adensa com a lua).

Todavia, na deriva do latim vulgar, os morfemas de médio-passiva foram desaparecendo. As formas ativas foram, paulatinamente, se prestando a desempenhar o papel de incoativas e, semanticamente, a indicar o caráter afetado do sujeito. Não nos interessa aqui mostrar todo o percurso por meio do qual formas médio-passivas conflitavam no uso com formas ativas, para veicular processualidade. Interessa-nos tão somente assinalar que as formas ativas assumiram, no final das contas, caráter incoativa, amparado em dois parâmetros: 1. intransitivação do verbo; 2. sujeito com papel semântico de afetado. Este é um entre muitos dados que corroboram a intensificação do analitismo em língua vulgar.

O emprego também intransitivo dos verbos emare nos é reportado por Väänänen (1975:205,206). O autor finlandês aduz exemplos como: coagulare (coalhar e fazer coalhar); mutare (mudar; fazer mudar) entre outros, que, embora não sejam denominais de primeira, revelam certa reciprocidade entre causatividade e processualidade, como coquere (cozer; fazer cozer) e frangere (quebrar; fazer quebrar).

Um outro fato aludido pelo lingüista finlandês concerne à disseminação um tanto irregular da forma se, para expressar voz média. Atentemos para esse trecho que Väänänen (1975:205) retirou de Quirão e de Plínio, respectivamente:

·  cum cicatrices se clauserint (quando as feridas se fecharem).

·  Myrina quae Sebastopolim se vocat (Myrina que se chama Sebastopólis).

Podemos resumir o que se passou com os denominais emare, conforme o seguinte esquema:

1. [(X)Nare]V / [(X)Nari]V (causativa X incoativa);

2a. [(X)Nare]V / [(X)Nare]V (causativa X incoativa, conforme transitividade);

2b. [(X)Nare]V / se[(X)Nare]V. (causativa X incoativa, conforme transitividade).

 

Considerações finais

Nosso trabalho constitui uma tentativa parcial de mostrar, com certos grupos de verbos, emsc(ere) e –are, como se engendraram as relações frasais de processualidade e causatividade. Rigorosamente, este artigo contribui para que estudemos o processo mais a fundo, tanto no âmbito do latim clássico, do latim vulgar e do português antigo, porque, reconhecemos, as coisas merecem um tratamento que transcenda o esqueleto diretivo que apresentamos.

Além disto, muitas indagações afloram, entre elas: a) por que ora o emprego com o se, ora o emprego sem ele, quelugar, em vernáculo, a formas em que o pronome é facultativo, obrigatório ou ausente?; b) dependendo da resposta à pergunta anterior, qual o papel do morfema se?; c) que relação se pode estabelecer entre a voz média em latim e a deponência verbal? Neste último caso, a resposta não é tão simples. Há casos que mostram a isenção de responsabilidade pela omissão do sujeito, que seria, provavelmente, de caráter geral, como em pugnatur (luta-se) e curritur (corre-se), em que os morfemas não têm uso médio-passivo, mas um aspecto desta diátese, destacado, a isenção de responsabilidade. Todavia, na deponência, há verbos por explicar, como sequor (sigo), de sentido nitidamente ativo, pelo menos para nós tão distantes no tempo.

Um outro aspecto a estudar-se é se a voz média em português bem como a causativa – são efetivamente relacionadas. A resposta a esta indagação levar-nos-á a postular duas entradas lexicais, ou uma única entrada, configurando-se, respectivamente, homonímia ou polissemia. Por fim, resta investigar as referidas vozes como de base discursiva, precipuamente, ou, de base formal, sendo, neste caso, sub-aspectos da voz ativa.

 

Referências bibliográficas

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DIK, S. C. The theory of functional grammar. Dordrecht: Foris Publications, 1989.

ERNOUT, A. Morphologie historique du latin. Paris: Klincksieck, 1953.

–––––– et THOMAS, F. Sintaxe latine. Paris: Klincksieck, 1953.

JOTA, Z. dos Santos. Dicionário de lingüística. Rio de Janeiro: Presença, 1981.

MAURER JR., Theodoro H. Gramática do latim vulgar. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1959.

PERES, João Andrade. Elementos para uma gramática nova. Coimbra: Almedina, 1984.

SARAIVA, F. R. Dicionário latino-português. Rio de Janeiro: Garnier, 1993.

SOUSA, Francisco A. de. Dicionário latino-português. Porto: Porto, [s / d.].

VÄÄNÄNEN, Veikko. Introducción al latín vulgar. Madrid: Gredos, 1975.


 


 

[1] Estamos utilizando os termos estado, ação e processo, no sentido que lhes atribui Chafe (1979).

[2] A terminologia incepto-continuativo, de Jota (1981), indica que o processo se encontra no início ou em seu desenvolvimento. Não acolhemos o nome incoativo, uma vez que, associado à noção de tornar-se, pode indicar a mudança de estado em seu estádio final, v.g., tornei-me pálido ou empalideci.

[3] Gracias a su expresividad y a su unidad de acentución en el presente, esta formación ha conocido una suerte próspera. Por una parte, esta categoría se ha estendido a los transitivos: assuescere, insuescere ‘acostumbrar” desde el latín antiguo; en bajo latín augescere ‘aumentar’ ( = augere), innotescere “dar a conocer”.

[4] Cette formation en –sco a eu une fortune considérable en latin. Dans la langue vulgaire, elle servit à créer non seulement des intransitifs, mais encore des causatifs à sens transitif; ainsi au Ve siècle après J.C. on trouve innotescere “faire connaître”, mollescere “amollir”.